Teologia do povo, ponto fundamental para entender Francisco

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16 Fevereiro 2018

Comecei a ler o novo livro de Rafael Luciani, Pope Francis and the Theology of the People [Papa Francisco e a Teologia do Povo], meses atrás. Eu tinha que continuar deixando o livro de lado e ler outra coisa, não porque o livro estivesse mal escrito ou porque achasse o assunto pouco interessante. Ao contrário. Não, eu tinha que deixar o livro de lado porque o fato de lê-lo me fez perceber como eu sou um péssimo cristão.

O comentário é de Michael Sean Winters, publicada no sítio National Catholic Reporter, 12-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A teologia do povo não é bem conhecida aqui nos Estados Unidos. Alguns anos atrás, eu participei de um almoço em homenagem ao Pe. Carlos Maria Galli, um dos principais praticantes da teologia do povo, e o pobre e paciente homem teve que lidar com as questões mais rudimentares, e não apenas dos jornalistas. Dos teólogos também!

Luciani demonstra como e por que a teologia do povo teve um impacto formativo sobre Jorge Maria Bergoglio e também mostra sua contínua influência em seus escritos agora que ele é o Papa Francisco. Essa teologia é fundamental para entender não apenas o papa atual, mas também a Igreja na América Latina, que, cada vez mais, não está liderando apenas o caminho da Santa Sé, mas também da Igreja dos Estados Unidos.

(Foto: Divulgação)

Essa teologia surgiu na Argentina durante e imediatamente após o Concílio Vaticano II, que se reuniu de 1962 a 1965. Os bispos argentinos, em 1966, emitiram uma declaração pastoral para o período pós-conciliar que reconheceu a mudança de paradigma que o Vaticano II representava e apontou a Igreja argentino para uma nova direção:

“Nossa grande tarefa do momento atual, para realizar a etapa pós-conciliar, deve consistir em três coisas:

1) Deixar-nos penetrar pelo Concílio. Assimilá-lo pela reflexão e interiorização de suas ideias e de seu espírito;

2) Consolidar e aperfeiçoar a forma comunitária da Igreja e suas estruturas colegiadas: assembleia episcopal, presbitério, conselho pastoral, estruturação e coordenação do laicato;

3) Fomentar uma maior abertura ao mundo por parte do clero e laicato. Isso implica uma maior sinceridade no fomento do espírito de pobreza e de serviço. Para realizar esse programa, a Igreja na Argentina deve aumentar, em todos seus setores e níveis, a reflexão e o diálogo.”

Desse modo, clara e diretamente, é possível ver os temas que amadureceriam na Igreja na América Latina: pobreza, serviço, colegialidade, diálogo, forma comunitária da Igreja, abertura ao mundo. Mas, ao contrário de muitas dioceses dos Estados Unidos, os bispos estavam na vanguarda, não lutando com uma ação de retaguarda contra a implementação do Concílio.

O mais distintivo da teologia do povo, no entanto, era sua compreensão do povo como o lócus para a reflexão teológica e a credibilidade eclesial. A leitura dos bispos latino-americanos sobre os textos fundamentais do Vaticano II, como a Lumen gentium e a Gaudium et spes, eliminava a possibilidade de qualquer tipo de fé privatizada e pietista, mas fazia mais do que isso. Exigia que a Igreja adotasse o ponto de vista do povo de Deus e olhasse para si e para o mundo com todas as suas esperanças e medos, posicionando com e entre o povo. Luciani cita o teólogo Rafael Tello:

“A Igreja argentina deve ver a si mesma e seus problemas a partir do ponto de vista do povo. O povo, então, seria o elemento iluminador e unificador da problemática da Igreja. Isso significa vê-lo não em termos de seus conflitos internos, suas dificuldades internas ou suas questões internas, mas em termos de sua inserção, como povo de Deus, no povo argentino. Isso levaria a um curso de ação conectado com essa inserção, a saber, a recuperação dos valores cristãos que estão no povo (...) vendo a partir do ponto de vista do povo e adotando uma abordagem centrada no povo para a ação pastoral.”

É preciso pouco em termos de imaginação para vincular essa reflexão sobre as declarações dos bispos argentinos em 1966 com a abordagem pastoral do Papa Francisco hoje. É por isso que Francisco, o primeiro papa a não estar presente no Concílio, parece respirar, mesmo assim, o espírito conciliar tanto quanto seus antecessores, talvez até um pouco mais.

Também não é muito difícil perceber como essa teologia difere – mesmo que assuma alguns dos mesmos temas e aborde em grande medida a mesma realidade social – da teologia da libertação. O teólogo Víctor Fernández é citado:

“Costumava-se dizer que a teologia do povo opta pelas massas ignorantes, por pessoas que não têm cultura e pensamento crítico. O que a teologia do povo defende é algo muito diferente. Trata-se de considerar o pobre não meramente como objeto de libertação ou educação, mas sim como indivíduos capazes de pensar em suas próprias categorias, capazes de viver a fé de maneira legítima de sua própria maneira, capazes de forjar caminhos baseados em sua cultura popular.”

Eu acho que já estamos atrasados em relação ao momento em que precisamos deixar de ficar na defensiva quanto às deficiências da teologia da libertação. Ela tentou importar análises que dificilmente poderiam ter sido mais alheias às pessoas: ela as tornou um “objeto de libertação”. Para além do fato de que muitos teólogos da libertação – nem todos – negligenciaram a realidade das vidas vividas sob os preceitos que estavam tentando batizar – a feia realidade que o marxismo sempre se revelou ser –, a teologia da libertação, apesar de todas suas boas intenções, carregava consigo uma espécie de nobreza intelectual obrigatória, em relação à qual a teologia argentina era alérgica.

Da mesma forma, ao longo do livro, Luciani deixa claro como a teologia do povo é diferente do tipo de preocupação caritativa reflexiva que caracteriza a Igreja dos Estados Unidos. Não é que a caridade seja ruim. É que ela é insuficiente. “Uma conversão pessoal e emocional genuína ao mundo dos pobres – que constituem a maioria da humanidade – torna-se absolutamente necessária se quisermos compreender o sentido do cristianismo hoje e responder a este tempo em que somos chamados a viver”, escreve Luciani.

Esta identificação com os pobres é embebida na crença católica tradicional. Pe. Lucio Gera escreve:

“Na conversão, as coisas – o mundo – são reinterpretadas, são re-sentidas – sentidas de uma nova forma –, são refeitas, um pouco como se fossem recriadas em sua novidade pascal; outro ponto de partida é usado para reconstruir o sentido do mundo. (...) O mundo em toda a sua extensão é re-vivido, não como uma mera lembrança, que seria voltar a viver o velho, mas sim como ressurreição, que não deve ser entendida apenas como viver de novo, mas como um viver novo, não apenas como uma nova vida, mas como viver de forma diferente.”

Isso não pode ser confundido de forma alguma com um mero compromisso secular com a justiça social.

Também podemos discernir as repetidas objeções do Papa Francisco à colonização ideológica. Como explica Luciani, a questão aqui não é que nós, católicos informados, vamos evangelizar os pobres em seus bairros e trazê-los aos nossos valores e nossas visões. “A opção pelos pobres começa e se desdobra no mundo da vida dos próprios pobres”, escreve ele.

“Ela envolve o respeito pelo seu modo de ser a fim de reconhecê-los honestamente e com sentimento como verdadeiros sujeitos de um processo histórico de desenvolvimento e libertação. Quando deixamos de vê-los como objetos de estudo e começamos a tratar os pobres pessoalmente, começamos a ser evangelizados por eles. (...) É nessa ‘vida cotidiana compartilhada’ em que a beleza de uma humanidade que foi tocada pelo mistério divino nos é revelada.”

Um dos poucos erros, ou equívocos, que Luciani comete é onde eu coloquei as reticências nessa citação. Ele escreve: “Esse é o caminho da conversão, não mediado pela liturgia, mas pelo tratamento cotidiano das pessoas e de suas histórias de vida”. Eu rejeito essa dicotomia: se você já viu uma pessoa pobre entrando em uma bela catedral ou cantando um hino de todo o coração, você sabe que não precisamos escolher entre a liturgia e as relações cotidianos. É um raro tropeço nesse livro notável.

Luciani traça o desenvolvimento dessa teologia através dos grandes encontros continentais dos bispos latino-americanos, em Medellín em 1966, em Puebla em 1979, em Santo Domingo em 1992, e, é claro, em Aparecida em 2007, onde o então cardeal Bergoglio desempenhou um papel-chave na elaboração do documento final.

(Continua...)

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