As pandemias e o fantasma do medo

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20 Março 2020

“Apesar da modernidade do nosso mundo hiperconectado, a humanidade continua sendo muito, muito frágil. E medos nos assombram como sempre”, escreve o historiador Francisco Martínez Hoyos, em artigo publicado por La Vanguardia, 19-03-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Ao longo dos séculos, diferentes epidemias afetaram o Velho Continente a cada poucos anos: tifo, disenteria ... Uma delas foi especialmente prejudicial, a ponto de seu nome ainda ser usado para designar qualquer patologia, infecciosa ou não, que provoca uma grande mortalidade. Referimo-nos, claro, à peste.

Embora tenha surgido em várias ocasiões, a de 1348 permaneceu na memória histórica como a mais prejudicial. Alcançou um nível tão devastador que um terço da população europeia sucumbiu aos seus estragos. Depois, retornaria em intervalos mais ou menos regulares: 1363, 1374, 1383, 1389 ..., embora nunca com aquela intensidade letal.

Como os contemporâneos dessas catástrofes sanitárias reagiram? Eram muito conscientes de que nunca apareciam sozinhas, mas unidas a outros dois cavaleiros do Apocalipse: a fome e a guerra. Para aqueles que eram religiosos, não havia dúvida de que a doença constituía um castigo, expressão da ira de Deus diante dos pecados dos homens. Por isso, muitos costumavam representar a peste como uma chuva de flechas que afetava a todos por igual, ricos e pobres, jovens e velhos.

Esse caráter igualitário e sua natureza repentina eram os traços que mais atraíram a atenção do homem medieval. Ninguém estava a salvo. Alguém podia estar saudável e morrer dentro de dois ou três dias, conforme observou o religioso Jean de Venette, durante uma peste na Paris do século XIV. Gerava-se um temor que podia chegar à psicose.

De quem é a culpa?

Para dar sentido aos acontecimentos, muitos buscavam um bode expiatório para culpar. Entre os suspeitos habituais, estavam os estrangeiros, marginalizados sociais como os leprosos ou uma minoria religiosa, os judeus.

As execuções destes últimos chegaram a ser consideradas uma medida profilática para prevenir a propagação do mal. Em 1348, várias pessoas foram queimadas em Stuttgart, e isso que a cidade ainda estava livre da epidemia, que não chegaria antes de dois anos. A peste contribuía para acentuar um antissemitismo já enraizado na mentalidade da época.

A angústia fazia com que as testemunhas proporcionassem avaliações muito exageradas dos fatos. Boccaccio, em Decamerão, afirma que mais de 100.000 pessoas morreram em Florença, durante a peste de 1348. Este número, conforme especificava o historiador Jean Delumeau, em História do medo no Ocidente, é exagerado. A cidade italiana não tinha, então, tantos habitantes.

Naquele momento, o medo da morte implicava o temor da condenação eterna. E se uma pessoa morresse sem chegar a se confessar? Qualquer desgraça da vida se atenuava diante da possibilidade de tormentas inimagináveis sem fim.

Aflora o egoísmo

Quando o pânico eclodia, vinha à luz a parte mais egoísta do ser humano. Mesmo aqueles de quem se pressupunha determinadas qualidades morais, podiam atuar como perfeitos covardes. Os clérigos não estavam livres do medo, sendo assim, também se uniam à debandada dos que procuravam fugir por todos os meios de uma epidemia.

Em 1656, o cardeal arcebispo de Nápoles proibiu seus padres de abandonarem sua paróquia. Contudo, absteve-se de pregar com o exemplo: correu para se refugiar no convento de San Telmo e não o abandonou até que o perigo passasse.

As crônicas sobre epidemias em vários séculos mostram como o perigo do contágio desencadeava episódios de crueldade. Na cidade alemã de Wittenberg, durante a peste de 1539, ocorreu um verdadeiro salva-se quem poder. Martinho Lutero, o grande líder da Reforma Protestante, observou que seus concidadãos fugiam em meio à histeria. Os doentes não tinham ninguém para cuidar deles. Segundo Lutero, o medo era um mal ainda mais terrível que a própria doença. Perturbava o cérebro das pessoas e as estimulava a não se preocupar nem sequer com suas famílias.

Ignorância e falta de consciência

A última grande epidemia de peste que assolou a Europa ocorreu em Marselha, em 1720. Depois, a doença praticamente desapareceu do Velho Continente. Seria substituída por outras pragas terríveis, ainda que não tão mortais, como a varíola, o tifo ou a febre amarela. Esse último mal, assolou Andaluzia, entre 1800 e 1804. Em uma tentativa de encontrar uma explicação, discutia-se se o medo era a causa do contágio.

As vozes mais sensatas responderam que não poderia ser isso: homens valentes morriam em maior quantidade do que as mulheres ‘tímidas’ e as crianças. Além disso, não se observava que no exército ou na marinha havia mais afetados. Isso é o que teria que acontecer, se fosse certa a hipótese: no combate se experimenta o medo.

Em 1918, com a gripe espanhola, retornaria uma pandemia tão letal como a dos séculos anteriores. Isso significou a morte, em dois anos, de mais de quarenta milhões de pessoas em todo o mundo. A pandemia atingiu uma Europa que ainda não havia saído das calamidades da Primeira Guerra Mundial. Os serviços médicos foram sobrecarregados diante daquela ameaça de origem incerta.

Segundo um membro da equipe de saúde francesa, a falta de consciência das pessoas favorecia a extensão do problema: “A ignorância e a ligeireza da massa do público, a incompreensão das necessidades de isolamento, de profilaxia, estendem para seis meses uma epidemia cuja duração habitual não ultrapassa as seis semanas”.

Naquele ambiente de angústia, a imprensa do país francês não hesitou em culpar o inimigo alemão pela gripe. As teorias mais descabidas pareciam credíveis naquele momento. Circulavam rumores sobre conservas vindas da Espanha, nas quais os agentes do Kaiser teriam introduzido agentes patogênicos.

A verdade é que a Alemanha se viu igualmente afetada pela gripe. Quando a contenda terminou, a contraespionagem francesa não conseguiu prender ninguém sob a acusação de praticar a guerra biológica.

O próximo episódio de pânico eclodiu nos anos 1980, provocado pelo vírus da Aids. Homossexuais e viciados em drogas passaram a ser os novos empesteados em um clima no qual a histeria, mais uma vez, desencadeava atitudes persecutórias em relação aos mais fracos.

Medos imaginários e reais

Hoje, como no passado, não faltam as teorias conspiratórias. Em Cuba, por exemplo, circulou o boato de que o coronavírus é fruto de uma operação empreendida pelos Estados Unidos. A confirmação dessa teoria seria, para seus impulsionadores, que o país mais afetado é a China, rival dos norte-americanos na luta pela hegemonia mundial.

Não é a única hipótese que circula nos fóruns de conspiração, é claro. E há outras reações mais “proativas”: nos Estados Unidos se confirmou um aumento na venda de armas, em razão do coronavírus.

Por outro lado, a extensão dos avanços científicos multiplicou as preocupações sobre uma possível catástrofe biológica. Em 2004, por exemplo, uma equipe internacional conseguiu reconstruir, nos Estados Unidos, o vírus da gripe espanhola. O resultado de seu trabalho está em um laboratório de segurança máxima, mas está descartado um acidente? O que aconteceria se caísse em mãos erradas?

Apesar da modernidade do nosso mundo hiperconectado, a humanidade continua sendo muito, muito frágil. E medos nos assombram como sempre.

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