08 Junho 2015
"Os primeiros bens comuns, na Roma antiga, eram aqueles reservados para a cidade e para os deuses e, por isso, retirados da propriedade privada em favor de todos os habitantes da cidade. Neste sentido, pode-se paradoxalmente sustentar que foi precisamente a religião que tornou alguns bens e alguns lugares indisponíveis para apropriação e liberou os outros para a possibilidade de serem apropriados e comercializados", relembra Roberto Esposito, filósofo italiano, vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 01-06-2015. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
"Aviso aos não comunistas: tudo é comum, até mesmo Deus". Este aforismo deslumbrante de Baudelaire permanece como epígrafe no início da ampla pesquisa feita por Dardot Pierre e Christian Laval sobre o tema da propriedade comum, com o título Del comune o della Rivoluzione nel X-XI secolo (Derive Approdi, a cura de A. Ciervo, L. Cuddihy e F. Zappino, com introdução de Stefano Rodotà).
Sobre este tema, há algum tempo, floresceram ensaios filosóficos, económicos, jurídicos - o último dos quais Ugo Mattei, com o vigoroso título Il benicomunismo e i suoi nemici, recentemente publicado por Einaudi.
Para justificar esta onda de interesse pelo tema - que há alguns anos levou à criação da Comissão Rodotà e à promoção do referendo sobre a retirada de água do lucro privado - é a crescente dificuldade de imaginar modelos alternativos ao regime neoliberal, prevalente em todas as democracias ocidentais. Rejeição da política, redução do trabalho assalariado, crescimento da xenofobia, individualismo antissocial, irrelevância dos movimentos contrários parecem fechar qualquer espaço de oposição ao sistema vigente, a quem também deve ser atribuído a crise atual e o estonteante aumento das desigualdades.
Este estado de bloqueio, sentido sob a pele por toda esquerda europeia, em termos de práticas e de ideias, determinaram a necessidade de chamar em campo novos paradigmas, como, exatamente, aquele do Bem Comum. Pressionado entre os bens de propriedade privada e os bens do Estado, a categoria de "comum" abre espaço a parir do princípio da inalienabilidade dos recursos destinados ao uso compartilhado de todos os habitantes da cidade.
Naturalmente, a esta teoria não pretende abolir o mercado, mas tenta limitar sua expansão, colocando específicas restrições, seja ao exercício de privatização, seja ao da estatização dos bens e serviços de utilidade pública. No entanto, internamente à essa perspectiva, logo apareceram elementos fracos. Já o progressivo aumento na coluna dos bens comuns de coisas bem diferentes, como território, ambiente, saúde, conhecimento e trabalho, começou a suscitar perplexidades: se qualquer coisa, em última análise, é comum, a categoria desvanece até desaparecer. A isso acrescenta-se a impressão, principalmente em algumas genealogias, que se está querendo um tipo de regressão ao mundo pré-moderno, não governado ainda pelo mecanismo da propriedade e, portanto, protetivo das áreas compartilhadas. Está tese da regressão não é sustentável no plano histórico e nem naquele teórico.
O ensaio de Dardot e Laval apresenta-se em outro comprimento de onda. Não só a classificação de ‘comum’ não tem conotação nostálgica, mas ao contrário, ao invés de olhar para trás, recolhe o desafio da sociedade liberal sobre seu próprio terreno – aquele do governo do corpo e das mentes dos homens. Mas, derruba as relações de força entre apropriação individual e uso comum. Para esses autores não se trata de ativar uma espécie de contrapoder antagônico ao atual regime, mas de jogar à sua altura, distribuindo diferentemente as cartas disponíveis. A começar pelo direito. Contra a perspectiva marxista de que o torna uma superestrutura ideológica à serviço do Estado soberano, deve ser usado na sua dupla função de reforço do poder, mas também em contraste aos seus abusos. Se usado em todo o seu poder constituinte, também em sua função crítica aos poderes constituídos, o direito pode abrir passagens coletivas na estrutura de propriedade do mercado e do Estado, favorecendo a criação de espaços livres da sua ingerência.
Neste sentido, mais do que restaurar bens naturais perdidos, se trata de ativar uma práxis de autogoverno. Os recursos são apropriáveis, ou não, não em razão da sua suposta naturalidade, mas de uma decisão instituinte nascida do agir em conjunto dos homens, como diria Hannah Arendt.
Para este fim, não é suficiente o empenho, mesmo necessário, em termos de mobilização política, por exemplo, reforçando a inspiração mútua-associativa que a tradição marxista sufocou desde o começo. É preciso avaliar uma série de pressupostos infundados que ainda flutuam sobre o vazio das ideias. Por exemplo, o que liga a origem dos bens comuns ao processo de secularização. Se isso é verdade com relação às propriedades da igreja ainda subtraídas ao uso público, não leva em conta um elemento crucial que liga o público não à esfera da laicidade, mas à da religião.
Num texto publicado pela Quodlibet com título “O valor das coisas”, editado por Michael Spanò, e com um ensaio de Giorgio Agamben, o grande historiador do Direito Romano, recentemente falecido, Yan Thomas traça a gênese das coisas destinadas ao uso livre de todos os cidadãos, não só no âmbito do público, mas também para o do sagrado. Os primeiros bens comuns, na Roma antiga, eram aqueles reservados para a cidade e para os deuses e, por isso, retirados da propriedade privada em favor de todos os habitantes da cidade. Neste sentido, pode-se paradoxalmente sustentar que foi precisamente a religião que tornou alguns bens e alguns lugares indisponíveis para apropriação e liberou os outros para a possibilidade de serem apropriados e comercializados.
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A Teoria do Bem Comum. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU