“Pedro, Simão, filho de João, tu me amas?” Uma pergunta para poucos (Jo 21,15-19)

Foto: Cathopic

19 Mai 2021

 

"Amor e estão unidos em matrimônio. Quando termina um, termina o outro. Quem não ama não crê que tudo será diferente", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

 

Eis o artigo.

 

O evangelho sobre o qual vamos refletir hoje é Jo 21,15-19. Dessa passagem vem uma pergunta impactante: “Pedro, Simão, Filho de João, tu me amas?” Pergunto: você já fez essa pergunta para alguém que lhe fez um mal, que traiu sua confiança? Você me responderia: por que eu haveria de perguntar? A minha resposta está em três perguntas e três respostas.

Primeiro, quero situar para você o contexto desse evangelho. Estamos no capítulo vinte e um. O evangelho da comunidade do discípulo amado já havia terminado com os versículos trinta e trinta um do capítulo vinte: “Jesus fez, diante de seus discípulos, muitos outros sinais ainda, que não se acham escritos neste livro. Esses, porém foram escritos para crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.”

Daí surge outra pergunta: por que outro redator acrescentou o capítulo vinte e um? A resposta é simples. Estamos no fim do ano cem. Pedro e João já tinham morrido. Pedro era a grande liderança do cristianismo emergente. Em torno da memória deles havia comunidades com atuações diferenciadas. Era preciso unir essas duas lideranças, os dois modos de viver o cristianismo [1]. Muitos pensavam que João, que significa “ternura de Deus”, não morreria antes da volta de Jesus. Segundo a tradição dos apócrifos, ele morreu em Éfeso. Aliás, foi enterrado vivo pelos seus discípulos declarando amor incondicional a Jesus [2].

Nesse capítulo, Pedro e João estavam numa pesca. O ressuscitado chega pela terceira vez, e todos o reconhecem. Ele come pão e peixe com eles. Como nos sinóticos, Jesus chama Pedro às margens do mar da Galileia. Seria para dar legitimidade ao evangelho de João? Sim. Na sequência, Jesus faz três perguntas a Pedro Simão sobre a grau de seu amor por ele.

Uma vez, Pedro e duas, Simão. O que isso significa? Dois lados de uma mesma pessoa. Pedro é a pedra e a gruta escavada na rocha, lugares onde Jesus pediu para fixar a comunidade Igreja [3]. Sobre a fortaleza da pedra e sob, debaixo, da gruta, as Cefas, outro nome de Pedro (Jo 1,48), dos buracos que se formavam nas rochas, a casa dos pobres. Já Simão significa “aquele que ouve”, que interpreta corretamente.

As três respostas de Jesus: “Apascenta as minhas ovelhas/cordeiros” referem-se ao Pedro Pastor que cuida. “Quando ficares velho, te conduzirá aonde não queres” (v.18) está associado ao modo como Pedro morreu, crucificado de cabeça para baixo.

Perguntar três vezes relembra a profissão de fé israelita do Shemá Israel de Dt 6,4-9. Amar com o coração (razão e sentimentos integrados), com a alma (ser) e com as posses (dinheiro). Perguntar três vezes relembra, sobretudo, as três vezes em que Pedro negou Jesus, como demonstração de não amor (Jo 18,17-27).

Toda a fala do ressuscitado gira em torno do amor e da fidelidade, palavras-chave no evangelho de João. Amor é o centro da missão de João, de Pedro e das comunidades. No original grego são utilizados dois substantivos para falar do amor, o ágape e o amor philia. Jesus usa ágape na pergunta, e Pedro responde com o philia. Em síntese, ágape é o amor fraterno, incondicional de Deus e do ser humano. Philia é o amor da amizade, dos pais pelos filhos. Eles são sinônimos e exigem fidelidade no seu cumprimento.

Jesus confere a Pedro a tríplice missão de ser guia da comunidade, ainda que ele não fosse perfeito no amor. Os que seguiam Pedro devem seguir o Pedro que seguiu Jesus. Os discípulos de João, da mesma forma. Era isso que o capítulo vinte e um quis dizer.

Voltando à pergunta inicial: você perguntou a quem o traiu se ele o ama? Para fazer essa pergunta, você precisa estar antenado com o primeiro amor, seja o fraternal ou o da amizade, ambos envoltos com o papel da fé. Pedro e João, com esse relato, nunca perderam a fé e o amor. Eles voltaram, simbolicamente, ao mar da vida, da Galileia, onde tudo começou.

Lembre-se sempre disso. Amor e fé estão unidos em matrimônio. Quando termina um, termina o outro. Quem não ama não crê que tudo será diferente. Jesus, pastor que ama, não pergunta pela traição de Pedro, mas pelo refazer de seu amor fiel. O amor tudo perdoa para sempre recomeçar, porque quem ama de verdade permanece [4] no amor sempre como os Pedros, os Simãos e os Joãos de ontem e hoje.

Notas:

[1] GARCIA, Paulo Roberto. João 21: indícios para a reconstituição de movimentos do Cristianismo Primitivo. Revista Caminhando v. 26, p. 1-11, jan./dez. 2021. Disponível aqui.

[2] FARIA, Jacir de Freitas. A Vida Secreta dos Apóstolos e Apóstolas: à Luz dos Atos Apócrifos. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 184-87.

[3] FARIA, Jacir de Freitas. Pedro não é pedra. Disponível aqui.

[4] FARIA, Jacir de Freitas. O permanecer, a verdade, o amém e os laços de eternidade em Jo 15,1-8 e na pandemia. Disponível aqui.

 

 

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