Apesar de a agenda ambiental não estar entre as prioridades do Estado brasileiro, desde a década de 1990, com a criação do Ministério do Meio Ambiente e do Sistema Nacional de Meio Ambiente, os governos vêm “somando esforços para a implementação de uma política nacional”, que se manifesta na criação de políticas públicas sobre “temas estratégicos”, menciona Antonio Oviedo na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line. Entre as políticas implementadas, ele menciona a política nacional de resíduos sólidos, a política nacional de biodiversidade e a política nacional de mudanças climáticas e a criação do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama. Entretanto, adverte, o governo dá sinais de que a abrangência da política nacional será reduzida. “O atual governo se distancia desta agenda uma vez que desestrutura o Ministério do Meio Ambiente, altera os procedimentos do Conama, transfere a Agência Nacional de Águas para que suas competências tratem apenas de irrigação e saneamento (eliminando o importante princípio de uso múltiplo dos recursos hídricos construído pela política nacional) e desidrata a política nacional de mudanças climáticas”, afirma.
Oviedo também comenta as primeiras medidas adotadas pelo governo na área ambiental e pontua que há “uma avalanche de ações que, ao final, representam verdadeiro convite ao crime ambiental”. Nesse sentido, frisa, “o governo se aproxima dos governos anteriores quando ele mantém a prioridade do desenvolvimento regional por meio de grandes obras de infraestrutura. Historicamente, as obras de infraestrutura têm sido um vetor de desmatamento, grilagem e impactos sociais na Amazônia, ao contrário de promoverem um desenvolvimento local sustentável”.
Antonio Oviedo é graduado em Ciências Agrárias pela Universidade de Taubaté, mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Geografia pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente atua no Programa de Monitoramento do Instituto Socioambiental - ISA.
IHU On-Line - Por que o senhor afirma que a eleição de Bolsonaro “parece significar a mais drástica ruptura na política ambiental brasileira, rumo à condecoração e ao incentivo do crime ambiental”? Que medidas adotadas pelo governo indicam essa mudança?
Antonio Oviedo - A disputa de narrativas no campo socioambiental tem sido altamente desigual desde o início da campanha eleitoral e mandato do governo Jair Bolsonaro. Enquanto proliferam notícias sobre grupos político-empresariais de grande poder econômico, muitas vezes falsas, os povos indígenas e populações tradicionais enfrentam o desafio de vencer a precária infraestrutura de comunicação nas terras indígenas demarcadas e territórios tradicionais já reconhecidos na Amazônia.
Atualmente, entre as principais propostas abarcadas pelas medidas provisórias, decretos do governo federal e projetos de lei, estão a desestruturação dos órgãos ambientais e indigenistas; a exploração de recursos naturais nas Terras Indígenas, como minérios; a flexibilização do licenciamento ambiental; o interesse pela revisão de todas as 334 unidades de conservação federais visando recategorizar algumas, mudar traçados de outras e até extinguir áreas protegidas; e as tentativas de redefinir os critérios para demarcação de Terras Indígenas. O cenário de ameaça aos direitos humanos se completa com a baixa performance das políticas públicas socioambientais.
Conforme menciona o artigo publicado no site do ISA, nos primeiros quatro meses de governo, o que vemos é uma avalanche de ações que, ao final, representam verdadeiro convite ao crime ambiental:
- nomeação de um ministro do Meio Ambiente condenado em primeira instância judicial pela adulteração de documentos oficiais; esvaziamento das funções do ministério, como a exclusão das competências de combate ao desmatamento e às mudanças climáticas;
- cortes orçamentários profundos, afetando principalmente a fiscalização e cumprimentos das metas de regulação climática pactuadas no Acordo de Paris; vacância de cargos diretivos no ministério;
- tentativa de deslegitimação dos dados oficiais do desmatamento e desprezo às considerações da comunidade científica; perseguição a servidores dos órgãos ambientais federais por cumprirem sua missão legal;
- menor índice de autuações lavradas pelo Ibama em 24 anos; extinção de conselhos de meio ambiente e indisponibilidade de informações públicas essenciais, como o mapa de áreas prioritárias para a conservação, reduzindo a transparência e a possibilidade de controle social;
- liberação de leilão para exploração de petróleo em Abrolhos, à revelia de pareceres técnicos dos órgãos ambientais; disposição em acatar pleitos de extinção ou redução de unidades de conservação;
- e o simbólico episódio em Rondônia, no qual o presidente desautorizou operação do Ibama e defendeu o descumprimento da lei contra atividade madeireira ilegal.
IHU On-Line - Que pautas ambientais, na sua avaliação, estão mais ameaçadas neste governo?
Antonio Oviedo - As pautas mais ameaçadas são:
(i) agricultura sustentável e segurança alimentar por meio da aprovação desenfreada de agrotóxicos e ausência de propostas para a agricultura familiar;
(ii) reconhecimento e demarcação de terras indígenas e territórios quilombolas por meio da desestruturação da Funai, levando a responsabilidade da demarcação de terras indígenas (de competência da Funai) para o Ministério da Agricultura, além da retirada das terras indígenas não homologadas do sistema SIGEF do Incra e cortes de 90% do orçamento da Funai;
(iii) direitos dos povos indígenas por meio das tentativas de descumprimento da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que garante o direito de consulta prévia aos povos indígenas sobre projetos e obras que impactam seus territórios;
(iv) licenciamento ambiental por meio das inúmeras propostas de flexibilização da legislação, que podem ampliar os casos de desastres ambientais com severos impactos para a população, aumentando as probabilidades para novos casos como o de Brumadinho e Mariana;
(v) cumprimento das metas da Política Nacional de Mudanças climáticas por meio do não cumprimento dos prazos e metas, e reduções de 86% do orçamento para enfrentar as mudanças climáticas; além disso o governo cancelou a Conferência do clima que seria sediada no Brasil e insiste em afirmar que as mudanças climáticas não existem e que se trata de um discurso ideológico (neste caso o governo brasileiro desconsidera, por exemplo, relatórios como o do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC, que reúne mais de 130 organizações);
(vi) combate ao desmatamento por meio da reestruturação do Ministério do Meio Ambiente que acabou com o departamento responsável pelo combate do desmatamento, e com a crítica do ministro do Meio Ambiente sobre o sistema de monitoramento do governo (realizado pelo INPE), o qual é referência internacional.
Ainda, o governo desautoriza operações em andamento no Ibama contra madeira ilegal, afirmando que o maquinário apreendido não deve ser destruído por agentes de fiscalização, e o número de multas aplicadas pelo Ibama nos primeiros meses de 2019 é o menor em 24 anos. Desde o início do ano, pelo menos 14 terras indígenas estão sendo seriamente invadidas para a exploração ilegal de madeira; (vii) consolidação das áreas protegidas, onde o governo ao invés de fortalecer a consolidação destas áreas o Ministério do Meio Ambiente vai fazer uma revisão geral das 334 unidades de conservação no Brasil, atualmente administradas pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade - ICMBio.
(Fonte: WWf Brasil)
(Fonte: WWF Brasil)
IHU On-Line - Em que aspectos a condução da agenda ambiental pelo novo governo se aproxima e se distancia da administração feita por governos anteriores?
Antonio Oviedo - Os governos anteriores, desde a criação do Ministério do Meio Ambiente e do Sistema Nacional de Meio Ambiente (regulamentado em 1990), vêm somando esforços para a implementação de uma política nacional. Com isso, políticas públicas e normas sobre temas estratégicos e de controle social têm sido implementadas, tais como a política nacional de gerenciamento de recursos hídricos, a política nacional de resíduos sólidos, a política nacional de biodiversidade e a política nacional de mudanças climáticas. O Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama é um outro exemplo de instância de formulação da política nacional de meio ambiente.
O atual governo se distancia desta agenda uma vez que desestrutura o Ministério do Meio Ambiente, altera os procedimentos do Conama, transfere a Agência Nacional de Águas para que suas competências tratem apenas de irrigação e saneamento (eliminando o importante princípio de uso múltiplo dos recursos hídricos construído pela política nacional) e desidrata a política nacional de mudanças climáticas conforme mencionado acima. Ainda, o governo traz de volta o debate sobre como a conservação limita o desenvolvimento, debate este que já foi solucionado e evoluiu desde 1992 durante a Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e desenvolvimento, Eco-92, que construiu as bases para o desenvolvimento sustentável.
Por outro lado, o governo se aproxima dos governos anteriores quando ele mantém a prioridade do desenvolvimento regional por meio de grandes obras de infraestrutura. Historicamente, as obras de infraestrutura têm sido um vetor de desmatamento, grilagem e impactos sociais na Amazônia, ao contrário de promoverem um desenvolvimento local sustentável. As hidrelétricas implantadas na Amazônia durante a última década, sob o argumento de manter o abastecimento de energia para mover a economia brasileira, são outro exemplo de obras planejadas conforme o interesse setorial em detrimento das necessidades locais.
O Estado, na prática, abre mão de suas atribuições de defesa dos povos indígenas e comunidades tradicionais e de proteção e gestão de seus territórios, com irrisórios investimentos nesse sentido. A incapacidade dos governos de exercer supervisão e regulação sobre as obras de infraestrutura e os empreendedores, sejam públicos ou privados, é evidente. O descumprimento do direito de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas, o crescente registro de assassinatos de lideranças indígenas reforça a necessidade de ações voltadas à participação e ativismo dos povos indígenas para a proteção dos direitos humanos.