Eleições 2020: em meio à pandemia, crescimento do PSOL, derrota de Bolsonaro, vitória do Centrão e avanço de indígenas, negros, LGBTQ+. Confira algumas análises

Bruno Lima Rocha, João Pedro Stédile, Rudá Ricci, Adriano Pilatti e Robson Sávio Reis Souza analisam as eleições municipais e projetam a conjuntura nacional de um Brasil em pandemia, com aumento das desigualdades e ainda sem projeto de nação

Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo

Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin | 17 Novembro 2020

As eleições para as prefeituras municipais e Câmara de Vereadores deste ano revelaram as contradições dos tempos que temos vivido. Para uns, sinais de esperança e de que novos caminhos precisam ser pavimentados. Para outros, sinais de alerta porque as forças conservadoras e que ameaçam retrocessos ainda se mostram ativas.

Na prática, esses sinais podem ser lidos pelo avanço com a eleição de negros e negras, mulheres e representantes da comunidade LGBTQI+. Ou, ainda, pelo crescimento do PSOL, um partido que sai vitaminado na esquerda, muito embora o PT e as tais coalizões de esquerda não tenham dado a resposta esperada. A exceção fica por conta de Eduardo Suplicy, o petista mais votado para as Câmaras, e do espaço que o partido conquista em São Paulo. Por fim, a derrota – ou ao menos o banho de água fria – daqueles candidatos apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro. De outro lado, é preciso reconhecer que o Centrão de MDB, PP, PTB e DEM segue forte nas prefeituras dos rincões do Brasil, e os vereadores delegados, capitães e representantes de forças repressivas mais conservadoras se fizeram presentes e não tiveram desempenho tão ruim.

A análise de Bruno Lima Rocha, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ainda na madrugada de segunda-feira, vai nesse sentido. “Os candidatos do presidente Jair Bolsonaro não foram nada bem, o PT não ganhou na largada em municípios importantes, houve um reforço da direita oligárquica no campo mais conservador e um considerável avanço do PSOL”, observa. Sobre as eleições presidenciais, aponta que “no Brasil vamos ter algum consenso do discurso e propaganda que marcaram a campanha do Partido Democrata dos EUA em 2020 e vão ao encontro de uma prática política inclusiva”. Mas também sopesa: “Ao mesmo tempo, no Brasil, para além do bolsonarismo, nunca tivemos uma hegemonia econômica tão forte do capital financeiro”.

O líder de movimentos populares João Pedro Stédile é mais otimista com os sinais da esquerda nestas eleições. “O resultado das eleições demonstrou uma derrota da extrema direita, dos bolsonaristas. Derrota da Igreja universal (...). Derrota das candidaturas ligadas aos aparelhos repressivos”, pontua, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail na manhã de segunda-feira. Ainda assim, reconhece que a esquerda precisa recompor suas forças desde as bases. “Espero que os movimentos populares, as igrejas, todas as forças sociais do país, assumam o protagonismo deste debate. Precisamos construir e aglutinar forças ao redor de um novo projeto popular para o país”, diz.

Rudá Ricci observa que “o eleitor foi moderado, votando no já conhecido”. “Também podemos afirmar que o bolsonarismo foi amplamente derrotado na eleição para prefeituras”, acrescenta, na entrevista concedida à IHU On-Line por WhatsApp na manhã de segunda-feira. Embora aponte que o “PSOL começa a emparelhar em potência política com o PT, principalmente no Sudeste”, chama atenção para o fato de que “as frentes de esquerda não deram certo nessas eleições” e que o Centrão segue forte nas prefeituras. “A esquerda brasileira precisa parar de ter medo de falar seu nome. Tem que se posicionar nitidamente e parar de tentar se aproximar de uma agenda liberal ou social-liberal”, recomenda.

Para Adriano Pilatti, a eleição revelou que “a onda bolsonarista de 2018 virou marolinha”. “Isso parece se dever aparentemente à combinação do desgaste do “mito” com a inconsistência e o péssimo perfil das suas candidaturas locais”, explica, na entrevista concedida no final da manhã de segunda-feira, por e-mail, à IHU On-Line. No entanto, menos potência bolsonarista não significa vitória das forças contrárias. “Não significa necessariamente que a onda regressista/conservadora tenha refluído, ao contrário”, enfatiza. Ele também chama atenção para outro dado que pode repercutir nas eleições de 2022: os atrasos na apuração. “É preciso acompanhar rigorosamente a recém-noticiada investigação de uma possível articulação entre a pane no processamento dos resultados eleitorais e as campanhas virtuais de descrédito do sistema eleitoral brasileiro. Trata-se de um risco que não podemos correr em 2022”, observa.

O professor Robson Sávio Reis Souza destaca que as eleições deste ano revelam que os grandes coronéis da política do passado, que integram a centro-direita, voltam à centralidade da cena política. “Avalio que esse grupo político, fundamental nos processos de erosão democrática a partir de 2014, assume tardiamente os espólios do golpe de 2016 que foi surrupiado pela extrema direita bolsonarista e seu pseudodiscurso anticorrupção nas eleições de 2018”, acrescenta. Para ele, ainda é interessante observar os municípios em segundo turno, com mais de 200 mil eleitores. “Neste caso, o partido que mais disputará o pleito será o PT, em 15 municípios, seguido do PSDB, em 14 prefeituras e o MDB disputará 12 prefeituras”, aponta. E, ainda, não somente nas capitais. “As cidades médias e o chamado ‘Brasil profundo’ devem ser considerados, dado que são locais onde todos os partidos, historicamente, buscam estratégias de organização com vistas à ampliação das respectivas legendas”, observa.

Confira as entrevistas.

 

Bruno Lima Rocha (Foto: Reprodução)

Bruno Lima Rocha é cientista político, professor nos cursos de Relações Internacionais e Jornalismo na Unisinos. Possui doutorado e mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e graduação em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente é pós-doutorando em Economia Política pela UFRGS.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos? No último pleito, reinou o discurso do novo. Neste, o velho jogo dos interesses particulares e partidários voltou à cena?

Bruno Lima Rocha – Era presumível que o discurso da “nova política” através dos “ventos da Lava Jato” teria um fim curto. Creio que o fato de o presidente Jair Bolsonaro ter abandonado sua própria sigla, afinal o PSL termina 2018 com a segunda maior bancada do Congresso, revela muito dessa falácia.

Outro fator é o peso negativo do governo federal; inapto, não realiza nada e joga na confusão a sociedade brasileira. O PSL poderia optar por liderar esta direita, mas não resistiu ao próprio mandatário e à disputa por recursos partidários. As legendas mais tradicionais e com estruturas municipais arraigadas e compostas de oligarquias estaduais fortes (MDB, DEM, PSD, PP e PSDB) terminam por sair vitoriosas no pleito municipal. Isso fortalece o chamado “Centrão” (a direita oligárquica herdeira da ARENA, basicamente falando, considerando que o MDB recebeu uma leva de arenistas na década de ’80) e aumenta o custo de apoio ao governo de Bolsonaro.

 

IHU On-Line – Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

Bruno Lima Rocha – No geral, os candidatos do presidente Jair Bolsonaro não foram nada bem. O PT não ganhou na largada em municípios importantes, houve um reforço da direita oligárquica no campo mais conservador e um considerável avanço do PSOL como estrutura de representação parlamentar, tendo chances de conquistar a prefeitura de Belém como capital.

Chama a atenção a presença de várias candidaturas com título profissional, como agentes da lei ou militares (delegado isso, major aquilo...), e a eleição destes não foi tão impactante como em 2018. O mesmo se dá com o fraco desempenho do partido Republicanos, o único diretamente vinculado a um setor do neopentecostalismo, a Igreja Universal do Reino de Deus - IURD. O discurso da “nova direita” perde fôlego, embora o NOVO tenha garantido algumas posições parlamentares.

Do MBL [Movimento Brasil Livre], confesso, não sei se existe ainda e em qual posição está. Até o momento de fechar esta entrevista [na madrugada de 16-11], o PDT por “centro-esquerda” é o maior partido municipalista do Brasil deste campo. Isso cacifa ainda mais uma aliança com Ciro Gomes, se e caso a centro-esquerda e o trabalhismo consigam traçar essa coligação.

 

IHU On-Line – A pandemia de 2020 trouxe uma série de temas ao debate, como a emergência climática, de concepção de uma outra lógica econômica, da necessidade de uma renda básica e mesmo de um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir esses debates? E quais devem ser os reflexos nas eleições presidenciais?

Bruno Lima Rocha – Vejo que no Brasil vamos ter algum consenso do discurso e propaganda que marcaram a campanha do Partido Democrata dos EUA em 2020 e vão ao encontro de uma prática política inclusiva, de formas de economia verde e desenvolvimento sustentável e responsabilização com o outro, no sentido de alteridade. Ao mesmo tempo, no Brasil, para além do bolsonarismo, nunca tivemos uma hegemonia econômica tão forte do capital financeiro, especulativo, parasitário e sem compromisso algum em escala societária.

Esse paradoxo é grande e a conta não fecha, eis o papel ainda fundamental de Paulo Guedes no governo Bolsonaro e a censura nos meios e conglomerados de comunicação nas pautas de economia e no que diz respeito à blindagem da farsa fiscalista e absurda da PEC do “teto dos gastos”. Neste sentido, a cancha ainda está aberta. Até pensei no início da pandemia que teríamos uma inflexão da direita midiática rumo a um pacto de tipo neokeynesiano, mas isso não se realizou.

Infelizmente, no Brasil, essa agenda mais propositiva e distante da necropolítica vai ter dificuldade de chegar ao nível de maioria que tínhamos quando da Constituinte (um texto avançado promulgando uma Constituição apesar da composição da Assembleia Nacional Constituinte).

 

IHU On-Line – Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos? Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

Bruno Lima Rocha – Não posso ser leviano pois não conheço a obra desse filósofo e menos ainda uma proposição abstrata. O que sei e tenho grau de certeza é que as instituições formais se transformam a partir de força social consolidada e os valores e pautas desta força social são as bandeiras que podem modificar situações e diminuir mazelas sociais. Grupos de pressão, redes sociais, meios alternativos, organização territorial e luta direta. Para começar a equilibrar a gangorra.

O problema no Brasil foi uma brutal geração de renda na Era Lula, mas que era frágil (politicamente desorganizada, socialmente dispersa e ideologicamente adesista aos valores do sistema) e pouco resistiu ao golpe de Estado e antes da traição da ex-presidente Dilma quando reeleita, emplacando um Chicago Boy na Fazenda. Não acredito que a América Latina “ature” muito tempo essa breve inflexão neoliberal, mas no caso brasileiro, é preciso – urgentemente – quebrar a farsa fiscalista e a concentração de renda através do controle da pasta da Economia pelo parasita financeiro. Do contrário não há viabilidade de nada em termos de política pública e demandas para os governos municipais recém-eleitos.

Sobre a conversão da política, uma pauta emergente de como estar e sobrevivermos nesse mundo do teletrabalho, do aquecimento climático, dos crimes ambientais, destruição do território e desumanização em escala societária, creio que sim, estamos indo bem rumo a um novo “consenso” por esquerda de modo a garantir essa pauta como um valor social consolidado.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Bruno Lima Rocha – A política está muito além da urna e do voto. Sem organização social, sem estruturas políticas permanentes, sem militância devotada não buscando compromissos de cargos e posições, simplesmente nada se realiza, apenas teremos reação aos absurdos da direita. Outro tema é construirmos consensos de política econômica, ampliando o espaço para políticas públicas, democracia no serviço público, moedas sociais e experiências de arranjos produtivos locais para políticas públicas e sob o controle do movimento popular.

Infelizmente o maior fator de desorganização social no Brasil atual é o próprio governo federal com o patético e colonizado Jair Bolsonaro “governando pelo Twitter”. O volume desse problema é gigantesco e deve ser enfrentado, incluindo a presença de meios alternativos de comunicação, consorciando a mídia universitária, alternativa, pública não estatal e local-municipal. O esforço pela busca de saídas que descolonizem a dominação sobre o país e nossa população deve ser permanente e ultrapassa os limites do jogo democrático burguês de representação.

 

 

 

João Pedro Stédile (Foto: Reprodução/Twitter)

João Pedro Stédile é economista, ativista e escritor. É graduado em economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS, pós-graduado pela Universidade Nacional Autônoma do México. Marxista por formação, Stédile é um dos maiores defensores da reforma agrária no Brasil e um dos líderes do Movimento dos Trabalhadores sem Terra - MST.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos? No último pleito, reinou o discurso do novo. Neste, o velho jogo dos interesses particulares e partidários voltou à cena?

João Pedro Stédile – As eleições deste ano tiveram a excepcionalidade dos cuidados relacionados à covid-19, que impediram comícios e grandes mobilizações. E a expectativa se haveria ou não influência das fake news e da extrema direita, que chegou ao Planalto.

Percebemos que não houve debate sobre os problemas nacionais e nem sobre projetos para sair da crise. Prevaleceram a conjuntura local, a influência principal das características pessoais dos candidatos e também um certo julgamento daqueles que foram à reeleição.

 

IHU On-Line – Qual a sua análise quanto ao resultado da eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

João Pedro Stédile – O resultado das eleições demonstrou uma derrota da extrema direita, dos bolsonaristas. Derrota da Igreja universal, que tem um projeto de poder político nacional, com seus dois principais candidatos: [Marcelo] Crivella (RJ) e [Celso] Russomano (SP). Derrota das candidaturas ligadas aos aparelhos repressivos, como delegados, policiais militares, membros das Forças Armadas. As vitórias destes candidatos, que eram milhares, foram pífias. Derrota dos tucanos, que não conseguiram se separar do golpe que ajudaram a dar em 2016, de ter governado com [Michel] Temer e ajudado a eleger Bolsonaro.

Houve vitórias dos prefeitos que foram reeleitos no sentido de o povo apostar mais no mesmo (Florianópolis, Curitiba, Salvador, Fortaleza e Belo Horizonte). O chamado Centrão (MDB, DEM, PP) também saiu vitorioso com candidatos conhecidos, a reeleição de muitos prefeitos e sua máquina financeira e eleitoral. Mas são vitórias individuais que não necessariamente acumulam para projetos nacionais. Revelam a hegemonia que há pelo interior do país de uma forma conservadora de fazer política e de analisar se foi um bom prefeito ou não.

A esquerda voltou à cena, fez bonito em diversas capitais e grandes cidades e pode sair vencedora em diversas cidades, derrotando o bolsonarismo e a imprensa burguesa, que ficou todo tempo dizendo que não tinha líderes, que não tinha programa e que estava dividida. A Globo deveria pelo menos morder a língua, já que não tem vergonha de suas mentiras. E a sua dupla para 2022 (Luciano Huck / Sérgio Moro) não teve nenhuma influência nas eleições.

Ciro Gomes manteve sua força no Ceará. Flávio Dino [do PC do B do Maranhão] não conseguiu se nacionalizar. Lula soma pontos com vitórias da esquerda. A novidade foi também a existência de muitos candidatos ligados a movimentos populares, com mulheres, negros, jovens, alguns inclusive com chapas coletivas, que é também uma novidade positiva, independente do resultado. Pode sinalizar para a necessária renovação de atores na política institucional. Em resumo, o bolsonarismo foi derrotado, o centro reforçado e a esquerda se recupera.

 

IHU On-Line – A pandemia de 2020 trouxe uma série de temas ao debate, como a emergência climática, de concepção de uma outra lógica econômica, da necessidade de uma renda básica e mesmo de um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir esses debates? E quais devem ser os reflexos nas eleições presidenciais?

João Pedro Stédile – O Brasil está vivendo a pior crise da sua história. E o mundo também. É uma crise do modo de produção capitalista, do estado burguês na forma de praticar uma falsa democracia, que não garante direitos iguais a toda população. É uma crise ambiental e até de valores civilizatórios. Infelizmente, esses temas não foram abordados nas campanhas, ainda que os direitos fundamentais de emprego, renda, moradia, terra, saúde e educação se realizem no município. Mas, de certa forma, as eleições municipais no Brasil, mesmo nas capitais, nunca extrapolaram temas locais, e, como disse, são muito influenciadas pela popularidade e carisma dos candidatos, independentemente de partido ou de programas.

Espero que os movimentos populares, as igrejas, todas as forças sociais do país, assumam o protagonismo deste debate. Precisamos construir e aglutinar forças ao redor de um novo projeto popular para o país. Existem algumas iniciativas em curso, mas precisamos massificar o debate, desde a base, a militância e a nível nacional com os dirigentes que são referências. Infelizmente, isso somente será possível depois que tivermos a vacina [contra covid-19], para fazer reuniões, debates públicos e mobilizações de massa.

Mas, por outro lado, a contradição positiva é que a burguesia brasileira está totalmente subordinada ao capital internacional e financeiro, não tem e não quer ter um projeto de nação. O único projeto dos capitalistas brasileiros é eles aumentarem os seus lucros. Estão se lixando para o povo. Imagine, eles estão jogando no lixo 60 milhões de trabalhadores adultos, aqueles que fizeram filas para os 600 Reais [do auxílio emergencial na pandemia], que não têm mais nenhuma inclusão no sistema produtivo e estão à margem da cidadania, dos direitos fundamentais de alimentação sadia, moradia digna, trabalho, terra e renda. O “Brasil rejeitado” é o segundo maior país da América do Sul, logo após o Brasil total.

 

IHU On-Line – Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos? Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

João Pedro Stédile – Se a burguesia tivesse algum compromisso com a nação, ela ajudaria a afastar o Bolsonaro e construiria com outras forças um programa mínimo de transição para salvar vidas, salvar as empresas estatais, reconstruir as políticas públicas de proteção ao povo, induzir os investimentos para setores produtivos (e não financeiros e especulativos como agora) para resolver os problemas fundamentais. Infelizmente, essa proposta – ainda que defendida por diversos líderes como Lula, [Roberto] Requião, Ciro, Flávio Dino, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e setores da intelectualidade – parece que não terá viabilidade.

O Brasil precisa de um programa mínimo, urgente de curto prazo que estancasse a sangria social, e recolocar o país nos caminhos da democracia social. E para isso o primeiro passo é afastar o capitão insano e genocida. E, por outro lado, é preciso articular um grande debate nacional de construção de um projeto de longo prazo que, de fato, representasse a solução para os problemas econômicos, sociais, ambientais e políticos de todo o povo.

Mas, aliado à construção do projeto, será necessário criar força social, que somente acontecerá com um reascenso do movimento de massas, como aconteceu na crise da década de 1960, na crise da década de 1980.

 

Inspirações de Francisco

Todos os grandes pensadores atuais da humanidade têm feito reflexões sobre a necessidade de resolvermos a crise histórica, com um novo programa pós-capitalista, civilizatório, que garantisse a melhoria das condições de vida e os direitos fundamentais para todos os seres humanos, em qualquer parte do mundo. O papa Francisco tem sido um desses e se transformou num grande líder mundial, maior do que a comunidade católica.

As duas encíclicas dele (Louvado seja e Todos somos irmãos) são uma grande contribuição analítica, e todo militante de esquerda deveria estudá-la. Ele chegou a dizer recentemente que frente a essa crise, os direitos a terra, trabalho e moradia digna (os três tês) são direitos sagrados. É a vontade de Deus e portanto deveria ser a pauta de todo bom cristão.

 

Reorganização de forças

Ter um projeto, ter força organizada e ter mobilização de massa pode levar anos, certamente não vamos resolver apenas com as eleições de 2022. Mas este é o caminho e eu sou otimista, porque o capitalismo como sistema não é solução para os problemas do povo. Ao contrário, só agravam e a burguesia deixou de ser uma classe progressista. Portanto, só a organização dos trabalhadores poderá construir um futuro promissor para a sociedade, aqui e em todo o mundo.

 

 

Rudá Ricci (Foto: Ricardo Machado/IHU)

Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos? No último pleito, reinou o discurso do novo. Neste, o velho jogo dos interesses particulares e partidários voltou à cena?

Rudá Ricci – O que podemos dizer – já que ainda estamos cruzando dados – é que o eleitor foi moderado, votando no já conhecido. Também podemos afirmar que o bolsonarismo foi amplamente derrotado na eleição para prefeituras, mas o mesmo não ocorreu em relação às Câmaras Municipais.

Em muitos grandes centros urbanos, os candidatos inflamados – grande parte jovens influenciadores das redes sociais – se elegeram com certa folga. Também é possível afirmar que o PSOL começa a emparelhar em potência política com o PT, principalmente no Sudeste. A maioria dos prefeitos eleitos no primeiro turno é oriunda de partidos de centro ou centro-direita: MDB, PSD, PP, DEM (acima de 240 prefeitos eleitos cada).

 

IHU On-Line – Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

Rudá Ricci – A esquerda se saiu muito mal em Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Contudo, em São Paulo uma nova liderança despontou com muita força. Aliás, [Guilherme] Boulos e [Luiza] Erundina ajudaram a eleger uma bancada expressiva de vereadores em São Paulo, oito vereadores, o mesmo número que o PT (tendo Eduardo Suplicy, o vereador com maior votação em todo o país). Em Vitória, [João] Coser [do PT] foi ao segundo turno e se manteve emparelhado com o seu adversário desde o início da campanha.

Norte e parte do Nordeste foi onde a direita se saiu bem nas capitais. No Nordeste, candidatos da direita venceram no primeiro turno ou estão no segundo turno em oito das nove capitais; a esquerda estará no segundo turno em quatro capitais. No Norte, a esquerda tem chances reais apenas em uma capital.

No Sul do país, a esquerda aparece à frente em Porto Alegre, mas nem chegou a arranhar em Curitiba, e em Florianópolis foi apenas uma promessa que não se concretizou. Aliás, as frentes de esquerda não deram certo nessas eleições, reforçando a ideia que o voto do eleitor médio brasileiro é profundamente presidencialista: vota no nome, não no bloco político-ideológico.

 

IHU On-Line – A pandemia de 2020 trouxe uma série de temas ao debate, como a emergência climática, de concepção de uma outra lógica econômica, da necessidade de uma renda básica e mesmo de um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir esses debates? E quais devem ser os reflexos nas eleições presidenciais?

Rudá Ricci – Se pensarmos nas 100 maiores cidades do país, que abrigam 55% dos brasileiros, a situação parece muito vantajosa para partidos de centro ou centro-direita, seguidos pela centro-esquerda. A pandemia fez o índice de abstenção saltar de 17% para 30%. Acredito que o tema das eleições de 2022 estará polarizado entre as saídas econômicas e a sobrevivência dos mais pobres (ou reconstrução de suas esperanças após perderem emprego e renda em 2020).

 

IHU On-Line – Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos? Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

Rudá Ricci – A esquerda brasileira precisa parar de ter medo de falar seu nome. Tem que se posicionar nitidamente e parar de tentar se aproximar de uma agenda liberal ou social-liberal. O PT está sendo punido por ter se afastado dos movimentos sociais e da ação nos bairros mais vulneráveis socialmente e por ter feito política de cúpula, tudo o que o PT combatia quando foi criado. O PSOL começa a se fortalecer em virtude de sua imagem ser muito próxima à que o PT tinha nos anos 1980.

O Brasil, em termos de desigualdade social é, hoje, muito próximo ao que era nos anos 1980, com o acréscimo da profunda fragmentação de interesses e desconfiança em relação ao espaço e às autoridades públicas. A campanha de Boulos e Erundina, neste sentido, apontou para uma leitura e prática corretas para este século. Houve um ou outro “aggiornamento” no PT, mas foi episódico, como ocorreu com a covereança da Coletiva, lançada em Belo Horizonte e que elegeu uma das duas vagas que o PT ocupará na Câmara Municipal da capital mineira. A Coletiva lançou 10 covereanças envolvendo pluralidade de lideranças e pautas, do direito LGBT à saúde pública, da cultura à luta antirracista, da luta pelo transporte público ao feminismo. Foi um sopro de século XXI, como foi a chapa Boulos/Erundina.

 

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Rudá Ricci – Apenas destacar alguns números organizados pelo Breno Altman.

Eleitores de esquerda

Os votos em candidatos do PT a prefeito, em 2020, subiram 2,53% sobre 2016, de 6.795.749 para 6.967.553.
O PSOL foi de 2.098.633 para 2.233.374, mais 6,42%.
O PC do B caiu 33,52%, de 1.781.388 para 1.184.243.
A esquerda caiu de 10.675.700 para 10.385.170, deslizando 2,72%.

Vereadores de esquerda

O PT elegeu 2.584 vereadores em 2020, contra 2.815 em 2016, caindo 8,21%.
O PSOL elegeu 75, contra 56 antes, subindo 33,93%.
O PC do B fez 678 cadeiras municipais agora, contra 1.010 em 2016, menos 32,87%.
A esquerda foi de 3.881 para 3.337 vereadores, deslizando 14,02%.

Prefeituras de esquerda

O PT elegeu 254 prefeitos no 1º turno de 2016, contra 174 em 2020, uma queda de 31,50%.
O PC do B foi de 81 para 45, menos 44,44%.
O PSOL subiu 100%, de dois para quatro.
A esquerda deslizou de 337 para 223, menos 33,83%. 

Ainda temos o segundo turno.

 

 

Adriano Pilatti (Foto: IHU)

Adriano Pilatti é graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ, com estágio pós-doutoral em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. É professor do Departamento de Direito da PUC-Rio. Traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: Lamparina, 2015). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos? No último pleito, reinou o discurso do novo. Neste, o velho jogo dos interesses particulares e partidários voltou à cena?

Adriano Pilatti – Generalizações são sempre duvidosas, generalizações prematuras são perigosas. Se as eleições de 15 de novembro revelam algo sobre a política e a democracia em tempos de pandemia, o que revelam diz mais respeito às conjunturas locais e regionais do que à conjuntura nacional, embora possam sinalizar algo em termos nacionais também. Já virou um truísmo afirmar que eleições municipais apresentam especificidades que não aconselham projeções para eleições nacionais futuras.

Nas atuais circunstâncias, em que temos uma eleição em meio à excepcionalidade de uma pandemia, que é a primeira eleição, em décadas, com proibição de coligações nas disputas proporcionais, seria preciso refletir por mais tempo, a partir da quantidade gigantesca de dados, para fazer generalizações mais amplas e consistentes. Mas é possível arriscar algumas considerações sobre o quadro geral que vai se delineando.

Penso que esta não foi uma eleição propriamente “plebiscitária” sobre o quadro político nacional. E quando falamos em quadro político nacional, falamos de um cenário convulsionado pelo bolsonarismo, de um lado, e pela fragmentação/rarefação do voto de esquerda, de outro. Mas o bolsonarismo não se saiu nada bem nesta eleição, até porque seu líder não se preparou competentemente para isso. Não teve nenhuma vitória local retumbante ou exemplar, não teve sequer uma vitória importante e, nas poucas cidades em que vai para o segundo turno, não vai exclusivamente por suas forças.

É o caso do Rio, em que a base do candidato bolsonarista é própria, confessional. Nestas eleições locais, a onda bolsonarista de 2018 virou marolinha. Isso parece se dever aparentemente à combinação do desgaste do “mito” com a inconsistência e o péssimo perfil das suas candidaturas locais. Mas isso não significa necessariamente que a onda regressista/conservadora tenha refluído, ao contrário. E só uma análise acurada do perfil ideológico dos candidatos dos campos reacionário e conservador já eleitos ou classificados para o segundo turno, bem como da composição ideológica das novas Câmaras Municipais, pode permitir dimensionar adequadamente a força dessas tendências.

 

Direita

Por outro lado, a direita tradicional parece ter recuperado seu espaço digamos “natural”. Candidatos dos partidos de direita, com perfil normalizado, saíram-se muito bem no cômputo geral, muito melhor que os candidatos do bolsonarismo “raiz”, e bem melhor que os candidatos do campo da esquerda. Isso coloca em xeque o tal “discurso do novo”, um “novo” que, nas eleições de 2018, expressou as novas configurações do arcaísmo de nossa sociedade. Essa “nova (extrema) direita” se deu mal.

Quanto ao “velho jogo” da representação tradicional, parece evidente que ele está em mutação, contaminado por peças dos museus de velhas novidades e se abrindo também a novas tendências. O grande número de candidaturas, em quase todo o arco ideológico, militarizadas, “securitizadas” ou confessionalizadas pelos prenomes correspondentes a postos de carreiras policiais, militares e clericais indica a presença um tipo de identitarismo regressivo sobre o qual é importante refletir.

 

Esquerda

De outra parte, especialmente no campo da esquerda, o expressivo número de candidaturas coletivas bem sucedidas parece indicar uma nova tendência. Ainda à esquerda, é de se atentar para o crescimento, ainda que relativo, do PSOL, especialmente nas proporcionais.

Finalmente, penso que é importante atentar para o fenômeno geracional. Uma nova safra de lideranças eleitorais e partidárias, à direita e à esquerda, vai se afirmando em termos nacionais. Uma nova safra que reconfigura linguagens e símbolos, estratégias de abordagem e de ação midiática. Em termos geracionais, uma página parece estar sendo virada, mas é cedo para dizer em que sentido isso vai caminhar.

 

IHU On-Line – Qual a sua análise quanto ao resultado da eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

Adriano Pilatti – Em primeiro lugar, penso que é preciso examinar em separado alguns desempenhos excepcionais de candidatos reeleitos em primeiro turno, como em Belo Horizonte e Curitiba, bem como o do candidato eleito em Salvador. [Alexandre] Kalil e [Rafael] Greca revelaram um lastro eleitoral personalíssimo, oriundo da percepção de sucesso de suas administrações, especialmente, ao que parece, em relação ao combate à pandemia. Já a eleição de [Bruno] Reis parece revelar que ACM Neto, duas vezes prefeito pelo DEM, que faz seu sucessor num estado governado pelo PT, está reinventando o Carlismo na cidade de Salvador. E se credencia como um dos “grandes eleitores” da direita nacional.

Numa outra situação, penso que é possível aproximar as disputas de São Paulo e Porto Alegre, onde o confronto entre a direita tradicional e a esquerda localmente mais forte neste momento reativa a polarização pré-2018. Os desempenhos de Manuela e Boulos apontam as novas faces do campo de esquerda em seus estados, com possibilidade de projeção nacional. Já a situação da disputa em Recife é especialíssima, mas revela que, pontualmente, o PT ainda tem fôlego, sobretudo se agregarmos sua presença nos segundos turnos de 15 das 57 cidades que os realizarão, e também sua presença em coligação com o PSOL em Belém e Porto Alegre.

O Rio tem sido uma triste anomalia, e o cenário político desolador da cidade que já foi a caixa de ressonância da opinião nacional não pode ser dissociado nem do controle armado dos territórios populares por parte das milícias e “facções”, nem da forte presença político-eleitoral do neopentecostalismo nas regiões miseráveis. Esse quadro terrível, em que as esquerdas se autocondenaram à irrelevância pela fragmentação e pelo suicídio político de [Marcelo] Freixo, criou um cenário em que “deu a lógica”: o conservadorismo “nutella” consagrou [Eduardo] Paes, e a aliança do neopentecostalismo com o bolsonarismo garantiu a Crivella o mínimo necessário (mas o mínimo) para chegar ao segundo turno – o que não é pouco, considerando o inexistente desempenho administrativo de seu insuportável primeiro mandato.

Já à direita, PSDB, DEM, MDB e PSD (leia-se, boa parte do velho-novo “Centrão”) saíram-se muito bem, e atestam a força do voto conservador, que parece ter retornado, neste momento, às alternativas mais tradicionais.

 

IHU On-Line – A pandemia de 2020 trouxe uma série de temas ao debate, como a emergência climática, de concepção de uma outra lógica econômica, da necessidade de uma renda básica e mesmo de um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir esses debates? E quais devem ser os reflexos nas eleições presidenciais?

Adriano Pilatti – Minha impressão inicial é a de que, lastimavelmente, esses temas foram irrelevantes para a disputa. As questões relativas às situações especificamente locais foram as mais ventiladas, o que é naturalmente óbvio e, na segunda posição, ficaram as questões de política nacional. Os temas indicados na pergunta parecem ter permeado de maneira muito fraca as questões locais e nacionais nesta disputa, a não ser a questão específica do enfrentamento sanitário da pandemia. A tendência é que apareçam com mais força nas eleições de 2022.

 

IHU On-Line – Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos? Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

Adriano Pilatti – Isso daria outra entrevista. O tempo para o envio das respostas está acabando, mas é preciso reiterar o óbvio: neste país brutalmente desigual e violento, a saída está nas lutas e nos movimentos por direitos, e na capacidade de os partidos de esquerda se refundarem como organizações a partir de uma reconexão com a nova composição material e simbólica das classes trabalhadoras e marginalizadas. Fora daí é seguir enxugando gelo.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Adriano Pilatti – É preciso acompanhar rigorosamente a recém-noticiada investigação de uma possível articulação entre a pane no processamento dos resultados eleitorais e as campanhas virtuais de descrédito do sistema eleitoral brasileiro. Trata-se de um risco que não podemos correr em 2022.

 

 

Robson Sávio Reis Souza (Foto: Acervo IHU)

Robson Sávio Reis Souza é doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, com pós-doutorado em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, na Espanha, mestre em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Ainda é licenciado em Filosofia pela PUC Minas, especialista em Estudos de Criminalidade e Segurança Pública e em Teoria e Prática da Comunicação. Atua como professor adjunto da PUC Minas, pertencente ao Departamento de Ciências da Religião. Também é pesquisador e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos – Nesp da PUC Minas.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos? No último pleito, reinou o discurso do novo. Neste, o velho jogo dos interesses particulares e partidários já voltou à cena?

Robson Sávio Reis Souza - Revelou que o espectro partidário de centro-direita, os coronéis do passado e os neocoronéis, retomou o seu protagonismo na cena política nacional. Avalio que esse grupo político, fundamental nos processos de erosão democrática a partir de 2014, assume tardiamente os espólios do golpe de 2016 que foi surrupiado pela extrema-direita bolsonarista e seu pseudodiscurso anticorrupção nas eleições de 2018.

Revelou que Bolsonaro é um “gigante com pés de barro”. Como influenciador e transferidor de votos, Bolsonaro não emplacou nenhum nome de expressão nessas eleições. O presidente não tem base social robusta e fiel em nenhuma camada social, a não ser pouca adesão em parte da classe média ressentida. (Tem boa aprovação momentânea por causa do auxílio emergencial). As milícias virtuais e reais são suas verdadeiras bases. Ademais, Bolsonaro não tem partido, nem base política no Congresso. Como sempre fez, usa partidos de aluguel a seu bel-prazer e isso ficou claro nos resultados eleitorais. E, por fim, confirmou que Bolsonaro é um incendiário; só faz política usando medo, palavrórios e ameaças, a ponto de constranger sua base militar. Portanto, Bolsonaro é o grande derrotado nessas eleições, apesar do “bolsanarismo” manter laços profundos, na política e na sociedade, que não podem ser desdenhados.

Revelou que houve um incremento bastante interessante na eleição de mulheres e de grupos minoritários, principalmente nos espectros mais à esquerda. Mas, aponta também que os partidos de esquerda, principalmente o PT, altamente criminalizados nos últimos tempos, enfrentam fortes resistências, mas ainda estão bem vivos na disputa eleitoral, dado que o PT é o partido que mais disputará cidades com mais de 200 mil habitantes no segundo turno. Observamos, também, um crescimento do PSOL.

Por fim, revelou que a política mais tradicional parece gerar, neste momento, mais confiabilidade e segurança numa sociedade que aprecia valores tradicionais e conservadores, muitos desses valores associados à questão religiosa.

Cada eleição deve ser interpretada a partir de variáveis daquele momento histórico e fenômenos outsiders, os arrebatadores de votos, podem significar simplesmente uma contingência de determinado momento político e eleitoral, sem provocar grandes fissuras num modelo político tradicionalmente conservador.

 

IHU On-Line - Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

Robson Sávio Reis Souza - Só sete das capitais tiveram a chefia do executivo definida no primeiro turno: o Democratas ganhou três prefeituras. O PSDB e PSD conquistaram, cada um, duas chefias municipais.

A cidade de Campo Grande (MT) manteve Marquinhos Trad (PSD). Na região Nordeste, Natal (RN) reelegeu Álvaro Dias (PSDB); Bruno Reis (DEM) foi eleito prefeito de Salvador (o único candidato que conseguiu sair vitorioso no 1º turno sem ser o atual prefeito). No Sul, Curitiba (PR) reelegeu Rafael Greca (DEM) e Florianópolis (SC) reelegeu Gean Loureiro (DEM). Em Belo Horizonte, Alexandre Kalil foi reeleito. E em Palmas (TO) Cinthia Ribeiro (PSDB) renovou o mandato (considerando que a cidade não tem 2º turno pois há menos de 200 mil eleitores no município). Assim, o primeiro turno confirma a força do campo classificado como de centro-direita.

Porém, no segundo turno, é interessante observarmos a situação indefinida nas cidades com mais de 200 mil eleitores. Neste caso, o partido que mais disputará o pleito será o PT, em 15 municípios, seguido do PSDB, em 14 prefeituras e o MDB disputará 12 prefeituras.

Assim, nas eleições 2020 é preciso considerar também o eleitorado para além das capitais. As cidades médias e o chamado “Brasil profundo” devem ser considerados, dado que são locais onde todos os partidos, historicamente, buscam estratégias de organização com vistas à ampliação das respectivas legendas e incremento na participação do “mercado eleitoral”.

Portanto, dependendo dos resultados do segundo turno podemos verificar, por exemplo, se há alguma reação mais consistente dos setores de esquerda, por exemplo.

 

IHU On-Line - A pandemia de 2020 trouxe uma série de temas ao debate, como a emergência climática, de concepção de uma outra lógica econômica, da necessidade de uma renda básica e mesmo de um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir esses debates? E quais devem ser os reflexos nas eleições presidenciais?

Robson Sávio Reis Souza - A administração da pandemia pelos prefeitos certamente foi fundamental nessas eleições. Os eleitores avaliaram em que medida os prefeitos que buscavam a reeleição cuidaram da população com medidas e políticas públicas voltadas para a atenção à saúde pública e o respeito aos critérios científicos e sanitários nas decisões tomadas durante o surto do Covid-19. Esses prefeitos acabaram tendo uma melhor avaliação e muitos foram inclusive reeleitos, não somente nas capitais como em centenas de outras cidades.

Porém, nas eleições municipais temas como a questão climática e mesmo a situação econômica do país não entram na pauta do debate eleitoral (ou entram marginalmente). O eleitor está mais preocupado com os temas afetos às políticas públicas de base local.

Porém, para se pensar em 2022, o mais importante é avaliar o rearranjo do campo da chamada centro-direita e dos demais campos em disputa. A centro-direita – que se reorganiza a partir da eleição de muitos prefeitos e vereadores, constituindo bases eleitorais sólidas – se posiciona claramente (também com rearranjos no Congresso Nacional) para o protagonismo no próximo pleito.

Como informado anteriormente, o campo das esquerdas, ao contrário do canto de certas carpideiras neoliberais, está vivo e o PT disputará 15 cidades no segundo turno com mais de 200 mil eleitores. O PSOL disputará Belém e São Paulo, a maior cidade do Brasil, a credenciar o partido como um importante player também nas esquerdas, junto ao PT.

Tudo isso deverá compor as discussões e alianças para o pleito de 2022. Recordando que, aparentemente, o grande inimigo a ser derrotado seria o presidente Bolsonaro que, como afirmamos, não tem base partidária nem base eleitoral, mas ainda mantém uma importante coalizão formada pelo militarismo, segmentos neopentecostais e outros grupos de extrema direita.

Por fim, há um outro setor à direita que se reorganiza em torno dos nomes do ex-juiz Sérgio Moro e do apresentar global Luciano Huck, congregando importantes segmentos neoliberais e conservadores que também poderá dividir o chamado campo da centro-direita. Portanto, o quadro para 2022 está totalmente aberto.

 

IHU On-Line - Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos? Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

Robson Sávio Reis Souza - A provocação de Giraud é eticamente consistente, defensável e desejável. Porém, como dizia o dramaturgo Nelson Rodrigues, devemos considerar “a vida como ela é”.

O Brasil é um país continental e não há uma receita única no enfrentamento das mazelas de uma sociedade histórica e estruturalmente desigual, injusta e violenta.

Vivemos, num mesmo país, em mundos diferentes. Não se trata somente das desigualdades regionais, étnicas, econômicas, geracionais. Dentro de cada cidade, a vida boa dos poucos ricos e da classe média se contrasta com a vida sofrida, em muitos casos miserável, dos pobres das periferias. São muitos brasis...

O fato é que o processo político dos últimos anos tem mostrado que o conservadorismo social, o apego a determinadas tradições, a resistência às reformas estruturais, o medo de mudanças que removam velhos ranços elitistas, machistas, autoritários não têm a adesão de boa parte da população. Há que considerar ainda que temos elites atrasadas, antinacionais, autoritárias, que impedem a construção de um projeto de Nação.

O brasileiro, às vezes por necessidade, tem uma relação com a política eleitoral muito oportunista e pontual. Age como se a democracia fosse simplesmente participar da eleição a cada dois anos, não se responsabilizando no acompanhamento dos eleitos. Isso transforma as eleições num processo altamente enviesado: os eleitos são, tradicionalmente, homens brancos, da classe média e que não representam a diversidade da população que, por sua vez, não avalia criteriosamente seus representantes.

Só muito recentemente começamos a ter uma diversidade de gênero, étnica, de renda nos parlamentos e em outros espaços da vida política e partidária.

Temos um processo de educação que não forma para uma cidadania ativa e participativa. Então, acho difícil pensar em superação de mazelas e reformas estruturais a curto prazo. É preciso um longo processo de amadurecimento político dos cidadãos para que na democracia representativa aperfeiçoemos a qualidade da representação.

Vejamos um exemplo, considerando o pleito na Câmara Municipal de Belo Horizonte: se por um lado foram eleitas 27% de mulheres, totalizando 11 das 41 cadeiras, e no campo progressista foram eleitas mulheres trans, lésbicas e duas negras, por outro lado, 80% dos vereadores são da centro-direita à extrema direita. O que isso significa? Que mudanças no sentido de alianças políticas que visem a construção de uma cidade mais justa e igualitária, a enfrentar as mazelas sociais, ficarão longe do processo legislativo na próxima legislatura, a não ser que aconteça um processo de ampla ação, participação e monitoramento dos eleitos pela população.

Por fim, política é participação em vários espaços da vida e do exercício da cidadania: conselhos, movimentos sociais, coletivos urbanos. Somente com mais participação e com a organização social, a criar uma potência que se organiza pelas bases sociais, poderemos vislumbrar reformas estruturais para além de mudanças incrementais. Eleição não é fim de um processo político. É simplesmente o início.

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