Teologia e o desarmamento da sua argumentação

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29 Junho 2017

“A teologia, diante da própria tradição e práxis, deveria aprender um modo de ser modesta e humilde”, propõe Jakob Deibl, professor de Teologia Fundamental na Universidade de Viena, em artigo publicado por Settimana News, 08-06-2017. A tradução é de Ramiro Mincato.

Segundo ele, “a teologia deveria lembrar que os tempos mais fecundos teologicamente foram aqueles em que a Igreja, sem medo e sem contraposição de frentes, estava envolvida com o horizonte cultural do tempo, com suas perguntas, seus desafios e seus problemas”.

Eis o artigo.

Caro Marcello Neri,

Tenho o prazer de responder ao seu aporte "Teologia Hoje: Paradoxo e reconsideração", publicado recentemente em Settimananews (11 de Maio de 2017). Em seu texto se delineia certa crise da teologia, que não deve ser necessariamente uma crise religiosa; e - se entendi bem - é seu desejo abrir um debate em torno ao significado da teologia hoje.

Escrevo-lhe uma carta porque são, talvez, o melhor modo de tratar perguntas abertas, tateando e fazendo pesquisa ao mesmo tempo, sem sucumbir ao fantasma das respostas prontas.

Após uma pequena nota prévia, gostaria de refletir sobre o estilo da teologia e, em seguida, sobre a forma como ela se transmite, concluindo com uma tentativa de olhar para o futuro.

A capacidade de transformar-se

Uma coisa que sempre me impressionou muito, nas religiões, é sua grande capacidade de transformar-se ao longo do curso da história. Como é diferente o cristianismo da comunidade de Corinto, para quem Paulo escrevia suas cartas, do cristianismo de Milão, quando Ambrósio era bispo da cidade! E, como se transformou o cristianismo nesta cidade nos dias em que o sucessor de Ambrósio, Carlo Maria Martini, utilizou uma troca de cartas com Umberto Eco, com ampla ressonância no espaço público!

Não obstante tudo, nestes diferentes casos, não temos receio de falar de reflexão e paixão por uma e única "coisa”. As religiões têm grande capacidade para manter sua identidade, apesar de (ou precisamente quando) transformam-se radicalmente.

Que papel tem a teologia em tudo isso? Não é, talvez, encontrar uma maneira para que o grande tesouro da tradição, como é o caso de Calcedônia, lembrado no seu texto, possa permanecer compreensível dentro de horizontes profundamente mudados? Não é sua tarefa acompanhar criticamente a transformação que, de fato, ocorre nas religiões (mais rapidamente que na própria teologia)? Ou, por meio do trabalho conceitual, penetrando na tradição de fé e nos desafios do tempo, como a teologia pode ajudar na preparação da mudança? Tudo isso faz parte, certamente, da tarefa teologia, sem que, por isso, ela se dê demasiada importância e superestime suas possibilidades.

Questão de estilo

Gostaria de examinar agora um aspecto da constelação de tarefas que acabei de esboçar: um aspecto transversal, mas não sempre levado devidamente em conta. Trata-se do "desarmamento", que tem a ver principalmente com o estilo de fazer teologia. "Desarmamento" é a única palavra tipicamente militar que eu usaria para fazer teologia.

O desarmamento deve ser atuado pela teologia em primeiro lugar, exatamente em relação à sua própria grande e longa tradição. Durante séculos nos acostumamos a uma teologia de superlativos. Certamente expressões como summum bonum, aliquid quo maius nihil cogitari potest, ou o falar de plenitude, redenção e de um amor que reconcilia tudo, mas também do plano de salvação universal de Deus, são parte essencial da teologia. Mas esses termos não devem ficar no princípio. Não se pode utilizar estas expressões de modo imprudente, como se pertencessem, desde sempre e para sempre, do inventário conceitual do teólogo e da teologia, que com eles se relacionam com segurança, a fim de estabilizar o próprio sistema teológico. O que é a ultima ratio do pensamento não deve tornar-se caso corriqueiro. Neste sentido, a teologia, diante da própria tradição e práxis, deveria aprender um modo de ser modesta e humilde.

A tarefa do desarmamento se estende, porém, às novas formas de crer que surgem dentro das Igrejas, à margem, ou ao lado delas. Quando emoção e experiência são tudo, quando a religião cansa de adaptar-se continuamente agradar, quando a experiência do próprio renascimento na fé (até os born again Christians) interrompe qualquer continuidade com a história, quando a fé, na evocação de cenários apocalípticos, torna possível um juízo total e inabalável do mundo como um todo, quando a Igreja e o mundo estão completamente separados um do outro, a teologia deverá colocar em questão essa forte emocionalização que está acontecendo.

Ela deveria lembrar-se de que o cristianismo, desde o seu início, enredou-se com a filosofia e começou a refletir sobre a tradição à luz do logos grego. Este emaranhamento com a filosofia (em suas sempre diferentes formas atuais) representa uma decisão fundamental do cristianismo, que já não pode ser revogada. Naturalmente, as formas de expressão da fé relacionam-se diretamente com o homem que vive concretamente; mas estas expressões também necessitam da reconstrução, no espaço, do pensamento que é comum.

Em âmbito eclesial, a teologia também deveria propor um desarmamento das frentes, onde se anuncia um novo Kullturkampf, em que a Igreja reivindica para si a soberania na interpretação da história e do tempo presente.

A teologia deveria lembrar que os tempos mais fecundos teologicamente foram aqueles em que a Igreja, sem medo e sem contraposição de frentes, estava envolvida com o horizonte cultural do tempo, com suas perguntas, seus desafios e seus problemas.

Mas, ao mesmo tempo, diante de posições que se retêm superiores e afirmam que nosso tempo está iluminado demais e que, portanto, não precisa de religião, a teologia deveria insistir sobre o fato de que tradição e cultura, como ainda moldam hoje a Europa, não seriam compreensíveis sem a religião.

Linguagem

O desarmamento teológico exige também reflexão sobre a linguagem e sobre a forma do discurso por meio do qual a teologia se expressa.

A primeira forma dos escritos cristãos é a carta. Nos textos do Novo Testamento, tanto mais antigo, como o mais recente, são cartas. As cartas subentendem o arco completo do tempo em que foram escrita, assim como a ordem canônica dos textos do Novo Testamento mostra a passagem para a forma epistolar.

No Evangelho de Lucas e nos Atos dos Apóstolos, dentro da série de escritos do Novo Testamento, temos uma aproximação à forma epistolar –por meio da forma de um discurso endereçado (Lc 1,1-4; At 1,1s.).

De modo explícito, a forma da carta começa com a que Paulo escreve à comunidade de Roma. Esta não será mais abandonada até o fim do Novo Testamento.

O Apocalipse de João não só contém sete cartas, mas tem a forma de uma carta estilizada. Assim, a maioria dos textos que surgiram como documentos originários do Cristianismo tiveram a forma de um carta.

No início da teologia escrita está, portanto, o medium da carta, que mantém um significado central, durante séculos, também para além do Novo Testamento. Começando com a Primeira Carta de Clemente até a troca epistolar entre Jerônimo e Agostinho, para chegar às cartas de Anselmo de Canterbury - apenas para citar alguns exemplos.

Não saberia dizer quando a carta deixou de ser um importante meio de discussão teológica e acabou sendo substituída totalmente pelas Sumas, Tratados e Manuais...

O que caracteriza uma carta, em primeiro lugar, é o fato de que se trata de um discurso endereçado/destinado. Temos um remetente, que tem em vista um destinatário, ou um grupo de destinatários. Não se escreve, em primeiro lugar, para tratar um tema, ou para manter vivo o discurso de uma scientific community, mas porque há alguém de quem se pode esperar interesse e resposta.

Com a Evangelii Gaudium, Papa Francisco retomou este gênero de escrito. O texto mais bonito, para mim, podemos encontrar nesta passagem: “Eu gostaria de dizer àqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu povo, e fá-lo com grande respeito e amor!" (EG 113). O papa não decreta, mas expressa, em condicional, como ele gostaria de dirigir-se também àqueles que estão longe da Igreja.

Ele deseja chegar também a estes destinatários com sua carta amiga. Não fala só do amor de Deus para os homens, mas também - e isto parece-me decisivo - do respeito de Deus em relação a eles.

Na procura de novos destinatários para seu escrito, se enxerta uma passagem de grande significado teológico. Há muitos tratados sobre como os homens reverenciam a Deus e muitas meditações sobre o amor de Deus pelos homens, mas o que quer dizer este respeito de Deus em relação aos homens? O que significa pensar isso, sem o constrangermos logo com uma ultima ratio a respeito de uma possível rejeição da salvação divina por livre decisão do homem, que também Deus respeitaria?

Aqui está precisamente o ponto onde se deveria realizar o desarmamento da argumentação teológica.

Ainda permanece a questão do porquê desapareceu da teologia o gênero do discurso endereçado amigavelmente. Nisso, não poderia a teologia, seguindo o gesto do Papa, procurar encontrar novos destinatários reais? Isso não significa que teólogos e teólogas irão expressar-se mais na forma cartas no futuro; mas o gesto de um discurso endereçado e amigável (qualquer que seja sua forma concreta) e, com isso, a descoberta de destinatários reais, é algo que considero imprescindível.

Olhar para o futuro

A teologia encontrará destinatários reais, somente se seu discurso não for finalizado em si mesmo, se não cultivar somente debates teológicos, mas se contribuir com algo à compreensão da situação em que todos vivemos. A ênfase aqui recai sobre a palavra "contribuir". A teologia precisa desvencilhar-se da tentativa de querer explicar o mundo, e precisa inserir-se num fórum democrático de diferentes formas de conhecimento. Todas as formas de conhecimento podem dar sua contribuição, mas não podem querer controlar a esfera pública da troca.

A Teologia possui certamente um tesouro precioso que pode ser disponibilizado. O desarmamento da teologia quer reconhecer que este tesouro, ao qual não pode renunciar e para o qual tem um dever, não pertence só a ela, e não está somente em suas mãos, mas é um bem de todos.

Caro Marcello, te agradeço por ter aberto a discussão no Settimana News, e espero que esta continue com ulteriores aprofundamentos.

Cordialmente,

Jakob Deibl

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