Por: Ricardo Machado e Julie Dorrico | 18 Agosto 2018
O universo – ou melhor dizendo, o cosmo – ameríndio é de uma complexidade e multiplicidade tão grande que descrevê-lo foge da possibilidade do real. Esse olhar mira os desafios contemporâneos na direção de propor uma resistência baseada, também, no questionamento sistemático das formas de vida economicistas. “O que vejo é uma crise instalada no seio da sociedade ocidental. É uma crise que se alastra, sobretudo, por conta dos impactos ambientais que o desenvolvimento econômico tem causado em todas as direções do globo”, pontua Daniel Munduruku em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Diante de tal contexto, muitos povos indígenas produzem tensionamentos à lógica dominante por seus próprios modos de vida. “Vemos essa reação nas diferentes formas de resistências, seja no grito expressado contra a construção de barragens e hidrelétricas, no impedimento da exploração mineral, na luta pela implantação da educação diferenciada ou no tratamento de saúde que leve em conta as particularidades de cada povo”, ressalta.
Com uma vasta formação educacional e intelectual, Daniel percebe a cultura como um organismo vivo “que precisa se alimentar para permanecer vivo. Nesse sentido não dá para compreender a ideia muitas vezes repetida de que um povo deixa de ser tradicional quando incorpora elementos da cultura dominante. Quem pensa assim não sabe nada sobre cultura”. Ao pensar o fenômeno literário, Daniel Munduruku tem uma visão muito clara de que a visão holística do escritor é mais importante do que a literatura como objeto político. “Desconheço qualquer força política na literatura. Literatura é reflexo da força política de quem escreve. A cultura, do qual a literatura faz parte, tem uma força em si, mas a literatura que é produto, passa pelas convicções de quem a produz. Quando penso em força política penso no compromisso ético e estético de quem age a favor da sociedade. Tenho visto muita literatura canônica que não tem compromisso com a sociedade. Tenho a tendência de ver o escritor como um cidadão que se reconhece acima da média social e por isso muitas vezes assume atitudes contrárias à própria sociedade”, analisa.
Daniel Munduruku | Foto: Reprodução / Facebook
Daniel Munduruku é escritor indígena, graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia, além do doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo - USP. Realizou estágio pós-doutoral em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. É diretor presidente do Instituto UKA - Casa dos Saberes Ancestrais. Autor de 50 livros para crianças, jovens e educadores, é Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República desde 2008. Em 2013 recebeu a mesma honraria na categoria da Grã-Cruz, a mais importante honraria oficial a um cidadão brasileiro na área da cultura. Membro Fundador da Academia de Letras de Lorena. Recebeu diversos prêmios no Brasil e Exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Érico Vanucci Mendes (outorgado pelo CNPq) e o Prêmio Tolerância (outorgado pela Unesco). Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como os povos indígenas, especialmente sua etnia Munduruku, têm percebido os dilemas que a civilização moderna produziu e na qual a maior parte da população está imersa?
Daniel Munduruku – Não é possível dar uma resposta definitiva a esta pergunta. Ela esconde uma impossibilidade real quando pensamos em toda a diversidade indígena contemporânea, os diferentes tempos de contato, o atendimento institucional que recebem, entre outras questões. O fato é que não dá para estabelecer parâmetros capazes de oferecer uma visão única sobre a questão. Posso falar o que eu tenho percebido sobre o tema, mas deixando claro que se trata de uma opinião pessoal.
O que vejo é uma crise instalada no seio da sociedade ocidental. É uma crise que se alastra, sobretudo, por conta dos impactos ambientais que o desenvolvimento econômico tem causado em todas as direções do globo. Tais impactos repercutem em todos os setores da sociedade, especialmente no que tange à utilização da tecnologia que ainda precisa explorar o meio ambiente para a fabricação de insumos necessários para a confecção de equipamentos. Isso afeta diretamente os povos indígenas e todos os segmentos sociais que utilizam a natureza como fonte de vida. Os indígenas já percebem claramente este impacto e têm buscado soluções para que esta exploração desenfreada não continue. A construção dessa consciência passa pelos diferentes graus de contato a que eu me referia anteriormente, porque alguns grupos já conseguem perceber os malefícios do progresso que chega às suas bases. Vemos essa reação nas diferentes formas de resistências, seja no grito expressado contra a construção de barragens e hidrelétricas, no impedimento da exploração mineral, na luta pela implantação da educação diferenciada ou no tratamento de saúde que leve em conta as particularidades de cada povo.
A resistência dos povos indígenas tem questionado a sociedade economicista e tem mostrado que há outras possibilidades de existência que não passem pela destruição desenfreada de nosso bem comum mais precioso: a natureza.
IHU On-Line – Diante dos claros sinais de esgotamento do modelo de civilização moderno-extrativista, como os povos ameríndios podem contribuir com suas cosmovisões?
Daniel Munduruku – Como disse anteriormente, os povos indígenas já contribuem muito. Eu diria até que contribuem sem fazer esforço extraordinário. Basta que se mantenham vivos e não percam de vista sua noção de pertencimento. No que isso implica? Implica na construção de um embate entre diferentes modelos de desenvolvimento. Para o ocidental médio crescer é destruir; para um indígena é interagir, é pertencer; é colocar-se numa atitude de respeito e consideração; é desenvolver a ideia de que somos frutos de uma mesma célula e o que fizermos contra a natureza estaremos fazendo contra nós mesmos.
IHU On-Line – Como a publicação de textos e autores dos diferentes povos ameríndios do Brasil tem contribuído para a causa indígena?
Daniel Munduruku – A literatura indígena é uma realidade que já se faz presente no Brasil, isso é fato. Ela se estabeleceu assim desde que houve a abertura democrática no país. Vale lembrar que até 1988 os povos indígenas eram vistos como grupos que estavam em processo de “civilização” e que, portanto, teriam que ser enquadrados dentro da lógica ocidental. Felizmente essa realidade mudou após a aprovação da Constituição. Lá está garantido o direito de os indígenas permanecerem indígenas. Ou seja, pela primeira vez na história o Estado brasileiro reconheceu que estes povos já são completos em sua cultura, em suas experiências humanas e que não precisam passar pelo sofrimento de ter que esquecer ou abandonar seu jeito próprio de ser e estar no mundo. Isso foi muito importante para que os povos indígenas pudessem participar mais efetivamente da construção histórica do país.
Sabemos, no entanto, que não bastam leis para que as coisas mudem. É preciso ação efetiva para que as mudanças ocorram de fato. Foi por isso que o movimento indígena se articulou para que os direitos garantidos pudessem repercutir na sociedade como um todo. Surgiram, assim, as lutas pela educação diferenciada, tratamento de saúde que respeitassem as tradições, cotas nas universidades e, especialmente, uma “limpeza” na ideologia dominante que sempre colocou estas populações como seres inferiores. Para isso foi criada e aprovada a lei 11.645/08 [1], que obrigou que o sistema educacional brasileiro – principal aparelho ideológico do Estado – trabalhasse a temática indígena de forma diferenciada do que vinha acontecendo e que alimentava estereótipos, equívocos, preconceitos. Por força da lei o Estado teve que se mobilizar para produzir material que ajudasse na formação dos educadores e que pudesse chegar às salas de aula. Ato contínuo, foram surgindo os editais para compra de livros que ajudassem nessa mudança.
É neste contexto que a literatura indígena aparece de forma mais sistêmica, real. As instituições já não podiam dizer que faltava material para trabalhar a temática na escola, porque agora, além de toda a produção editorial que já existia, havia uma voz que nascia de dentro dos povos indígenas e uma voz gritada com competência e arte. Neste sentido é que esta literatura se estabeleceu como uma voz, como um grito, como um suspiro de resistência. É assim que a vejo contribuindo para diminuir o preconceito contra nossos povos ancestrais.
IHU On-Line – Como as cosmologias dos povos ameríndios têm construído, ainda que marginalmente, novos modelos de convivência e de relação com o mundo?
Daniel Munduruku – Creio que é importante lembrar que a cultura humana é dinâmica. Ela está viva porque se alimenta da inventividade humana. Vejo a cultura como um organismo vivo que precisa se alimentar para permanecer vivo. Nesse sentido não dá para compreender a ideia muitas vezes repetida de que um povo deixa de ser tradicional quando incorpora elementos da cultura dominante. Quem pensa assim não sabe nada sobre cultura. Neste sentido basta permanecer atentos para ver como os indígenas são fiéis à cultura de seus antigos: eles estão atualizando sua participação dentro da sociedade. Fazem isso quando conseguem “manipular” os equipamentos que são frutos da inventividade humana a seu favor e a favor de seus povos. A escrita é um desses equipamentos. O vídeo é outro. A música também o é. A arte está aí para mostrar sua graça. É disso que estou falando quando afirmo que sobreviver é nossa maneira de resistir. Resistir é nossa maneira de nos apossarmos dos equipamentos para garantir que “podemos ser quem você é sem deixar de sermos o que somos”, como afirmava o movimento indígena nos anos 1980. Simples assim.
IHU On-Line – A produção literária de autores indígenas passa a circular no Brasil a partir dos anos 1990. O que aconteceu em termos editoriais desde então?
Daniel Munduruku – Acho que tudo começou com o desejo de se comunicar com a sociedade de forma escrita e de maneira qualificada. Isso levou alguns estudantes a frequentarem as universidades e com isso aprenderem a lidar com conceitos e paradigmas ocidentais. Creio que estas primeiras experiências de universitários gerou um desejo de conversar, de dialogar com a sociedade usando os mesmos parâmetros teóricos. Realmente não acredito que foi algo planejado, mas espontâneo que foi acontecendo e se estabelecendo como um movimento dentro do movimento. É real também que os primeiros escritores reconhecidos como tal pela sociedade tiveram passagem pela universidade. Alguns poucos foram alçados à literatura ainda que não tenham a técnica da escrita porque não frequentaram a escola da cidade, mas foram educados pela tradição. Particularmente não faço distinção, mas é preciso mostrar que isso é uma realidade que paira sobre nós.
Acho que é muito importante que novos escritores indígenas apareçam e mostrem suas culturas. Há muito o que ser dito ainda. Há um caminho a ser pisado pela frente e penso que as novas gerações de jovens indígenas saberão responder com criatividade às novas demandas que surgirão.
IHU On-Line – Qual a força política da literatura? Como escrever se transformou, também, numa forma de resistência dos povos indígenas?
Daniel Munduruku – Desconheço qualquer força política na literatura. Literatura é reflexo da força política de quem escreve. A cultura, do qual a literatura faz parte, tem uma força em si, mas a literatura que é produto, passa pelas convicções de quem a produz. Quando penso em força política penso no compromisso ético e estético de quem age a favor da sociedade. Tenho visto muita literatura canônica que não tem compromisso com a sociedade. Tenho a tendência de ver o escritor como um cidadão que se reconhece acima da média social e por isso muitas vezes assume atitudes contrárias à própria sociedade. Não se trata de um juízo de valor, mas de uma constatação.
Por outro lado, olhando a literatura indígena, vejo que há uma preocupação melhor por este compromisso político. Neste caso não se trata apenas de uma atuação pessoal, mas social. A grande maioria dos escritores indígenas têm um comprometimento com a causa dos povos indígenas justamente porque apresentam diferentes olhares sobre sua gente. Acho importante que muitos jovens escritores compreendam que a literatura é um exercício estético porque apresenta a realidade tal como ela é, mas também como podemos transformá-la. Isso vira um compromisso ético.
IHU On-Line – Como a questão da demarcação dos territórios indígenas, apesar de ser uma garantia constitucional, continua sendo uma miragem no universo político brasileiro?
Daniel Munduruku – Temos uma bancada ruralista muito forte. Temos interesses madeireiros muito consistentes; temos empresas mineradoras muito ricas; temos instituições cobiçosas muito atentas às riquezas ambientais. Elas se juntam, compram ou formam políticos para defenderem seus interesses. Elas se unem contra o patrimônio nacional, criando a falsa ilusão de que o crescimento passa pela exploração ambiental. A sociedade pouco consciente compra essa mensagem e os políticos aprovam leis que alimentam a ganância dos seus financiadores. É muito fácil imaginar que contra essa matemática não tem literatura que sobreviva. Não haverá, portanto, floresta que se mantenha em pé; rios que continuem correndo; terras que se consiga demarcar.
O pensamento economicista tem sido a desgraça do nosso país. Ou melhor, a desgraça da identidade de nosso país. Este olhar nos ilude porque alimenta nas pessoas equívocos narcisistas ou reforça nosso complexo de vira-lata. Tenho convicção de que o que torna o Brasil um país único é sua diversidade, é sua gente, é sua natureza. Infelizmente temos uma elite que está de costas para nossa realidade porque também ela tem a ilusão de que pode ser igual à do primeiro mundo. Sinto informar que, quando perceberem estes equívocos, já será tarde demais.
IHU On-Line – Como o povo Munduruku tem encarado os desafios do mundo contemporâneo? Para onde vai a humanidade e a vida no planeta?
Daniel Munduruku – O povo Munduruku resiste bravamente desde sempre. É um povo guerreiro que olha para si sem deixar de olhar para a realidade que o cerca. Tem criado alternativas para que sua cultura seja mantida através de permanentes assembleias, ocupações, diálogos com a sociedade envolvente e desenvolvimento de projetos sociais. Além disso, o principal município que abriga o maior número de Munduruku no Pará – Jacareacanga – tem sempre um vice-prefeito que é nativo e várias cadeiras da câmara municipal ocupadas por representantes da comunidade. Isso não tem diminuído as tensões que por lá ocorrem. Os interesses econômicos também estão presentes por ali, mas esta presença efetiva alimenta a esperança de dias melhores, porque não passa despercebido dos olhares atentos de nossa gente. Conste-se também que muitos jovens Munduruku estão na universidade, se preparando para os embates futuros. Um ponto a mais na nossa resistência.
Não sou um profeta do apocalipse. Não fui criado para ser um homem do futuro. Sou apenas do presente. Se faço, no entanto, um exercício de pensar no que vem pela frente, confesso que me entristeço. Quero crer que o planeta ainda vai dar umas chacoalhadas para tentar escapar da sina gananciosa dos seres humanos. Isso não me preocupa. Só sei ser hoje. Fim.
Nota:
[1] A Lei 11.645/2008 altera a Lei 9.394/1996, modificada pela Lei 10.639/2003, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”. (Nota da IHU On-Line)
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A existência para além do economicismo destrutivo e desenfreado. Entrevista especial com Daniel Munduruku - Instituto Humanitas Unisinos - IHU