Por: Cesar Sanson | 22 Abril 2014
Populações quilombolas começam a se preparar para ações de enfrentamento contra possíveis projetos de construções de hidrelétricas na área da bacia do rio Trombetas, no Pará. Temerosos em perder suas terras para as barragens, lideranças de 35 comunidades quilombolas que vivem à margem do Trombetas planejam discutir o assunto nas próximas semanas com a Fundação Palmares e com o Ministério Público Federal (MPF). Os quilombolas querem ter acesso a informações mais sólidas sobre o planejamento energético para a bacia do rio Trombetas, um afluente da margem esquerda do rio Amazonas.
Corredeira da bacia do Trombetas, no Pará. (Foto: Emmanuel de Almeida Farias Júnior)
A reportagem é de Elaíze Farias e publicada pelo portal Amazônia Real, 21-04-2014.
A região é ocupada por uma população tradicional de quase 10 mil pessoas descendentes de escravos fugidos de fazendas há mais de dois séculos. Às margens da bacia do rio Trombetas também há terras indígenas ocupadas por etnias como wai-wai, kaxuyana e tunayana. Ivanildo Carmo de Souza, de 41 anos, uma das lideranças quilombolas da comunidade Cachoeira Porteira, localizada no município de Oriximiná (distante a 819,75 quilômetros de Belém em linha reta), disse à agência Amazônia Real que recentemente “ligou dois fatos” ocorridos nos últimos dois anos, que lhe aumentaram a preocupação sobre o futuro das populações tradicionais que vivem naquela área.
“Há dois anos, apareceu aqui uma pessoa dizendo que estava prestando serviço para o governo e pediu para fazer uma pequena visitação na área e ver o sistema de vazão do rio. Mandei que algumas pessoas levassem onde ele queria ir. Ano passado, uma pessoa da Secretaria de Meio Ambiente do governo do Pará me disse: ‘Ô Ivanildo, já está tramitando documentação para a hidrelétrica de Cachoeira Porteira’. Aí eu liguei as duas coisas e isso me deu uma preocupação tão grande. Mas não ficamos sabendo de mais nada”, disse.
A ameaça de construções de barragens as comunidades naquela bacia desde o final da década de 70, mas os estudos realizados não avançaram para ações mais concretas e nem se teve notícias da aprovação de algum projeto hidrelétrico.
Em fevereiro de 2014, contudo, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão do Ministério de Minas e Energia, iniciou um estudo socioambiental de inventário hidroelétrico na bacia do rio Trombetas. O estudo abrange o curso principal do rio Trombetas e o baixo curso dos rios Mapuera e Cachorro, nos trechos localizados na Floresta Estadual de Trombetas e na Floresta Estadual de Faro, no município de Oriximiná. As informações a respeito do contrato firmado com o Consórcio Ferma-Igplan estão disponíveis no site da EPE, mas os detalhes sobre o estudo foram fornecidos com exclusividade à agência Amazônia Real, após o órgão ser procurado pela reportagem. Segundo a EPE, o potencial hidroelétrico previsto do rio Trombetas é de 2.000 MW.
Embora a EPE não tenha informado as comunidades situadas na área pesquisada, a Amazônia Real apurou que o local é ocupado por terras quilombolas, com uma população de quase 10 mil pessoas descendentes de escravos fugidos de fazendas há mais de dois séculos e que vivem como extrativistas e mantêm as tradições de seus ancestrais. A área também é ocupada por terras indígenas.
Ivanildo Carmo de Souza disse à Amazônia Real que a área citada pela EPE abrange 35 comunidades quilombolas, entre elas Cachoeira Porteira. Souza contou que a “ameaça” de construção de hidrelétricas existe há vários anos, mas os moradores das comunidades nunca foram consultados.
Atualmente, Cachoeira Porteira e as demais comunidades quilombolas estão em pleno processo de regulamentação fundiária. Neste ano, os moradores quilombolas chegaram a um acordo com a população indígena que vive na região para definir a extensão de cada território. Conforme Souza, a relação com os indígenas é de parentesco e de laços familiares. “Para nós, hidrelétricas não são viáveis. Elas são construídas só para jogar energia para as grandes metrópoles. Não estão nem aí para as comunidades. Vão acabar com nosso meio e nosso modo de vida. Se tiver uma hidrelétrica aqui, castanhais serão destruídos por inundações e teremos que sair. E para onde vamos? Para a cidade?”, disse.
Ivanildo Carmo de Souza afirmou que está prevista para ocorrer em breve uma reunião com MPF, Funai (Fundação Nacional do Índio) e Fundação Palmares, órgão federal de atenção às comunidades quilombolas do país, para uma conversa sobre a questão fundiária. Mas o assunto sobre hidrelétricas na região vai entrar na pauta de discussão.
“A gente já sabia desse perigo de hidrelétricas aqui, mas o que faltava era discutir. Vamos conversar todos, quilombolas e indígenas, e fortalecer uma parceria, porque as coisas podem acelerar e quando dermos conta, constroem hidrelétricas aqui na nossa terra”, disse Souza.
Estudos anteriores
Um estudo realizado em 2012 pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Pará (Idesp) afirma que “a existência de Cachoeira Porteira está documentada historicamente nos registros de escravos nas plantações de cacau na região do baixo Amazonas em 1778, no registro de autorização, dos mocambos no Alto Trombetas entre 1823 e 1870, no belíssimo relato de Henri Coudreau Viagem ao Trombetas (1899), na memória oral dos remanescentes de quilombos da comunidade”.
O antropólogo Emmanuel de Almeida Farias Júnior, que desenvolve pesquisa de doutorado nas comunidades quilombolas do rio Trombetas pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e integrou a pesquisa do Idesp, acredita que o que está acontecendo atualmente é uma complementação de estudos anteriores e que podem, a partir de agora, levar ao avanço dos projetos de hidrelétricas naquela bacia.
“Em 2012, quando comecei a fazer o trabalho de pesquisa, vi que as empresas estão realizando estudos há muito tempo. Mas acho que agora vão avançar mais com os inventários. Elas devem estar aprimorando e concluindo”, disse o antropólogo. Conforme Farias Júnior, a região pesquisada possui uma área de várzea onde se for construída as hidrelétricas, tudo será inundado. “Se tiver hidrelétricas, os quilombolas não poderão ficar ali e terão que ser remanejados”, afirmou.
Outros estudos
Não é a primeira vez que a bacia do rio Trombetas é estudada para fins energéticos. No final da década de 70, durante a ditadura militar, o projeto foi incluído no planejamento de hidrelétricas na região amazônica. Na década seguinte, a Centrais Elétricas do Norte (Eletronorte) encomendou uma série de pesquisas na área. Um deles foi sobre impactos na ictiofauna (peixes), produzido pelo pesquisador Efrem Ferreira, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), entre 1985 e 1988. No seu estudo, Ferreira explica que o trabalho de pesquisa foi realizado na “área de influência da futura UHE Cachoeira Porteira”.
Em 1988, o então presidente José Sarney concedeu a outorga de concessão para aproveitamento de energia hidráulica dos rios Trombetas e Mapuera para a Eletronorte por meio do Decreto 96.883.
Os estudos da década de 80, contudo, foram realizados a partir de versões anteriores do Manual de referências do Ministério de Minas e Energia e, portanto, não existe inventário aprovado vigente na bacia do rio Trombetas, segundo a assessoria de imprensa da EPE.
Já o atual estudo, conforme a EPE, é elaborado a partir dos ditames do Manual de Inventário Hidroelétrico de Bacias Hidrográficas publicado em 2007 pelo Ministério de Minas e Energia e que faz parte do Plano Nacional de Energia 2030, do governo federal. A reportagem tentou acessar os documentos Manual (bem como outros relatórios do Plano) pelo endereço na internet, mas a página deu erro, até a publicação desta matéria.
Reuniões previstas
De acordo com informações da EPE, os estudos iniciados há dois meses preveem a identificação de todas as comunidades existentes na área da bacia. As etapas abrangerão estudos de campo e de escritório.
A EPE informou que os estudos socioambientais são parte integrante do inventário hidroelétrico, também composto por estudos cartográficos, geológico-geotécnicos, hidrometeorológicos e energéticos. O estudo de inventário é o reconhecimento inicial do potencial hidroelétrico de uma bacia hidrográfica. Nele são identificados os aproveitamentos hidroelétricos (futuras usinas) viáveis em termos econômico, energético e socioambiental. Conforme o órgão, os aproveitamentos considerados mais interessantes pelo setor elétrico serão, individualmente, objeto de um estudo de viabilidade técnica e econômica (EVTE).
O estudo de viabilidade obriga a realização conjunta de um estudo de impacto ambiental (EIA), a ser avaliado pelo órgão licenciador ambiental para fins de emissão da licença prévia (LP). Somente após a obtenção da licença prévia e da aprovação do EVTE pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o aproveitamento hidroelétrico seguirá para leilão. Uma vez leiloado, deverá obter as licenças ambientais de instalação e operação para gerar energia elétrica.
Os estudos socioambientais atuais no rio Trombetas foram licitados em 2013 e resultaram na contratação do Consórcio Ferma-Igplan para a realização pelo valor de R$ 2.894.345,00, com previsão de conclusão em 2016. Os estudos geológico-geotécnicos, hidrometeorológicos e energéticos ainda não foram licitados.
Segundo sua assessoria de imprensa, a EPE possui autorização da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Pará (SEMA-PA), gestora das unidades onde ocorrem os estudos, para realização dos serviços de campo.
A assessoria informou ainda que conforme determinação da SEMA-PA, está prevista reunião de apresentação dos estudos e da equipe às comunidades que habitam as florestas estaduais mencionadas, mas ainda não há data marcada para a reunião.
A EPE disse que, além do estudo de inventário da bacia do rio Trombetas, estão sendo realizados no momento estudos de viabilidade dos aproveitamentos de Prainha, no rio Aripuanã (Amazonas), Bem Querer, no rio Branco (Roraima) e Castanheira, no rio Arinos (Mato Grosso). O órgão também elabora o diagnóstico socioambiental da bacia do rio Negro (Amazonas) visando decidir se executará o inventário hidrelétrico dessa bacia.
Mineração
O rio Trombetas vem sendo foco de interesse de grandes empreendimentos desde o início da década de 70. A maior delas é a atividade de mineração. Na área se encontra a empresa Mineração Rio do Norte, considerada a maior produtora de bauxita do país.
Junto com a mineradora, também chegaram na região obras de abertura de estradas. “Naquela época, a Construtora Andrade Gutierrez se instalou e iniciou a abertura de uma estrada, um trecho da BR-163, em cima da terra quilombolas. Ela é conhecida como Perimetral Norte, mas não é. São 220 quilômetros que leva nada a lugar nenhum, embora oficialmente ela ligue Porto Trombetas à Perimetral que vai do Amapá a Roraima”, diz Emmanuel de Almeida Farias Júnior.
O projeto de hidrelétricas chegou no final da década de 1970, tendo como alvo uma área conhecida como Viramundo e Viramundinho, nas proximidades de Cachoeira Porteira. “Quem elaborou os estudos para a Eletronorte foi a empresa Engerio. Mas houve muita pressão por parte dos moradores dos quilombolas para impedir as obras das hidrelétricas”, diz o pesquisador.
Atingidos por barragens
A agência Amazônia Real procurou o Movimento Atigindos por Barragem (MAB) para saber se a entidade estava acompanhando ou sabia de informações sobre os novos estudos na bacia do rio Trombetas. Océlio Muniz disse que o MAB não tem informações específicas sobre aquela bacia hidrográfica, mas que tem conhecimento de que o governo federal possui um plano que prevê grandes obras na área de energia que violam os direitos das populações e que não leva em conta os povos indígenas e nem considera as organizações locais.
“Essa violação, inclusive, inclui negativas de informações sobre os projetos. Isso já se tornou uma prática no processo de construção de barragens no Brasil. Depois dos anos 1990, houve uma mudança no sistema energético nacional, especialmente após o processo de privatização do setor. Assim, a negociação, que antes acontecia entre os atingidos e as estatais, passa a ter interferência das empresas privadas, muitas delas multinacionais. Quando a negociação era feita com as estatais, havia um avanço nas negociações, porque as empresas entendiam que os atingidos deveriam ser tratados de forma diferenciada”, disse.
Segundo Muniz, o MAB propõe uma nova política energética, que tenha soberania nacional, distribuição de riqueza e participação popular. Ele diz que o atual modelo energético não tem soberania, porque fica dependente e refém dos interesses privatistas.
Ele diz que conforme o “Plano Decenal de Expansão de Energia 2022”, o Governo prevê a construção de 34 hidrelétricas nos próximos 10 anos, sendo que 15 serão nos rios da Amazônia (86,5% da potência). Seguindo a atual política de tratamento, milhares de famílias serão expulsas sem receber seus direitos.
“O questionamento fundamental sobre as usinas tem sido ‘para que? e para quem?’, já que, na atual forma de organização da política energética percebe-se que por trás estão grandes empresas mundiais de máquinas e equipamentos, construtoras, empresas de energia e grandes consumidores industriais eletrointensivos, que lucram com a construção das usinas, com a venda da energia e com a exportação de eletrointensivos”, afirma.
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Hidrelétricas no rio Trombetas preocupam quilombolas e indígenas do Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU