A biodiversidade do bioma pampa e a urgência de sua preservação. Entrevista especial com Heinrich Hasenack

Durante a conferência do IHU ideias, o entrevistado falou sobre as características da vegetação originária do sul do Brasil, Uruguai e Argentina e da necessidade de políticas públicas de conservação

Pampa | Foto: Arlei Antunes / Wikimedia Commons

Por: Ricardo Machado | 06 Dezembro 2021

 

Para contar e compreender a história e as características geológicas e botânicas do bioma pampa, é prudente fazer um recuo de 20 mil anos. A região do pampa compreende a metade sul do Rio Grande do Sul, o Uruguai, estendendo-se da província de Buenos Aires até Baía Blanca, em Mar del Plata, na Argentina.

 

“Esses campos são diferentes em relevo, na fisionomia – ou seja, nas espécies que são visíveis – e também são distintos em relação ao solo. A ideia que eu gostaria de passar é que não existe apenas um pampa, um campo, que cobre e é homogêneo em todo o RS, mas diferentes campos que formam o bioma pampa”, explica Heinrich Hasenack, durante sua conferência Mudanças no uso da terra no Bioma Pampa, conflitos e potencialidades, disponível no IHU, à qual reproduzimos em formato de entrevista.

 

Contudo, toda essa riqueza e possibilidade de manejo sustentável do campo está, cada dia mais, ameaçada pela monocultura. “Quanto à soja, ela tem avançado para regiões de pampa de solo não adequado e um dos nossos desafios é o cuidado de não ocupar áreas que têm uma inaptidão para cultivos anuais. Elas não deveriam ser usadas para o cultivo de soja pois têm uma grande chance de degradação, e com o abandono do cultivo de soja elas se tornam alvo fácil do capim-annoni e outras invasoras agressivas sobre esta região” pondera Hasenack.

 

Na opinião do professor, uma alternativa contra essa degradação contínua seria apostar na agroecologia para além da agricultura familiar e aplicá-la em escalas maiores. “Entendo o lado do produtor de que ele tem a propriedade para produzir, mas ele não pode detonar a propriedade, senão ele não vai produzir mais. Os princípios da agroecologia são nessa linha, de considerar boas práticas na propriedade rural, nada mais do que isso. A agroecologia tem como pressuposto o conhecimento da terra na qual estamos cultivando e, ao conhecê-la, podemos adotar técnicas que são as mais adequadas ao potencial daquele lugar. Essa é a sabedoria”, ensina.

 

Heinrich Hasenack (Foto: UFRGS)

Heinrich Hasenack possui bacharelado e licenciatura em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado em Ecologia e doutorado em Agronegócios, ambos pela UFRGS. Atualmente é professor adjunto da UFRGS. Entre os projetos de pesquisa que desenvolve, coordena a Atualização do Mapa de Cobertura Vegetal do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – A que região da América Latina corresponde o bioma pampa?

 

Heinrich Hasenack – Antes de entrarmos no tema do bioma pampa do Rio Grande do Sul, permitam-me contextualizar algo importante. Precisamos olhar o entorno, nada está isolado no globo terrestre. Então, se falamos de bioma pampa e olhamos para o mapa da América do Sul, veremos várias áreas que correspondem a formações abertas, campestres e alguma semidesérticas – como a caatinga no Nordeste. Nas regiões subtropicais – e a região sul fica abaixo do Trópico de Capricórnio – existe uma vegetação que se estende desde Baía Blanca, na Argentina, ocupando praticamente toda a província de Buenos Aires, todo o Uruguai e o Rio Grande do Sul na metade sul. A matriz (geológica) dessa região é uma matriz campestre. Temos aqui matas de galeria, algumas formações litorâneas e algumas manchas de matas.

 

Mapa do Pampa (Fonte: Signifcados)

 

À medida que ultrapassamos o paralelo 30º, mais ao norte e no interior do RS, o que se percebe é que esses campos vão até o norte do Paraná. Como se pode observar nos mapas geológicos. Há também florestas tropicais, que margeiam as zonas campestres, e florestas subtropicais ou florestas estacionais deciduais e semideciduais. As florestas de araucárias também estão presentes próximas a estas regiões campestres do pampa. Elas emolduram os campos que estão ilhados na Mata Atlântica.

 

 

IHU – Por que na região do pampa a vegetação campestre predominou em relação à florestal?

 

Heinrich Hasenack – Cerca de 20 mil anos atrás, no final do Pleistoceno, toda essa região provavelmente era campestre porque o clima na época era mais seco e mais frio. A partir do final do Pleistoceno e início do Holoceno, o clima se tornou mais quente e úmido, fazendo com que as formações florestais pudessem se expandir a partir do Norte, ocupando, primeiramente, as porções mais baixas do território ao longo da costa e do Rio Uruguai, e depois subindo os vales pelo Rio das Antas, dos Sinos, Jacuí, Iguaçu etc.

Por mais que, atualmente, tenhamos um clima úmido e seco, não chegou o tempo em que toda essa região pudesse ser ocupada por floresta. Nós temos esses campos e, embora o clima atual permita ter floresta em grande parte deste território, porque temos chuvas o ano inteiro e temperaturas suficientes para manter uma condição florestal, isso não aconteceu. Entre o Pleistoceno e nossa época atual surgiram nós, os humanos, que contribuímos para refrear esse avanço florestal. Essa paisagem campestre é um testemunho de um passado de mais de 20 mil anos em que dominava esse campo por uma área que se estendia mais ao norte do que vemos hoje.

Nós não temos apenas um tipo de campo nas áreas de altitude como também não temos apenas um tipo de campo no pampa. Visitando os locais, veremos ambientes diferentes. Embora os botânicos concordem com as denominações das florestas que margeiam o pampa, os tipos de vegetação campestre são motivo de debate e nem sempre foram unanimidade.

 

 

IHU – No Rio Grande do Sul há subdenominações às diferentes regiões do bioma pampa? Quais?

 

Heinrich Hasenack – Eu trabalho com uma diferenciação de campos cuja ideia remete às ideias da professora Ilsi Boldrini, em um texto que ela escreveu em 2009 e caracterizou de forma descritiva, assim como (Balduíno) Rambo fez sobre as paisagens do RS, e em conjunto buscamos uma forma de espacializá-los e delimitá-los. Com isso, temos aqui uma amostra fotográfica desses campos.

 

(Foto: Reprodução | Youtube)

 

Esses campos são diferentes em relevo, na fisionomia – ou seja, nas espécies que são visíveis – e também são distintos em relação ao solo; há campos mais pedregosos, áreas de solo mais profundo, áreas de solo mais arenoso, campos arbustivos etc. A ideia que eu gostaria de passar é que não existe apenas um pampa, um campo, que cobre e é homogêneo em todo o RS, mas diferentes campos que formam o bioma pampa e os campos do bioma mata-atlântica.

 

 

IHU – Como foi feita essa divisão?

 

Heinrich Hasenack – Essa divisão foi possível porque essa vegetação está respondendo a uma condição ambiental. É lógico que a colonização dessa região por diferentes espécies se deu, também, pela evolução dessas espécies nesse ambiente, seja migrando da região sul ou norte do RS com a migração arbórea, temos aqui essa condição distributiva que está ligada às diferenças na sua abundância de acordo com condições que estão associadas ao relevo, seja pela altitude, pela declividade ou pela condição dos solos.

Nós temos no RS – e também no Paraná e Santa Catarina, bem como no Uruguai e na Argentina, na porção pampeana – uma precipitação uniforme ao longo do ano e de temperatura que suporta a produtividade primária dessa vegetação. Estamos em uma transição de ambientes tropicais para ambientes temperados e, de norte para sul, nós temos espécies que estão mais adaptadas a uma condição tropical que vão diminuindo sua presença na mesma medida em que nos dirigimos para a região sul do RS.

Isso dá, portanto, a esses campos que temos hoje, a cara do processo de evolução ao longo do tempo e mostra que a história da ocupação da vegetação do pampa é mais antiga que a história da vegetação florestal.

Os campos estão aqui não porque a floresta foi derrubada e eles sobraram. Os campos são áreas remanescentes de um período seco e frio anterior que não permitiu o desenvolvimento de florestas, mas de vegetação campestre. Essa vegetação foi se modificando ao longo do tempo e algumas espécies conseguiram se adaptar a um clima mais úmido e mais quente, outras desapareceram porque não toleraram os ambientes, houve espécies que conseguiram migrar. O avanço das florestas também tem sua contribuição na convivência e nas ações dos contatos da mata-atlântica com o pampa. Isso é importante para a fauna, que tem contribuição fundamental para a polinização, a distribuição das sementes, com uma integração bastante peculiar. Os animais, especialmente os herbívoros, desenvolvem um papel importante para manter a grama do campo baixa, que contribui para a manutenção da vegetação do pampa.

 

 

IHU – Como se caracteriza essa vegetação do pampa?

 

Heinrich Hasenack – Ela é diferenciada do ponto de vista fisionômico e responde às condições locais da chuva e temperatura que reina no RS. Ou seja, se estou em um ambiente de costa, essa chuva que cai vai escorrer rapidamente pelas encostas e se depositar nas áreas baixas. Nessas regiões a água vai permanecer por mais tempo e consequentemente teremos um período de presença de água menor na encosta do que na planície. Da mesma forma, em solos mais profundos, haverá maior capacidade de armazenamento de grandes volumes de água do que nos solos rasos, como na campanha, onde há rocha aflorante na superfície e a camada de solo é muito delgada. O solo encharca, mas com a saída do sol ele rapidamente fica seco, e consequentemente é muito difícil que ali se estabeleça uma vegetação lenhosa.

Nos campos arbustivos temos uma variedade de altos e baixos e de sombra das áreas expostas para o sul e de maior insolação para o norte, que produz uma diversidade grande de espécies não apenas campestres, mas também arbustivas e lenhosas. Esses elementos nos permitiram, portanto, com base na descrição da vegetação ocorrente em cada um dos campos presentes, perceber as preferências de cada uma das vegetações estabelecendo os limites das regiões campestres com base na altitude e declividade, dos levantamentos do relevo – os mesmos usados na classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

 

IHU – Quais são os vetores de variabilidade na conformação do bioma pampa?

 

Heinrich Hasenack – Nós temos exemplos de como um ambiente natural resulta de uma variabilidade no espaço, podem ser pequenos ou grandes - no tempo, podem ser jovens ou mais antigos - e eles podem estar ambientes frios ou quentes, variando de secos para úmidos. Falamos anteriormente que os campos têm origem no Pleistoceno, mas também com vegetação originária no Holoceno e também no tempo presente.

Até agora, falamos das características presentes na região até antes de chegada dos europeus. Mapas antigos de 1801, como o de José de Saldanha, que foi um topógrafo português que veio fazer levantamento no RS, já definiam as áreas de floresta que nós temos no norte do Estado. O professor Nilo Bernardes, ao fazer um estudo do povoamento do RS, mapeou as colônias europeias que vieram no início do século XIX e percebeu que as colônias estabelecidas, seja pelo Império, seja por iniciativa privada, todas as alemãs, italianas e demais etnias que chegaram na região ocuparam basicamente áreas florestais. Os campos já eram ocupados por portugueses que receberam do Império sesmarias ou que foram tomando posse para garantir, posteriormente, a posse legal dessa parte do território brasileiro.

 

 

IHU – O que mudou, então, a partir da chegada e da colonização dos não ibéricos na região do pampa?

 

Heinrich Hasenack – O que se percebe é que, a partir dessas colônias, existem dois trabalhos importantes de dois geólogos que passaram por aqui nas décadas de 1960 e 1970. O professor Raymond Pébayle, da Universidade de Brest, que defendeu seu doutorado sobre os agricultores e criadores do Rio Grande do Sul, no qual ele detalhou como, a partir das antigas colônias, as áreas contíguas na região do Planalto Médio e Missões, bem como nos campos de cima de serra, os campos foram sendo ocupados por lavouras.

Da mesma forma, o professor Reinhold Lücker, da Universidade de Tübingen, estava mais interessado na mudança da infraestrutura agrária pela influência da entrada da soja no Brasil. A soja no Rio Grande do Sul começou na região noroeste, em Santa Rosa, onde ele avaliou, por meio de fotos aéreas, propriedades rurais nos anos de 1960 e 1980, e mostrou que na década de 1960 havia vários cultivos e plantações que, lentamente, foram sendo substituídas por soja. Há propriedades em que se alterna soja no verão e trigo no inverno, mas a maioria é só soja, e em algumas regiões há ainda um pouco de incidência de florestas, que também diminuiu. Houve uma mudança que hoje se  consolidou, em que grandes partes das áreas agrícolas onde se mecanizou a produção, tudo foi transformado em lavoura de soja. Essa soja avançou da região das colônias em direção às formações campestres e de lá seguiu adiante. Esses dois estudos são bem importantes pois descrevem esse tempo presente.

Com isso temos a possibilidade, também por meio de imagens de satélite, de saber como era a distribuição dos campos no passado, mas quanto deles estão hoje ocupados por uso antrópico.



IHU – Como se caracteriza o uso antrópico? Quais são os principais cultivos no extremo sul do Brasil?

 

Heinrich Hasenack – Falando muito rapidamente, quando observamos o mapa, percebemos que as zonas em rosa (plantação de soja) e em laranja (agricultura familiar) são áreas que eram de floresta e que foram desmatadas para esses cultivos [ver imagem abaixo]. A soja se estabeleceu na região noroeste e, depois, acabou migrando mais para o sul e para o leste, nos campos de cima da serra. Eles foram lentamente sendo ocupados por ela, juntamente com os incentivos estatais ao cultivo do grão. Isso só foi possível de identificar porque, também na década de 1960 e 1970, pesquisas apontaram os problemas de erosão e acidificação do solo, o que permitiu um trabalho de conservação e de fertilização que tornou possível a agricultura em áreas que não eram possíveis, até que se conhecesse suficientemente as características regionais.

 

(Foto: Reprodução | Youtube)

 

Antes disso temos uma outra história agrícola que aconteceu a partir dos açorianos, a partir de 1780, em que o arroz se institui no Brasil como cultivo agrícola no final do século XVIII, e a expansão a partir do final do século XIX e início do século XX. Esse cultivo saiu da região litorânea e foi até Uruguaiana, sempre nas áreas úmidas e se propiciou com a drenagem dos campos úmidos. Estas são as duas culturas de maior extensão no RS e o arroz tem uma história de maior convívio com a pecuária e uma rotação em que, por um período de tempo, a área fica livre dele para combater o arroz vermelho - e com isso se pode colocar o gado e a vegetação campestre rebrota. Embora seja uma seleção de espécies, isso permite que elas possam ter um banco de sementes e se desenvolver.

Quanto à soja, ela tem avançado para regiões de pampa, de solo não adequado e um dos nossos desafios é o cuidado de não ocupar áreas que têm uma inaptidão para cultivos anuais. Elas não deveriam ser usadas para esse cultivo pois têm uma grande chance de degradação, e com o abandono da soja elas se tornam alvo fácil do capim-annoni e outras invasoras agressivas sobre esta região.

Nós temos uma outra cultura aqui no Estado e que avançou bastante que é a silvicultura, que tem seu foco na região noroeste da serra do sudeste. Houve uma tentativa de se expandir para a região de São Gabriel, foi cultivada em áreas que eram baratas do ponto de vista da aquisição, mas não necessariamente aptas para cultivos arbóreos. Também se vê a ampliação da silvicultura para os campos de cima da serra. No século XXI, as áreas de silvicultura aumentaram em 50%.

 

 

IHU – Quais são as grandes classes de ocupação do solo no RS?



Heinrich Hasenack – São cinco classes: agricultura, campo, mata, água e urbano. O que perceberemos é que mata permaneceu estável neste século, água permaneceu estável e o que mudou na comparação entre 2002, 2009 e 2015 é que aumentou a agricultura e diminuiu o campo. O que mudou efetivamente foi a perda de campo para a agricultura. Se olharmos para os tipos de agricultura, vamos notar que a silvicultura deu um salto de 2002 para 2009 e depois aumentou menos para 2015. Temos um aumento da agricultura de sequeiro, principalmente soja. O arroz não aumentou muito e o uso agrícola misto diminuiu, provavelmente em detrimento da agricultura de sequeiro.

Se observamos a distribuição do pampa como um todo, do ponto de vista da proporção do tamanho das áreas em milhões de hectares, teremos aqui os campos do litoral, os campos arbustivos, os campos de barba de bode e os campos da depressão central. Os campos arbustivos são os de maior área e, proporcionalmente, os de menor uso. Nos campos litorâneos, grande parte da superfície é de água, cerca de 60%. Os campos de barba de bode tiveram a ocupação diminuída. Em geral, entre 2002 e 2015 houve uma diminuição das áreas de campo.



IHU – Qual a distribuição dos cultivos no RS?



Heinrich Hasenack – Os cultivos de sequeiro estão nas áreas com solo bem drenado. Os cultivos de arroz estão nos campos úmidos ou que têm solos hidromórificos. A região da silvicultura, que está associada ao uso agrícola misto, está concentrada nas formações originalmente florestais.

 

(Foto: Reprodução | Youtube)

 

IHU – Existem estratégia de manejo sustentável para o bioma pampa, considerando sua complexidade e variabilidade?



Heinrich Hasenack – O que eu quis mostrar é que não existe um pampa homogêneo. Nós temos um pampa heterogêneo e, se quisermos cuidá-lo e preservá-lo, precisamos pensar em políticas públicas de longo prazo visando diversificar a produção rural, levando em consideração a diversidade ambiental e cultural do solo. Existem outras coisas que podem ser cultivadas e não apenas arroz, soja e silvicultura. Temos áreas que não são aptas para esse cultivo e que já foram convertidas e podemos usar melhor. É necessário usar de modo mais eficiente as áreas já convertidas à agropecuária para que, com isso, não precisemos expandir a agricultura sobre áreas campestres e florestais que são nosso repositório de serviços ecossistêmicos. São esses lugares não usados na agricultura que guardam a água, protegem os polinizadores, que guardam habitats para fauna, são repositórios genéticos. Por isso deveríamos fomentar maneiras de usar essa vegetação nativa na produção de bioativos, seja de controle biológico ou desenvolvimento para a indústria sem destruir o campo.

Podemos estimular a restauração das áreas de aptidão baixa para a agricultura para que o uso seja reconvertido nos serviços ambientais originários e que, por sua vez, favoreçam as áreas de cultivo que estão em uso. Precisamos muito reforçar e não destruir a extensão rural, porque é ela que garante a tecnologia que foi e vem sendo desenvolvida possa ser adotada na propriedade rural. Para citar um exemplo de décadas de estudo na área da zootecnia, o manejo adequado do campo e dos animais é capaz de triplicar a produção de carne. Se adotarmos tecnologia no setor de gado de corte e fazer os processos de adubação do solo e semeadura com sementes hibernais, conseguimos ir muito mais longe.

 

 

Nós temos aqui um ativo muito importante que é a criação pecuária sobre o campo nativo, que o mantém e permite que as espécies desse habitat campestre convivam com o gado bovino e ovino, enquanto soja, arroz e eucalipto não o permitem porque eles limpam a áreas das espécies nativas e colocam as cultiváveis; o mesmo ocorre com quem elimina o campo nativo para semear pasto.

Ainda como exemplo, há outros tipos de cultivos perenes que poderiam conviver com o campo que são os plantios de nogueira, de oliveiras e videiras. Temos também citriculturas e outras coisas do tipo. Se pensarmos que esses cultivos ainda são parcialmente industrializados, temos uma cadeia produtiva rica, mas nada disso vai acontecer se não tivermos uma concertação de políticas governamentais, de reforço à extensão rural para que a tecnologia desenvolvida nas universidades e centros de pesquisa chegue ao produtor. Não podemos continuar fazendo agricultura expandido as áreas de cultivo e precisamos cuidar melhor das áreas já desenvolvidas, utilizadas para esta finalidade, para que possamos protegê-las para os serviços ambientais, sem os quais nossa agricultura vai pifar.

 

 

IHU - Como a geografia pode tornar a educação escolar e universitária mais transdiciplinar? Como fazer esse diálogo entre as ciências da natureza e as ciências humanas?



Heinrich Hasenack – Precisamos transmitir aos nossos alunos que o nosso território – seja ele do Estado, do país, do bioma ou da propriedade rural – precisa atender a nós, humanos, garantindo que tenhamos abrigo, alimentos e conservação. Nós precisamos continuar vivendo, e para viver é necessário cultivar nosso alimento. Isso é o que acontece na natureza com todos os animais e plantas. Isso é o que faz com que a biodiversidade se mantenha e nós humanos mantenhamo-nos no território. Por isso não se pode só conservar ou só cultivar ou só urbanizar. Deve-se lembrar que se o cultivo próximo de onde moramos torna-se inviável, o acesso à alimentação se torna cada vez mais caro, pois temos que buscar de outros lugares. O mesmo ocorre com a água.

Nós não temos, por exemplo, água suficiente, nem no subsolo, para irrigar toda a área agrícola do Estado. Em pouco tempo ela vai sumir. Temos que escolher para irrigar as melhores áreas, para tirar o melhor proveito delas. Nas demais temos que manejar com cultivares que não exigem tanta água ou que se adaptam melhor a ambientes mais secos e de solos mais rasos. Hoje, diferente da década de 1980, temos um conhecimento muito mais detalhado, avançamos muito nas últimas décadas conhecendo melhor os solos, o relevo, os cultivos agrícolas, técnicas de conservação do solo, de melhoramentos de sementes etc. Tudo isso contribui e permite que não tenhamos uma homogeneidade na agricultura. Temos espaço para muitas outras coisas com a geração de cadeias produtivas novas com noz pecan, oliveiras, mesmo com outras cadeias não tão extensas. O fundamental é que as áreas de agricultura não atrapalhem nem avancem sobre as áreas de captação de água e as áreas da fauna, incluindo a polinização, pois é isso que garante que tenhamos alimento e serviço ambiental adequado que permite o controle biológico. É importante mostrar para os alunos que se estamos cuidando bem da propriedade, estamos cuidando bem do ambiente.

 

 

IHU - O tratamento do bioma pampa na Argentina, no Uruguai e no Brasil tem algumas diferenças significativas que nos façam pensar no cuidado da biodiversidade?



Heinrich Hasenack – Não conheço tão a fundo as características particulares do pampa argentino e uruguaio. Hoje tem o pampa sulamericano no MapBiomas, em que podemos mapear o pampa brasileiro, uruguaio e argentino. O que se percebe de estudos anteriores é que os campos do Uruguai são mais parecidos com os do RS do que com os da Argentina. Lá, especialmente na Argentina, houve muita transformação dos campos nativos em áreas de cultivo, seja de forragem, seja de soja, entre outros.

Notamos que o Uruguai ainda tem um cuidado maior com seus campos porque grande parte da carne do país é um produto de exportação importante e eles têm – como nós deveríamos ter – em mente a importância da preservação do Pampa. O que deveríamos entender é que, para nós que moramos aqui, a preservação do pampa é tão importante quanto a preservação da Amazônia é para os povos que lá vivem. O que se faz na Amazônia para cultivar uma espécie de pasto e uma espécie de grão, a soja, nós fazemos aqui, à medida que retiramos um pasto nativo altamente biodiverso, que tem uma dieta suficiente para nutrir os animais e com pouca necessidade de complemento de ração, por exemplo. Um gado bem manejado tem praticamente todos os nutrientes que precisa só pastando no pampa. O problema é que estamos substituindo isso por uma espécie cultivar ou de pasto ou de soja, quando deveríamos estar aprendendo a manejar para favorecer a biodiversidade e a dieta a pasto, pois é assim que se conserva gás carbônico. Gado que se alimenta de pasto nativo é carbono neutro, diferente do gado que se alimenta de ração.

 

 

Esse conhecimento existe e está aí, o que precisamos é de políticas públicas e de um reforço na extensão rural para levar isso para campo. Isso os uruguaios e argentinos têm feito – especialmente os uruguaios – ao conhecer as diferentes formas campestres, conhecer o manejo, algo que os pecuaristas da campanha do RS, segundo as pesquisas do professor Pébayle, também desenvolveram sob influência mais uruguaia do que brasileira.

A criação de gado no Brasil, fora do RS, é muito diferente. No Cerrado e na Amazônia, são criações de duas estações, enquanto aqui tem chuva o ano inteiro. Nesse sentido, vemos um esforço dos uruguaios em conservar, no entanto eles têm poucas áreas protegidas, assim como nós, infelizmente. Em termos de pesquisa, existe muito intercâmbio entre os pesquisadores da zootecnia daqui do RS com os do Uruguai. Isso poderia ser levado também aos produtores. Podemos aprender e ensinar coisas entre os países.

 

 

IHU – A agroecologia é uma saída para o RS escapar das extensas culturas de soja? Há chance de recuperação do bioma e de uma política econômica estadual mais independente da demanda chinesa?



Heinrich Hasenack – Não podemos negar que o mercado é o grande incentivador das grandes transformações que temos tido. Entendo o lado do produtor de que ele tem a propriedade para produzir, mas ele não pode detonar a propriedade, senão ele não vai produzir mais. Os princípios da agroecologia são nessa linha, de considerar boas práticas na propriedade rural, nada mais do que isso. A agroecologia tem como pressuposto o conhecimento da terra em que estamos cultivando e, ao conhecê-la, podemos adotar técnicas que são as mais adequadas ao potencial daquele lugar. Essa é a sabedoria. Eu não posso transformar todo o território agrícola numa “tábua” homogênea. Não é um solo homogêneo, não é um relevo homogêneo, portanto não se pode usar as mesmas técnicas da mesma forma.

Cada lugar tem suas peculiaridades e não considerá-las implica gastar mais dinheiro. Portanto, o retorno será menor, sem contar que haverá um desgaste da propriedade e quem vier depois, filhos ou netos, terão prejuízos, pois estas áreas vão se tornar, dependendo do grau de impacto, irreversivelmente degradas. O solo não é um recurso natural infinito.

Os economistas sempre dizem que os recursos são infinitos, pois se se tira uma coisa, coloca-se outra. Claro, eu posso detonar um lugar e vender essa terra e comprar noutro lugar, mas aquele que vai comprar minha terra não vai poder produzir. O custo de recuperação desse tipo de solo é muito grande. Precisamos reconhecer isso o quanto antes para estimular a restauração, seja do ponto de vista de uma cultura regenerativa que traga de volta parte desta estrutura do solo e de sua capacidade de produzir, pois, do contrário, essas áreas serão destruídas.

 

 

Temos a chance, hoje, porque sabemos e temos condições de identificar, se ainda não sabemos, quais áreas são próprias e quais áreas são marginais para determinados cultivos. O mais importante é saber onde não posso cultivar algo, com estratégias que eu possa melhorar aquela área para aquela cultura. Mas, onde eu não posso, eu deveria plantar outra coisa ou deixá-la como área de restauração para serviços ecossistêmicos. Quantos exemplos temos de municípios produtores de água, como, por exemplo, o município de Vera Cruz, ou mesmo outros lugares onde se recuperou fauna restaurando margens de arroios e reconstituindo mata ciliar ao longo dos rios. Temos várias estratégias e grupos trabalhando com restauração campestre e florestal, então o trabalho é juntar esse conhecimento com vontade política de longo prazo e com o conhecimento que os técnicos extensionistas têm, não só do poder público, mas de cooperativas e outras organizações que são pessoas nas quais os produtores confiam. Elas poderiam ajudar muito, mas precisariam ser valorizadas para que possam prestar esse serviço. A agroecologia não é algo somente para a agricultura familiar, mas para áreas mais amplas e isso precisa ser feito.

Coisas que se faziam antigamente, como a plantação de milho para colocar mais palha no solo e criar uma estrutura, já não se fazem mais, e plantam cada vez mais soja, o que faz com que percebamos erosão do solo. Quando fazemos essas coisas pela metade, também não funciona. É preciso uma extensão rural que estimule o agricultor a fazer a coisa certa e que ele se convença disso. É preciso ensinar nas escolas que essas coisas existem e fazer com que esse conhecimento seja repassado para que as crianças possam continuar a fazer a cobrança sobre essas práticas sustentáveis. Essa é, também, uma forma bastante boa de incentivarmos essas mudanças.

 

 

IHU – Há ações ou programas políticos sendo tomadas contra o empobrecimento do bioma pampa?



Heinrich Hasenack – Nós não estamos fazendo essas políticas, mas deveríamos estar fazendo. O que vimos com a silvicultura no início do século foi que se convidou empresas de silvicultura para escolher a terra onde gostariam de cultivar e deram liberdade para fazê-lo porque isso traria renda para o Estado. Não houve um programa prévio de se escolher áreas adequadas. Isso não vem desse governo, mas de vários anteriores, de modo que poucas vezes tivemos uma política de estado voltada para estas questões. Nossa renda está baseada, em mais de 30%, direta ou indiretamente, na agricultura. Deveríamos dar mais valor para isso, criar estratégias diferenciadas tanto para o produto interno, quanto para exportação.

Eu lembro quando eu era guri, na década de 1970, e perto de casa o pessoal começou a plantar soja tirando jardim, tirando pomar. Conheci vizinhos que só tinham soja ao redor de casa, não tinham nem pátio mais. Não podemos transformar o território do RS em um jardim de soja. O que vi acontecer depois? Vamos ter problemas. Temos que nos preparar para o longo prazo, pois não vivemos só de soja, embora seja um produto importante. Como política de estado, nós temos que estimular outras cadeias produtivas. Elas são importantes para o nosso lastro econômico. Se um dia uma cultura vai mal, há outras para substituir. É a estratégia da agricultura familiar que precisa ser expandida para o Estado, porque nela temos que cultivar um pouco de tudo para termos segurança mínima. Isso tem que ser estimulado. Vi nas notícias, dias atrás, que até a mandioca está virando um produto caro, o que antes era barato para famílias de poucas posses, porque estão cultivando cada vez menos. A adubação é importada e sofre interferência do câmbio, que agora não está favorável.

Isso é a segurança alimentar do Estado e deveríamos pensar nisso. Priorizando, eventualmente, aquelas culturas que nos dão um extra financeiro, mas não podemos simplesmente substituir tudo por soja. Temos tudo na mão, conhecimento, território e precisamos nos unir para ter um consenso mínimo sobre conservação e diversificação, pois só trará benefícios no longo prazo.

 

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