'O bolsonarismo é maior que Bolsonaro': projeto punitivista admite o intolerável e ameaça democracia

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

31 Julho 2019

Ao eleger Jair Bolsonaro presidente da República uma parcela expressiva da sociedade brasileira decidiu apostar em um projeto punitivista para resolver os problemas do país, especialmente aqueles relacionados à segurança e à corrupção. Junto com esse projeto de aumentar o encarceramento de pessoas e adotar medidas mais duras de enfrentamento à violência, as pessoas passam a tolerar socialmente autoritarismos e violações de direitos, a partir da ideia de que os direitos são seletivos e não se aplicam a todas as pessoas. Com isso, a violência e a violação de direito vão se banalizando e a sociedade passa a tolerar o que é intolerável numa democracia. A avaliação é da antropóloga Isabela Oliveira Kalil, coordenadora do Núcleo de Etnografia Urbana da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), que há seis anos vêm pesquisando o crescimento de grupos e movimentos conservadores no Brasil.

A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 29-07-2019.

Em 2018, esse núcleo realizou um estudo sobre quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. Essa pesquisa agrupou 16 tipos de apoiadores, eleitores e potenciais eleitores de Bolsonaro, segundo critérios de classe social, raça/etnia, identidade de gênero, religião e outras formas de engajamento. O trabalho de campo apontou uma multiplicidade no padrão de eleitores, o que está diretamente relacionado à estratégia de campanha utilizada pelo candidato do PSL. “Ao segmentar o direcionamento de suas mensagens para grupos específicos, a figura do ‘mito’ – como é chamada por seus eleitores – consegue assumir diferentes formas, a partir das aspirações de seus apoiadores”, diz a pesquisa que procura estudar essa multiplicidade.

Isabela Kalil esteve em Porto Alegre na semana passada para participar da XIII Reunião de Antropologia do Mercosul, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na entrevista a antropóloga fala sobre alguns dos resultados do trabalho de campo que vem realizando junto a grupos conservadores e sobre o perfil dos eleitores de Bolsonaro. Esses eleitores, destaca, decidiram apostar, entre outras coisas, em um projeto punitivista o que está trazendo uma grave ameaça à democracia no Brasil. Ela alerta:

“Quando os discursos de intolerância vão para o espaço público e vão ganhando espaço isso só tende a crescer. E chega uma hora em que esses discursos que eram inaceitáveis passam a ser aceitáveis. Isso é um caminho sem volta. A sociedade como um todo passa a tolerar coisas que não deveriam ser toleradas em um estado de direito”.

Eis a entrevista.

Como nasceu o teu interesse em pesquisar o perfil dos eleitores de Bolsonaro e, de modo mais geral, dos grupos conservadores de direita e de extrema-direita que vem crescendo em vários países?

O meu doutorado foi ligado à antropologia urbana. Quando estava fazendo o doutorado, fui pesquisadora visitante na Universidade Columbia, em Nova York, durante 2011 e 2012. No período em que eu estava lá, surgiu o movimento Occupy Wall Street. Eu me engajei no movimento e comecei a ficar interessada por esse tipo de mobilização de rua. Quando voltei ao Brasil, presenciei o início das manifestações de 2013 na cidade de São Paulo. O meu interesse, basicamente, tinha a ver com mobilizações e protestos de rua no espaço público urbano. Quando passei a olhar para as mobilizações de 2013, comecei a ver o aparecimento de discursos mais conservadores e de direita. Eu era professora nesta época me chamou a atenção ver meus alunos, jovens, debatendo esses lugares da direita e da esquerda nas mobilizações de rua.

A partir daí, comecei a acompanhar as movimentações de rua como pauta de pesquisa. Em 2014, continuei acompanhando essas mobilizações dada a força que esse fenômeno havia adquirido no Brasil. Queria acompanhar os desdobramentos desse processo, principalmente a partir da cidade de São Paulo, onde faço etnografia (trabalho de campo). Em 2014 e 2015 acompanhei os protestos do movimento anti-corrupção e os grupos que estavam surgindo a partir desse movimento. Acompanhei também as manifestações e protestos ao longo do processo do impeachment de Dilma Rousseff.

Neste momento, ficou claro pra mim que, para continuar a pesquisa, ela precisaria passar a ser feita de maneira coletiva. Esses protestos e mobilizações de rua exigiam, metodologicamente, um outro esforço analítico, para que a gente desse conta de acompanhar o que estava acontecendo e coletar dados. Formei uma equipe e criei o Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual. Paralelamente a isso, eu tinha na universidade a atribuição de ensinar antropologia urbana e métodos de pesquisa em antropologia e etnografia. Acabei usando a cidade de São Paulo e essas movimentações como parte do processo de docência e de pesquisa. Os alunos que estavam interessados, para além da sala de aula, começaram a me acompanhar em campo.

O primeiro trabalho de fôlego que a gente fez foi uma etnografia de alguns meses num acampamento que aconteceu na Avenida Paulista, em frente a FIESP. Ao acompanhar esse acampamento percebemos uma mudança de posicionamento das pessoas na rua, no período entre o início desse movimento e o final dele, já com a Dilma Rousseff afastada. Essa foi a nossa primeira pesquisa de fôlego já incorporando uma metodologia de trabalho coletivo e colaborativo.

No começo da pesquisa, a ideia não era trabalhar com grupos de direita ou de ultra-direita, mas sim trabalhar com os protestos e mobilizações de rua. O que acabei vendo em campo, e isso se tornou objeto de pesquisa, foi o surgimento de grupos de direita, pequenos no começo, que nem se definiam dessa forma. Alguns se definiam como movimento anti-corrupção. Esses grupos foram fazendo das ruas uma espécie de laboratório de ação, testando ferramentas, possibilidades de engajamento de público e pautas de mobilização política. Aos poucos esses grupos foram se colocando como de direita e até de extrema-direita.

Depois do impeachment, a partir de 2017 principalmente, começamos a ver também jovens que saíam da periferia e iam para o centro de São Paulo, envolvendo-se em embates entre grupos de extrema-direita e grupos anti-fascistas. Embora a gente tenha pesquisado mais os grupos de extrema-direita, é preciso dizer que há uma resistência anti-fascista também nas ruas da cidade de São Paulo, cujos grupos foram se tornando mais numerosos. No período eleitoral, seguimos acompanhando esses grupos e movimentos e continuamos fazendo isso até hoje.

Existe uma polêmica até hoje sobre o significado do que aconteceu em 2013 no Brasil. A evolução da tua pesquisa, tanto do ponto de vista do objeto quanto da metodologia, indicam de alguma forma que a direita acabou capturando politicamente o resultado final desse processo de mobilizações? Como vê essa questão sobre o sentido de 2013?

Eu acho que vai demorar algum tempo ainda para a gente conseguir entender o sentido de 2013. Acho que temos sentidos múltiplos aí. Qualquer narrativa sobre 2013 que aponte uma direção apenas é problemática. Foi uma mobilização muito grande do ponto vista numérico, envolvendo sentidos muito diferentes. Eu acompanhei essas mobilizações no centro da cidade, onde dou aula. Nosso cotidiano foi diretamente atravessado pelas mobilizações. Na época, eu vi que, em determinado momento, os jovens que estavam a frente das manifestações passaram a ser apontados como responsáveis pelo nascimento de uma direita. Eu não acho isso justo. É um fenômeno bem mais complexo.

2013, de alguma forma, colocou na rua um conjunto de insatisfações múltiplas que iam desde o preço da tarifa do ônibus, passando pela situação da saúde e educação, e chegando até o tema da Copa do Mundo. Algumas pessoas que entrevistei disseram: quando a gente estava na rua em 2013 a gente não achava que era nem de direita nem de esquerda. Depois acabaram se constituindo como de direita. A pauta da anti-corrupção foi um aglutinador importante para esses grupos. Os grupos de rua mais progressistas demoraram um tempo para conseguir compreender a importância desse debate sobre a corrupção. Ao final da disputa, esse tema acabou ficando mesmo com a direita. Não acho justo atribuir a determinadores atores e movimentos sociais a responsabilidade pelo nascimento desses grupos, mas, de certa forma, houve um descompasso na atuação dos movimentos mais progressistas, que perderam a oportunidade de assumir também a pauta da luta contra a corrupção.

O fenômeno do crescimento de grupos de direita e de extrema-direita não é uma exclusividade brasileira, repetindo-se também em vários outros países do mundo. Na tua avaliação, há algo de comum entre esses diferentes casos que ajude a entender essa espécie de conversão conservadora planetária?

Há alguns autores que fornecem elementos que considero importantes para pensarmos esse fenômeno que, como você colocou, é transnacional. Da mesma forma como temos movimentos sociais progressistas se tornando transnacionais e presentes em diferentes contextos, temos também movimentos de direita que assumiram esse caráter transnacional. Do ponto de vista dos temas que acompanho mais de perto, há muitas disputas que aconteceram em reuniões da ONU. A perspectiva de pensar as reuniões da ONU como um campo de disputa, por exemplo, na área de direitos reprodutivos, não é algo tão novo assim. Há autores que mostram que, desde os anos 90, ocorrem essas disputas em reuniões da ONU.

Uma autora que nos ajudou muito com subsídios teóricos para a nossa pesquisa é Wendy Brown. Ao falar dos Estados Unidos pós-11 de setembro, ela aponta a configuração de uma união entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo. A união entre essas duas forças que, aparentemente, são antagônicas entre si, foi muito bem sucedida. Loïc Wacquant, outro autor com o qual trabalhamos, também tem perspectivas críticas muito interessantes para pensar esse projeto bem sucedido que articula neoliberalismo e neoconservadorismo. A mobilização de pautas relacionadas a gênero e sexualidade, as chamadas pautas morais, controle dos corpos, tudo isso tem um apelo e uma possibilidade de aglutinar diferentes formas de mobilização. E isso tem funcionado em diferentes contextos.

Nas nossas pesquisas aparecem pautas e formas de mobilização que são transnacionais, especialmente relacionadas a questões anti-gênero. Isso é algo que nasce na Europa e depois se dissemina na América Latina. As principais fake news estão relacionadas a questões de gênero e de sexualidade, como é o caso da mamadeira erótica e do chamado kit gay. Não é a toa isso seja assim. Esses temas têm um forte apelo de mobilização de pessoas que, inclusive, não estão ligadas à política e que não se conectam com o universo político partidário. Essas questões envolvem o universo privado, da família. Neste contexto, para boa da parte da população, o que está em jogo neste caso não mais questões políticas partidárias, mas sim questões da família, da defesa da família.

Não raro, essas forças acabam jogando também com o medo. Uma coisa que também apareceu na nossa pesquisa – e que é muito razoável – surgiu em conversas com mães que tinham medo e receio de uma série de coisas que nunca tinham acontecido do ponto de vista de políticas públicas e que não estavam em pauta. Mas elas tinham receio pelos seus filhos. Parece muito razoável que uma mãe queira proteger seus filhos. Isso é aproveitado, de alguma maneira, para criar essa base que faz essa junção entre neoconservadorismo e um projeto neoliberal.

Por essa descrição, no caso brasileiro, seria uma espécie de aliança entre o Itaú, o Bradesco, a Assembleia de Deus, a Igreja Universal e outros grupos. Na sua avaliação, há uma hegemonia política da agenda neoliberal nesta aliança que assumiria a pauta neoconservadora de um modo instrumental para atingir seus objetivos?

Talvez dizer “instrumental” seja simplificar muito. Acho que, de fato, há uma união. Há grupos conservadores que têm interesse na manutenção e avanço de determinadas políticas e pautas e no desmonte de outras. Creio que há, de fato, uma aliança entre essas pautas e interesses neoliberais e neoconservadores.

A pesquisa que vocês realizaram em 2018 agrupou 16 tipos de apoiadores de Jair Bolsonaro. O que articula essa diversidade de apoiadores e eleitores e em que medida ela constitui uma base social consistente para um projeto político de mais longo prazo?

Há um elemento novo que apareceu nestas últimas eleições relacionada à forma de comunicação. Ainda que se possa dizer que o projeto de Bolsonaro lida com velhos interesses, a forma, do ponto de vista comunicacional, é nova. Diferentes analistas não acreditavam numa possível vitória de Bolsonaro porque ele não tinha tempo de propaganda eleitoral na televisão, o que tradicionalmente explicava o resultado de eleições anteriores. Também diziam que não participar dos debates seria um problema para ele. O que surpreendeu foi que não participar dos debates gerou mais benefícios para Bolsonaro do que se imaginava. Não ter tempo de televisão também não foi um problema, Bolsonaro conseguiu dar uma volta nisso, desacreditando a mídia, dizendo que ela era tendenciosa com ele.

A campanha de Bolsonaro operou baseada em uma estratégia de segmentação do público. Diferentes eleitores tinham imagens diferentes do candidato. Uma parte das informações que as pessoas estavam recebendo eram recortadas e contextualizadas a partir, por exemplo, do Whatsapp ou das suas redes não só on-line, mas de suas redes de pessoas conhecidas. Na pesquisa nós trabalhamos com a ideia de que essa estratégia criou uma espécie de caleidoscópio, onde diferentes perfis de eleitores viam projetos diferentes. Esses diferentes perfis estavam mobilizados a partir de expectativas e receios diferentes. Por que isso é importante? A base eleitoral do Bolsonaro, na pré-campanha, começa tendo um maior apelo entre os homens. O maior desafio deles, durante a campanha eleitoral, era conseguir abarcar um público para além desse e conseguir também a confiança das mulheres.

Esse objetivo foi atingido. Um dos elementos que contribuiu para isso foi a existência de várias candidatas mulheres apoiando Bolsonaro, passando para determinados grupos a imagem de que estava na sua agenda, prioritariamente, o combate à violência contra a mulher, a proteção das crianças, a melhoria da escola pública. A questão da segurança também me parece fundamental. Como falei antes em relação aos protestos de 2013, não acho justo responsabilizar os movimentos sociais que estavam nas ruas, mas, de uma certa forma, o campo progressista como um todo, inclusive o que não estava nas ruas, ignorou durante muito tempo a pauta da segurança, assim como ocorreu com o tema da corrupção também. A pauta da segurança não foi assumida, de fato, pelo discurso que estava sendo disseminado pela esquerda. Isso é uma questão importante para as pessoas. Elas querem e precisam de segurança.

Ficou uma espécie de vácuo onde foi mais fácil entrar. Muitas pessoas diziam que estavam cansadas de ser assaltadas, que estavam inseguras em suas casas e que apostaram em um projeto punitivista. Ainda que a gente tenha uma série de dados que mostrem que o endurecimento de penas e outras políticas punitivistas não melhoram a segurança pública, o discurso de Bolsonaro deu às pessoas a expectativa de que seria possível, a partir de medidas mais punitivas, fazer com que o cotidiano da sociedade se tornasse mais seguro. Isso tem um apelo, principalmente nas grandes cidades. Ainda que eu tenha vários problemas com esse modelo punitivista, é preciso reconhecer que ele representou uma saída que, para muitas pessoas, fazia sentido.

Esse “fazer sentido” de pautas como essa teve um certo recorte geográfico, não? Na região Nordeste, por exemplo, não funcionou como nas regiões Sul e Sudeste.

Eu poso dizer muito pouco sobre os eleitores que não estão no contexto que estudei. É importante dizer uma coisa aqui. A pesquisa não pretende apresentar um perfil dos eleitores no Brasil, mas sim um perfil em um contexto importante como o de São Paulo, que é estratégico e onde havia uma disputa inclusive envolvendo a história do PT na região do ABC. Então, do ponto de vista da pesquisa que fizemos, não consigo arriscar muitas hipóteses neste sentido.

O fator tecnológico e comunicacional envolvendo o uso de redes sociais e de ferramentas como o Whatsapp teve grande peso no processo eleitoral de 2018. A esquerda e o campo progressista de modo geral foram pegos de surpresa pela estratégia adotada pela campanha de Bolsonaro. Hoje, dentro desse campo progressista, há quem ache que é fundamental se apropriar dessa tecnologia e dessa estratégia, utilizando-a com um sinal trocado, do ponto de vista da agenda política e ideológica. É por aí, na sua opinião?

Acho que essa questão da comunicação é primordial para a gente entender esse processo envolvendo as eleições e seus resultados. Essa imagem caleidoscópica do Bolsonaro, que permite construir diferentes faces dessa ideia do “mito” e segmentar isso em diferentes perfis foi facilitada por essas novas formas de comunicação. Não estou dizendo que tudo isso aconteceu num espaço online virtual, mas, de uma certa forma, a gente tem vivenciado formas de ver o mundo que nos colocam em contato com ideias muito parecidas, o que os especialistas chamam de bolha. A gente vai perdendo o contato com a diversidade de ideias e esses grupos vão reiterando a mesma perspectiva. Isso possibilita a criação de círculos e as imagens e mensagens veiculadas ali são, frequentemente, muito diferentes das que transitam em outros círculos, às vezes envolvendo pessoas da mesma cidade, da mesma faixa etária e da mesma classe social.

A gente ainda precisa entender melhor essa questão da comunicação, pensar pesquisas que consigam fazer uma conexão entre esse universo online e o offline. Nas mobilizações de rua, isso era muito presente. Havia pessoas que estavam mobilizadas na rua mas que também estavam fazendo uma transmissão ao vivo desse protesto e estavam se comunicando pela internet com pessoas que estavam fora do Estado e que estavam apoiando a mobilização. Ou seja, se a gente olha só pra rua, não consegue entender esse fenômeno, mas se olha só para a internet também não consegue entender. É preciso olhar para o imbricamento dessas duas possibilidades de comunicação.

Em relação ao que fazer, a estratégia do “vira voto” no final das eleições me pareceu muito criativa e interessante ainda que ela tenha sido algo que apareceu bem no final da campanha. Foi algo importante. Era uma presença física das pessoas. Sim, a gente talvez tenha que pensar em estratégias para usar essas tecnologias no mundo virtual, mas também precisamos pensar estratégias para o mundo offline, digamos assim. É preciso pensar em formas de estar, de participar, de recuperar o universo do público, o universo de espaços em que você possa ter diversidade de pessoas, discussão de ideias, possibilidade de estar com as pessoas. Isso talvez seja mais importante até do que apenas pensar estratégias de comunicação nas redes sociais.

Por outro lado, a direita ganha muito espaço quando diz coisas muito complexas de uma maneira muito simples. Claro que isso envolve mensagens que são completamente falsas, simplificando coisas que são muito complexas. Mas isso deve nos fazer refletir também. Precisamos pensar sobre possibilidades de comunicação mais democráticas e sobre como tornar o discurso mais acessível para que a gente não fique repetindo discursos que são ininteligíveis para a maioria da população.

Qual o peso, na tua opinião, das igrejas evangélicas e pentecostais no crescimento do conservadorismo e da direita política no país?

Em primeiro lugar, acho que precisamos desenvolver formas mais refinadas de pensar os espaços da religião. Quando falamos da figura dos evangélicos, estamos falando, na verdade, de coisas que são muito plurais. Essa figura do evangélico como um grupo único é um pouco caricatural. É preciso lembrar que alguns líderes religiosos chegaram a apoiar o PT em determinado momento e mais tarde passaram a apoiar o Bolsonaro. É preciso olhar de maneira contextualizada a questão da participação das igrejas. Agora, é claro, dentro disso que estamos chamando de neoconservadorismo elas têm um papel importante, mas esse peso precisa ser pensado para além da religião. Há determinados grupos, por exemplo, que concentram empresas de comunicação. Esse imbricamento entre mídia e religião precisa ser olhado com mais cuidado. Numa campanha eleitoral isso é importantíssimo.

Após sete meses de governo, pesquisas já começam a apontar uma erosão da popularidade de Bolsonaro junto à sua base de apoio. Aquela figura do caleidoscópio e das múltiplas faces que funcionou na campanha pode ficar mais frágil com as dificuldades do governo?

Acho que sim, pois são universos muito diferentes. Uma coisa é você estar no contexto eleitoral fazendo críticas a determinadas figuras e partidos. Outra, completamente diferente, é você estar no governo e ter que atuar executando projetos. Por outro lado, alguns setores já acham que Bolsonaro não está entregando aquilo que prometeu na campanha. Isso pode estar associado à ideia de que existe uma velha política e que ele está impossibilitado de governar. Assim, está frustração pode estar associada mais ao governo do que propriamente à figura dele. Bolsonaro criou uma estratégia por meio da qual procura construir uma blindagem em torno dele, passando a responsabilidade pelos problemas para outras pessoas.

O que vejo mais são pessoas ficando decepcionadas ou cobrando outros políticos do PSL para que elas prestem contas e tenham uma posição mais combativa. De certa maneira, a figura do Bolsonaro, ainda que tenha pessoas que o apoiaram insatisfeitas, ainda tem uma boa faixa de eleitores. Eles não conseguem dizer o que ele já fez, mas ainda estão num compasso de espera na expectativa de que ele faça algo. Ainda é cedo para conclusões mais definitivas sobre essa insatisfação. É preciso ver como isso vai se desdobrar.

Considerando a conjuntura atual que vive o país, em que medida você acha que a democracia brasileira está sob ameaça?

A democracia não é uma coisa estática, mas algo que a gente constrói todos os dias e exige um esforço de manutenção. O que chama a atenção no caso brasileiro é o apoio dado a esse projeto punitivista de encarcerar as pessoas, de ter medidas mais duras no enfrentamento da violência. Isso é um risco e um problema muito grave. Isso faz com que a gente possa tolerar socialmente autoritarismos e violações de direitos. Essa posição está baseada na ideia de que os direitos são seletivos. Isso foi uma coisa que apareceu muito na nossa pesquisa. Determinados grupos não eram exatamente contra os direitos humanos, mas eram contra a ideia de que os direitos humanos deveriam ser universais. Apenas uma parcela da população seria merecedora desses direitos. Aquela máxima de direitos humanos para humanos direitos sintetiza essa posição.

Isso é muito preocupante. O que temos chamado de bolsonarismo é maior do que o Bolsonaro. A sociedade brasileira, à medida que vai tolerando determinadas violações de direitos, vai de certa forma ampliando o espaço para que essas violações aconteçam. Elas são reiteradas e recebem apoio da sociedade. A ideia é que, para resolver os problemas, é preciso ter um Estado que puna as pessoas. Inclusive, alguns desses grupos acreditam que não é preciso sequer haver instituições para fazer isso e as pessoas deveriam poder fazer justiça com as próprias mãos. Acho que essa é uma grande ameaça para a democracia. Não há como ter democracia sem um esforço cotidiano para manter e ampliar o acesso a direitos.

Levando em conta o que a gente viu em campo, em 2014, 2015, 2016 e 2018, outra coisa que chama atenção é o fato de que a violência foi se banalizando, mesmo a violência implícita. Assim, certos discursos e ações que causavam desconforto e estranheza e que eram intoleráveis no espaço público, em determinado momento foram sendo relativizados e se tornando aceitáveis. Hoje, vemos no espaço público coisas que eram inaceitáveis até um tempo atrás. Quando os discursos de intolerância vão para o espaço público e vão ganhando espaço isso só tende a crescer. E chega uma hora em que esses discursos que eram inaceitáveis passam a ser aceitáveis. Isso é um caminho sem volta. A sociedade como um todo passa a tolerar coisas que não deveriam ser toleradas em um estado de direito.

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