No Brasil dos desmontes e da pandemia, um quinto das famílias depende de transferências de renda e seguridade social. Entrevista especial com Sandro Sacchet de Carvalho

Para o pesquisador, os dados revelam que é fundamental “pensar sobre a importância da atuação do Estado no Brasil”

Foto: Elineudo Meira | @fotografia.75

Por: Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos | 09 Julho 2021

 

Cena 1: governo, aliás, mais de um, prega um liberalismo desenfreado, que o Estado deve ser menor e avança em reformas que mais parecem desmontes.

Cena 2: vem a pandemia e todo mundo corre para o auxílio do Estado.

Conclusão: um Estado mínimo é ruim para todo mundo.

É nessa perspectiva que vai a reflexão do economista Sandro Sacchet de Carvalho, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Para ele, a experiência das crises causadas pela Covid-19 escancarou problemas que vinham ocorrendo e que poderiam ter tido um impacto menor sem os desmontes desse passado recente. “Esse salto na proporção de domicílios sem renda do trabalho é um efeito da pandemia. Entretanto, mesmo o valor usual dessa proporção, que varia com a dinâmica do mercado de trabalho, revela que pelo menos um quinto das famílias brasileiras depende de transferências de renda e da seguridade social, o que é fundamental para se pensar sobre a importância da atuação do Estado no Brasil”, observa.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele detalha que “a proporção de famílias sem renda do trabalho cresceu desde o início da crise em 2015, passando de cerca de 19,5% para 22,5% em meados de 2018, mantendo-se nesse nível até o início da pandemia no primeiro trimestre de 2020”. Mas, com a chegada da pandemia, “saltou para mais de 30% e mesmo no primeiro trimestre de 2021 ainda se encontrava em 29,3%”. “A proporção de domicílios sem nenhum tipo de renda, de acordo com a PnadC, sempre flutuou entre 2% e 3% dependendo do ano. Contudo, com a pandemia, muitas famílias perderam a ocupação e não tinham outra fonte de renda; boa parte sobreviveu apenas com o Auxílio Emergencial”, acrescenta.

 

No entanto, antes que se conclua que a raiz de todos os problemas é a pandemia, e contra isso não se pode lutar, Sandro reflete que “a crise econômica persistente desde 2015 pode ter impactado negativamente a desigualdade, mas usualmente os efeitos de crises econômicas na desigualdade são incertos, dependendo das especificidades de cada crise e país”. “Mas podemos acrescentar como prováveis causas da retomada da desigualdade a reforma trabalhista de 2017, que representou um aumento da precarização das relações de trabalho, e o persistente cenário de austeridade fiscal que restringe o gasto social com profundo impacto na desigualdade, visto que a PnadC mostra que a desigualdade de todas as fontes de renda também está em ascensão”, conclui.

 

Assim, para ele, é preciso olhar para além da pandemia, aliás, para antes e depois dela, e reconhecer a importância do Estado, seja para a concessão de renda ou para a proteção social e trabalhista. “Devemos colocar a discussão da renda básica universal dentro de um contexto mais amplo das transformações do capitalismo mundial, e mais especificamente no mercado de trabalho, desde os anos 1970. É um período de crescente precarização das relações de trabalho, com aumento da desregulação do trabalho e ataque às políticas de bem-estar social que são justamente ancoradas em relações laborais estáveis e reguladas”, propõe.

 

Sandro de Carvalho (Foto: Arquivo pessoal)

Sandro Sacchet de Carvalho possui mestrado e doutorado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Atualmente é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Suas pesquisas e estudos na área de Economia versam sobre Economia do Trabalho, Educação e Econometria.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como foi feito o estudo do Ipea que aponta que uma a cada três famílias brasileiras vive sem nenhuma renda de trabalho?

Sandro Sacchet de Carvalho – O estudo utiliza os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PnadC, que entrevista mensalmente cerca de 80 mil domicílios principalmente sobre assuntos relacionados ao mercado de trabalho. Os microdados são divulgados trimestralmente. A partir dessa pesquisa é possível estabelecer a proporção de domicílios sem renda do trabalho.

 

 

IHU – Até que ponto a atual situação é efeito da pandemia e a partir de que ponto ela revela um problema estrutural mais amplo?

Sandro Sacchet de Carvalho – A proporção de famílias sem renda do trabalho cresceu desde o início da crise em 2015, passando de cerca de 19,5% para 22,5% em meados de 2018, mantendo-se nesse nível até o início da pandemia no primeiro trimestre de 2020. Com a pandemia, saltou para mais de 30% e mesmo no primeiro trimestre de 2021 ainda se encontrava em 29,3%.

Até o início da pandemia, a maior parte dos domicílios sem renda do trabalho possuía outra fonte de renda, principalmente aposentadoria ou pensão, mas também Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada ou doações. A proporção de domicílios sem nenhum tipo de renda, de acordo com a PnadC, sempre flutuou entre 2% e 3% dependendo do ano. Contudo, com a pandemia muitas famílias perderam a ocupação e não tinham outra fonte de renda; boa parte sobreviveu apenas com o Auxílio Emergencial.

Então, esse salto na proporção de domicílios sem renda do trabalho é um efeito da pandemia. Entretanto, mesmo o valor usual dessa proporção, que varia com a dinâmica do mercado de trabalho, revela que pelo menos um quinto das famílias brasileiras depende de transferências de renda e da seguridade social, o que é fundamental para se pensar sobre a importância da atuação do Estado no Brasil.

 

 

IHU – Qual é, hoje, a taxa de desemprego no Brasil?

Sandro Sacchet de Carvalho – De acordo com o último dado divulgado pela PnadC, o desemprego era de 14,7% entre os meses de fevereiro, março e abril de 2021, atingindo 14,8 milhões de trabalhadores.



IHU – De que ordem são os desalentados segundo os mais recentes levantamentos realizados pelo Ipea?

Sandro Sacchet de Carvalho – Segundo estudo recentemente publicado pelo Ipea, no primeiro trimestre de 2021, 8,2% da população ocupada se declarava subocupada (pessoas que trabalhavam menos de 40 horas semanais mas que teriam disponibilidade e gostariam de trabalhar mais horas), o que representa um aumento de 1,0 ponto percentual em relação ao apontado no mesmo período de 2020.

Com isso, a taxa combinada de desocupação e subocupação atingiu 21,7% no trimestre janeiro-março de 2021, alcançando o maior valor da série, iniciada em 2012, e avançando 3,3 pontos percentuais, na comparação interanual. Com o mercado de trabalho desaquecido, aumenta-se o número de trabalhadores que são considerados inativos porque desistiram de encontrar emprego. Nos últimos doze meses, o contingente de pessoas em idade de trabalhar que estavam fora da força de trabalho por conta do desalento saltou de 4,8 milhões para quase 6,0 milhões, o que representa uma alta de 25%. Em relação ao total da população em idade ativa (PIA), a parcela de desalentados avançou de 2,8%, no primeiro trimestre de 2020, para 3,4%, no primeiro trimestre de 2021.

 

 

IHU – Em termos de desigualdade social, o que o levantamento sobre a renda do trabalho revela?

Sandro Sacchet de Carvalho – Após cerca de uma década apresentando leve queda, mas ainda permanecendo em patamares elevados, a desigualdade da renda do trabalho voltou a subir após 2016. O Índice de Gini da renda do trabalho passou de 0,492 no segundo trimestre de 2016 para alcançar um pico de 0,54 no terceiro trimestre de 2020, no auge dos efeitos negativos da pandemia sobre o mercado de trabalho. No primeiro trimestre de 2021, o índice estava em 0,534, apresentando uma elevação em relação ao trimestre anterior.

 

 

A crise econômica persistente desde 2015 pode ter impactado negativamente a desigualdade, mas usualmente os efeitos de crises econômicas na desigualdade são incertos, dependendo das especificidades de cada crise e país. Mas podemos acrescentar como prováveis causas da retomada da desigualdade a reforma trabalhista de 2017, que representou um aumento da precarização das relações de trabalho, e o persistente cenário de austeridade fiscal que restringe o gasto social com profundo impacto na desigualdade, visto que a PnadC também mostra que a desigualdade de todas as fontes de renda também está em ascensão.



IHU – O que a pesquisa traz, ainda, sobre o perfil do rendimento dos brasileiros? De onde as diferentes camadas da população têm tirado o sustento?

Sandro Sacchet de Carvalho – As nossas pesquisas mostraram que a crise causada pela Covid-19 inicialmente afetou de forma mais intensa os rendimentos e a ocupação dos trabalhadores por conta própria e empregados sem carteira. Nesse período, a parte mais vulnerável desses trabalhadores necessitou de fato do Auxílio Emergencial para se sustentar. Contudo, o retorno desses trabalhadores ao mercado de trabalho tem se mostrado mais rápido que o observado entre os trabalhadores formais, mostrando que mesmo com o Auxílio Emergencial, esses trabalhadores informais não podiam abrir mão da renda do trabalho para se sustentar.

Os resultados da PnadC, e de outra pesquisa do IBGE, a Pnad Covid-19, mostraram claramente como o acesso a um emprego estável e com direitos é importante na manutenção da renda em tempos de crise, visto que trabalhadores do setor público e empregados com carteira tiveram consideravelmente seus rendimentos menos afetados pela pandemia. Já os trabalhadores em ocupações mais precárias observaram aumentar sua dependência de transferências de renda, seja o Auxílio Emergencial, o Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada ou mesmo doações de parentes e amigos.

 

 

IHU – Qual a perspectiva de futuro? Que tipo de retomada e crescimento da ocupação com trabalho formal pode ser esperado?

Sandro Sacchet de Carvalho – Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - Caged apontam uma criação de vagas formais que ainda não foram detectadas pela PnadC. Os dados da PnadC revelam uma recuperação do mercado de trabalho extremamente lenta. Apenas os trabalhadores mais escolarizados apresentam níveis de ocupação semelhantes aos anteriores à pandemia. Trabalhadores menos qualificados, como é usual em retomadas de crise, têm demorado mais para conseguir se recolocar no mercado de trabalho.

Parece claro que uma efetiva recuperação da ocupação apenas poderá ser alcançada com uma efetiva imunização em massa. Contudo, a própria duração da crise devido à Covid-19 já impede que a retomada possa se dar de forma acelerada, pois muitos vínculos já foram destruídos de forma permanente, levando mais tempo para que possam ser recriados, ao menos sem maiores estímulos econômicos por parte do poder público, o que de fato não está sendo considerado atualmente.

 

 

Com isso, sempre de acordo com a PnadC e como ressaltado anteriormente, a retomada da ocupação atualmente tem sido protagonizada sobretudo por trabalhadores por conta própria; ou seja, sem maiores oportunidades no mercado de trabalho formal, alguns trabalhadores têm buscado a entrada mais fácil na ocupação, o emprego autônomo. Com a recuperação da atividade econômica, deve-se retomar a ocupação formal, entretanto, dada a grande quantidade de pessoas que se tornaram inativas e desalentadas com a pandemia, iremos observar por um período mais amplo o desemprego em níveis elevados na medida em que a quantidade de trabalhadores tentando retornar ao mercado de trabalho ainda supera a quantidade de vagas criadas.

Apenas com a manutenção da economia em ritmo de crescimento mais acelerado por um período de tempo mais longo é que seria possível observar uma queda maior do desemprego e da informalidade. Mas isso depende não somente de quais políticas públicas serão adotadas, mas também se não haverá nenhum choque negativo como, por exemplo, um racionamento de energia que afete a economia. Com isso, a retomada da ocupação formal será lenta e o futuro bastante incerto.

 

 

IHU – Recentemente, Paulo Guedes sugeriu que os brasileiros comiam muito em comparação com os europeus. O que a frase revela sobre a compreensão do ministro da Economia a respeito das atuais condições de vida dos brasileiros?

Sandro Sacchet de Carvalho – Primeiro, é preciso ressaltar que a afirmação não possui nenhum embasamento empírico, sendo feita a partir de uma visão impressionista. Segundo, mesmo que por acaso a afirmação fosse verdadeira, como que a redução do consumo alimentar por parte dos brasileiros mais abastados poderia adereçar o problema da fome no Brasil sem uma efetiva política de redistribuição de renda?

 

 

Se na Europa o problema da fome é muito menor, deve-se ao fato de uma desigualdade de renda muito menor, mercados de trabalho mais regulados e estruturados, e políticas de seguridade social mais amplas (apesar dos retrocessos que a Europa enfrenta nessas questões também), e não porque seus habitantes não cometam excessos alimentares.

O agravamento da fome no Brasil durante a pandemia reforça que a questão não é escassez de alimentos, mas insuficiência de renda. Muitos trabalhadores perderam a ocupação e estão disponíveis para o trabalho. Muitas famílias passaram a depender exclusivamente do Auxílio Emergencial para se alimentar, e mesmo assim a fome e a pobreza se elevaram. O enfrentamento desse problema passa pela recuperação da ocupação e de uma melhor distribuição de renda.

 

 

IHU – Como o senhor avalia a proposta de uma renda básica universal e como ela pode afetar o mercado de trabalho?

Sandro Sacchet de Carvalho – Devemos colocar a discussão da renda básica universal dentro de um contexto mais amplo das transformações do capitalismo mundial, e mais especificamente no mercado de trabalho, desde os anos 1970. É um período de crescente precarização das relações de trabalho, com aumento da desregulação do trabalho e ataque às políticas de bem-estar social que são justamente ancoradas em relações laborais estáveis e reguladas.

É nesse cenário de aumento de condições de vida insegura econômica e socialmente, vulnerável à desocupação, ao adoecimento, à incapacidade física e à velhice, gerado pela precarização do trabalho e o desmonte da seguridade social, que surgem propostas de renda básica universal, que de certo modo admitem como irreversíveis as transformações no mercado de trabalho e buscam preencher a lacuna no provimento da segurança econômica deixado pelo recuo das políticas de bem-estar social.

Então, em um mundo do trabalho precarizado é inegável o apoio que a política de Renda Básica Universal pode fornecer aos trabalhadores, mas não podemos deixar de observar que em alguns aspectos seria um retrocesso em relação ao que se observou em um passado recente, em que pese deva-se acrescentar que essa relação de trabalho estável que serviu de base para o Estado de Bem-Estar tenha sido hegemônica por um curto período tempo e alcançado um número limitado de países.

Deve-se acrescentar ainda que, de forma geral, as propostas de Renda Básica Universal fornecem uma segurança em patamares inferiores ao das políticas de bem-estar, de forma que são insuficientes para reverter o quadro atual de aumento da desigualdade de renda, servindo para mitigar os efeitos sobre a pobreza das atuais políticas neoliberais e do mercado de trabalho precarizado.

 

 

A experiência da pandemia

A atual crise da Covid-19 exemplifica bem essa questão. A prevalência das condições de precariedade laboral nas atividades informais e nas relações de trabalho sem contrato firmado é inegável. Entretanto, a realidade evidencia que essa correlação não é necessária. Tanto é possível encontrar-se precariedade no universo da economia formal, quanto circunstâncias absolutamente distantes da precariedade em contextos completamente informais.

A crise ocasionada pela pandemia tornou essas considerações mais visíveis. O impacto na segurança laboral dos trabalhadores ditos informais foi brutal, acarretando enorme perda de renda domiciliar, elevando a dependência de transferências de renda e agravando a insegurança habitacional. Contudo, confirmou-se que a precariedade laboral não atinge apenas os informais. Detectou-se que os efeitos da crise sobre uma parcela dos trabalhadores formais do setor privado foram igualmente intensos, especialmente em ocupações tradicionalmente precarizadas, ocasionando as mesmas consequências, refletindo no aumento da dependência das transferências de renda, inclusive do Auxílio Emergencial. E os dados mostram que o mesmo pode ser dito de parte dos empregadores, sem dúvida, especialmente micro e pequenos empresários.

A crise desencadeada pela Covid-19 mostrou quão graves são os problemas que a precarização do mercado de trabalho acarreta. Reforça como a noção de que o empreendedorismo como solução da crise da sociedade salarial é uma falácia. A ideia de trabalhadores que conquistam sua independência assumindo os riscos, para sua imensa maioria se transforma no oposto, no aumento da dependência de transferências de renda e perda de autonomia. Da mesma forma revela como a noção de remunerar o trabalhador apenas pelo período que ele "presta o serviço ao empregador", que está presente em todas as reformas trabalhistas pelo mundo, não é sustentável.

Os dados foram claros em mostrar que os direitos associados ao contrato de trabalho formal ainda fazem grande diferença em situações como a que estamos passando. Esses problemas se tornam mais evidentes porque no atual momento todos foram afetados ao mesmo tempo, porém os trabalhadores precários estão sujeitos a esse tipo de crise incessantemente. Caso não se reverta a tendência de precarização, teremos uma sociedade dependente de um auxílio emergencial permanente. Uma política de renda básica como o Auxílio Emergencial foi fundamental para evitar que parte dos trabalhadores caísse na pobreza, porém mais eficaz teria sido o acesso a um trabalho decente.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

Sandro Sacchet de Carvalho – A atual crise pode ter relembrado ao mundo a importância da atuação do Estado. Mas, no Brasil, continua-se avançando no desmonte do Estado e das instituições públicas. As PECs 186, 187 e 188 de 2019 e principalmente a PEC 32 de 2020 (a chamada reforma administrativa) ampliam e aceleram o processo de precarização do serviço público com impactos negativos sobre a população que depende dele.

Da mesma forma, amplia-se a rigidez fiscal, buscando implantar a austeridade como política de Estado permanente independentemente das necessidades econômicas e sociais da população. Tudo isso tende a tornar o Estado e a população brasileira menos resilientes a crises futuras, e a crise atual é apenas uma entre muitas que estão por vir.

 

Leia mais