Comunidades lutam para sobreviver após incêndios no Pantanal

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23 Outubro 2020

Mesmo com as primeiras chuvas, comunidades tradicionais do bioma enfrentam a fome, a perda do gado e o medo de uma grande mortandade de peixes.

A reportagem é de Juliana Arini, publicada por Greenpeace, 20-10-2020.

O Pantanal (ainda) é o único bioma brasileiro com uma equação quase ideal. Diferente do Sul e do Sudeste, a ocupação de duzentos anos conseguiu balancear as atividades econômicas com a preservação ambiental. Antes das queimadas, o bioma mantinha 86% de suas áreas naturais. Um equilíbrio ameaçado pelos incêndios que já atingiram 27% do Pantanal. A vida em um futuro pós-fogo é o maior temor dos pantaneiros, entre produtores familiares, quilombolas e indígenas. Cientistas alertam que as queimadas devem ser a rotina na região daqui para a frente e que o governo precisa mudar sua forma de atuar no bioma.

O Greenpeace Brasil percorreu mais de mil quilômetros para registrar como os incêndios afetaram a vida das populações locais. Na área das nascentes que alimentam a planície inundável pantaneira, quilombolas ainda lutam contra a falta de água e alimentos. “Mata-Cavalo secou inteiro, tudo queimou. Sempre há fogo, mas esse ano queimou muito. Perdemos roças de banana, abacaxi, cana. Perdemos tudo”, diz Arlete Pereira Leite, quilombola e presidente da Associação dos moradores do Quilombo de Mata-Cavalo de Baixo, uma comunidade que resiste desde 1893, em Nossa Senhora do Livramento, a quarenta quilômetros da capital mato-grossense.

Os quilombos do Pantanal têm origem na ocupação portuguesa de Mato Grosso, desencadeada pela descoberta do ouro em Cuiabá, em 1722. Foi quando chegaram os primeiros africanos ao estado, escravizados para trabalhar na mineração e nos engenhos de açúcar. Dessa história de opressão surgiram 28 comunidades quilombolas no bioma. Muitos ainda sobrevivem apenas da roça de subsistência, grande parte perdida para os incêndios deste ano.

“O quilombo é o local onde nossos ancestrais viveram e deram oportunidade da gente dar seguimento a nossa existência. Quilombo é o espaço de pertencimento e identidade onde sobrevivemos. Aqui só tiramos o essencial para nosso consumo e subsistência”, diz Laura Ferreira da Silva, quilombola da Comunidade Ribeirão da Mutuca, de Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso, e integrante da Coordenação Nacional de articulação das Comunidades Remanescentes dos Quilombos do Brasil (Conaq).

A vida das comunidades da região foi drasticamente afetada pelo fogo. “Pra mim, que nasci e cresci aqui, esse foi o pior ano da minha vida. As famílias todas tiveram problemas respiratórios por causa da fumaça. As queimadas acabaram atravessando toda a produção de onde tiramos o nosso sustento”, diz Laura.

Entrega de cestas básicas no Quilombo Mata-Cavalo. (© Leandro Cagiano / Greenpeace)

A sociedade civil tem prestado apoio às comunidades afetada pelos incêndios desde setembro. Entidades como o Instituto Centro de Vida (ICV), SOS Pantanal, entre outros estão trabalhando para viabilizar a logística para que doações cheguem onde a necessidade existe. O escritório do ICV em Cuiabá foi transformado em um centro logístico e, de lá, o material é distribuído para comunidades. Em setembro, o Greenpeace contribuiu com cestas básicas e materiais de combate a incêndios.

A logística de distribuição organizada pelas organizações inclui os povos indígenas e deve durar até que as populações locais consigam recuperar as perdas. ”Agora é um outro processo para voltarmos a viver dentro do nosso território. Primeiro vem as chuvas que são ácidas, elas caem dentro do rio e matam os peixes. A caça já não tem mais. Até ser possível voltarmos a produzir alimento, vamos tentar tirar sementes, mas plantio só ano que vem”, diz Solio Urupê Chue, Integrante da coordenação da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt).

As cestas básicas e a água potável são um apoio para que as pessoas e comunidades continuem resistindo após terem perdido tudo. “A fala unânime é que as necessidades não param com a chegada das chuvas. Muitas podem se agravar. Alguns córregos e rios, que estão quase secos, vão se tornar um lamaçal”, diz Deroni Mendes, coordenadora do programa de direitos socioambientais do ICV em Cuiabá, Mato Grosso.

Terror

As comunidades de Barão de Melgaço estão entre as mais afetadas pelos incêndios. Entre janeiro a 19 de outubro de 2020, o município esteve em quinto no ranking nacional de focos de calor, segundo dados do satélite de referência do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foram registrados 3.711 focos de calor. As lembranças de terror das queimadas marcaram os ribeirinhos do rio Cuiabá, a duzentos quilômetros da capital de mesmo nome.

“Fogo pulou lá no (rio) Tamandaré e veio, daí tinha uma figueira muito alta e o vento jogou as chamas e o fogo se alastrou. Achei que ele não ia entrar aqui, porque tinha uma rodovia grande, e uma mata de dois quilômetros de beira de rio. Mas às cinco da manhã estava alastrado desse lado. Um rapaz veio aqui ajudar, eu só ouvia o povo lá em cima gritando e jogando água nas casas.“, conta Armindo Alves de Freitas, 74 anos, morador da comunidade Piúva, de Barra de Melgaço.

Creusa e Armindo, moradores da comunidade Piúva, em Barão Melgaço (MT), tiveram suas terras queimadas em um dos incêndios que se espalhou pelo Pantanal. (© Leandro Cagiano / Greenpeace)

O ribeirinho chegou a passar mal após o combate. “Ninguém veio nos ajudar. O bombeiro parou lá do outro lado do rio e foi embora. Um policial chegou a vir aqui, mas não fez nada. No dia seguinte quando conseguimos controlar, eu fiquei ruim. A pressão subiu, eu só lembrava do episódio de fogo e as labaredas urrando. Tive que ir ao cardiologista e ele me disse que eu tinha desidratado de uma vez”, diz Armindo.

Liderança na comunidade quilombola de Mata-Cavalo de Cima, Zulmira Maria Lúcio também relata o esgotamento físico causado pelas queimadas. “Eu fiquei sem voz, sem força de falar, eu fiquei 15 dias com aceleramento do coração e achei que tinha perdido minha vida com aquele fogo bravo”.

A “dequada” é outro temor das comunidades. O evento acontece quando a chuva leva as cinzas das queimadas para dentro dos rios de planície do bioma. A baixa vazão desses ambientes gera o acúmulo dos detritos e de material orgânico, o que reduz a oxigenação da água desencadeando a mortandade de centenas de peixes. O fenômeno, natural do bioma, pode ser catalisado em centenas de vezes pela intensidade das queimadas deste ano.

“Para nós o pior ainda não passou. Se vier a dequada o pescador não terá como sobreviver no próximo ano. O peixe vai acabar. Alguém precisava fazer alguma coisa, limpar as bocas das baías do Pantanal”, afirmou José Horácio Rondon de Moraes, descendente do povo Guató e pescador profissional do Pantanal. Ele integra uma comunidade de 30 famílias, na Colônia Z11 de Porto da Manga, na região do Porto Jofre, a 300 quilômetros da capital.

O ecoturismo, atividade forte na região, também tem sido drasticamente impactado. “O ecoturismo é importantíssimo para a conservação do meio ambiente, a natureza e os animais tem uma valoração. Muitas das pessoas que estão combatendo o fogo de forma voluntária são ligados ao ecoturismo”, afirma Giuliano Bernadon, profissional do turismo e brigadista voluntário no Pantanal. “O ecoturismo já sofreu com a Covid-19, e agora mais ainda por causa dos incêndios, nossa pousada sofreu muitos cancelamentos devido aos incêndios no Pantanal. Depois que tudo isso passar, para ajudar o ecoturismo a se levantar, as pessoas devem visitar o Pantanal, para ver a resiliência do local e trazer essa força que a gente precisa”.

Futuro

Pesquisadores alertam que os grandes incêndios podem se tornar uma constante na região daqui em diante. As mudanças climáticas, praticamente ignoradas pelas atuais políticas nacionais, seriam uma das explicações para a intensidade das queimadas deste ano. “No início achávamos que estas seriam situações que só iriam ocorrer depois de 2040. Mas sim, as atuais queimadas no Pantanal já são exemplos dos cenários das mudanças climáticas desencadeados por extremos climáticos. O que precisamos agora são medidas urgentes de mitigação para que a população consiga sobreviver às secas cada vez mais intensas e possivelmente seguidas por grandes incêndios.”, afirma José Antônio Marengo, meteorologista e diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastre Naturais e um dos colaboradores do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (IPCC).

Os povos tradicionais concordam com os cientistas. Mas temem que o pedido de socorro dos pantaneiros seja (novamente) ignorado. “O clima aqui ficou diferente há muito tempo. A natureza está mudando por causa do desmatamento e as coisas que o homem faz. Deus, ele perdoa, mas a natureza não vai nos perdoar. Cada dia que passa temos que ter certeza que não tem volta. A temperatura subindo tudo, as geleiras derretendo. E isso é o tempo que está chegando e nós temos que nos prevenir”, diz Creuza da Silva Freitas, 50 anos, moradora da comunidade Piúva, em Barão de Melgaço.

Para Cristiane Mazzetti, da campanha de florestas do Greenpeace Brasil, diante deste cenário, o poder público deve se fazer mais presente na região. A ausência do estado foi uma constante em toda a expedição pelo Pantanal. “Vimos o fogo chegando muito perto da casa das pessoas e elas desamparadas, tendo que apagar chamas com balde. Isso nada mais é do que reflexo da política antiambiental do governo de Jair Bolsonaro. Que primeiro não colocou esforços na prevenção para coibir queimadas ilegais e a propagação do fogo e quando os incêndios chegaram, demorou para agir. É claro que existem exceções, pessoas que trabalham para o estado e vieram para região e estão aqui atuando lado a lado com a sociedade civil. Mas perante uma crise dessas proporções, combater os incêndios e proteger o Pantanal deveriam ser uma prioridade absolutas para o governo”.

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