Junho de 2013: Do desejo de renovação ao abismo do anti-establishment visceral. Entrevista especial com Bernardo Gutiérrez

Protestos contra o aumento das passagens do transporte público - aria Objetiva - Flickr/CC

Por: Ricardo Machado | 13 Fevereiro 2020

Tarefa sempre incompleta e cada vez mais desafiadora, interpretar o Brasil contemporâneo requer levar em conta Junho de 2013, quer se goste ou não deste evento político. Bernardo Gutiérrez, em seu novo livro Saudades de Junho, retoma o debate em torno das mobilizações que tomaram as ruas do país, mas adverte que o ponto de inflexão que levou o Brasil à atual situação foram as eleições presidenciais de 2014.

“[A eleição] Reforçou a polarização e representou o fim do que eu chamo ‘espírito de junho’. Era um espírito de rebeldia e alegria coletiva que ia muito além das narrativas e dinâmicas prévias dos movimentos sociais e da esquerda tradicional. Era um espírito inclusivo e aberto que focava muito na horizontalidade, em formas de fazer pouco hierárquicas”, avalia o jornalista e analista político Bernardo Gutiérrez, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A ultradireita sequestrou parte do espírito de junho e transformou aquela indignação contra a classe política em um sentimento anti-establishment visceral, em antipolítica pura. E é uma pena, porque existia em junho de 2013 um desejo claro da renovação política”, sustenta.

Para Gutiérrez a onda de protestos que emerge a partir de 2015 no Brasil, que resultou, entre outras coisas, no impeachment de Dilma Rousseff e, mais tarde, na eleição de Bolsonaro são parte de um período que não se conecta a Junho de 2013. “Os principais atores de junho de 2013 não estiveram nas ruas e nas redes a partir do ano 2015”, complementa.

Tentando fugir de uma narrativa saudosista das Jornadas de Junho, o jornalista propõe retomar uma lição dos movimentos de rua autonomistas, que é a “descatralização da vida”. “Pular a catraca é a inauguração de um fato portador de futuro. Pular a catraca é uma inscrição do fato na vida pública. Lembro muito bem daqueles festivais de pular catracas na rua, festivos e subversivos”, ressalta. Além disso, é fundamental que as frentes de esquerda desçam do pedestal para que a possibilidade do diálogo seja retomada. “A superioridade moral da esquerda, que estigmatiza as culturas bregas, o mau gosto cultural dos favelados e/ou evangélicos, a música sertaneja ou caipira, até os bailes funk, aprofunda a distância”, pontua.

Bernardo Gutiérrez (Foto: Arquivo pessoal)

Bernardo Gutiérrez é jornalista, escritor e pesquisador. De origem espanhola, naturalizado brasileiro, passou boa parte de sua vida no Brasil (Belém, Rio de Janeiro e São Paulo). Escreve para a mídia internacional sobre o ciclo progressista latino-americano, do zapatismo à chegada de Evo Morales ao poder, passando pelo Uruguai, Argentina, Venezuela e Equador. Desde o ano 2011, Bernardo escreveu e pesquisou amplamente sobre as revoltas em rede globais, com especial foco nas Jornadas de Junho do Brasil. Junto com Alana Moraes, Jean Tible, Salvador Schavelzon, foi um dos coeditores do livro Junho: potência das ruas e das redes (São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, 2014). Está lançando o livro Saudades de Junho (Porto Alegre: LiquidBook, 2020).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que resta de Junho de 2013 no Brasil de 2020?

Bernardo Gutiérrez – À primeira vista, muito pouco. As dinâmicas políticas e sociais atuais são bastante diferentes. Mas restam coisas que não são visíveis à primeira vista. Antes de entrar em detalhes, acho importante esclarecer que na minha opinião poderíamos falar de um ciclo de protestos que começou em junho de 2013, continuou durante aquele ano, especialmente durante o outubro carioca (greve de professores e garis, Aldeia Maracanã), e sofreu mutações no ano 2014, com a onda de rolezinhos, os protestos contra a Copa do Mundo, com diversas manifestações, ocupações, campanhas e processos, como o Parque Augusta em São Paulo ou Ocupe Estelita no Recife, entre outros. A eleição presidencial do ano 2014 marcou um ponto de inflexão: reforçou a polarização e representou o fim do que eu chamo “espírito de junho”. Era um espírito de rebeldia e alegria coletiva que ia muito além das narrativas e dinâmicas prévias dos movimentos sociais e da esquerda tradicional. Era um espírito inclusivo e aberto que focava muito na horizontalidade, em formas de fazer pouco hierárquicas. Era a organização dos desorganizados (ou liderança distribuída), como conceitualiza bem Rodrigo Nunes. Não era necessário ter carteirinha de militante para ser parte do movimento e ser bem-vindo nas assembleias, encontros, campanhas… Nesse processo, milhões de pessoas se politizaram e entraram no movimento.

Considero que a onda de protestos convocados pela direita a partir do ano 2015 são parte de outro período. Os principais atores de junho de 2013 não estiveram nas ruas e nas redes a partir do ano 2015. As formas de organização foram outras, mais verticais. Os protestos eram convocados via grande mídia ou pessoas famosas. Os protestos eram mais uniformes, menos moleculares, menos diversos, principalmente a partir do 2016. É verdade que no primeiro semestre do ano 2015 as ruas ainda tinham diversidade e mistura. O estudo feito por Pablo Ortellado, Lucia Nader e Esther Solano revelou que os supostos manifestantescoxinhas” da Avenida Paulista de São Paulo do ano 2015 defendiam pautas progressistas.

Dito isso, acho que aquele ciclo político está presente de alguma forma no Brasil de 2020. Quando acontece um levante, o relato do sistema fica nu, os mecanismos para manter o sistema ficam à vista. Surge uma subjetividade crítica que questiona a ordem. Por outro, aparecem novas articulações, novos sujeitos políticos, novos coletivos. Acho que há um novo ecossistema social no Brasil importante, vinculado a pautas feministas, indigenistas, ambientais, raciais, direitos humanos, de ocupação do espaço público. É verdade que parte desse ecossistema existia antes de junho de 2013, mas também que milhões de pessoas entraram nesses movimentos depois de se politizar durante o ciclo de protestos 2013-2014. Resta também um impacto subjetivo forte.

IHU On-Line – Olhando em perspectiva, o que conecta acampados do Gezi Park de Istambul, o 15M e o #YoSoy132 mexicano às mobilizações de rua do Brasil em 2013, especialmente ao Movimento Passe Livre – MPL?

Bernardo Gutiérrez – A perspectiva é fundamental. Eu, por exemplo, mudei minha visão. Durante as revoltas que aconteceram no mundo entre os anos 2011 e 2014, eu pensava que a grande novidade era uma nova arquitetura do protesto, mediada pela tecnologia e as redes, que misturava os espaços físicos e os digitais. Pensava que só assim surgiam os novos sujeitos políticos. Ao mesmo tempo, avaliava que um dos grandes desejos daquela multidão tão diversa era outro tipo de democracia, outra forma de participar na política. Continuo achando aquelas questões importantes, mas nesse momento penso que há outra questão fundamental que relaciona aqueles movimentos todos: um profundo mal-estar com o neoliberalismo que mercantiliza as vidas, que quebra os vínculos comunitários e só oferece cidadania através do consumo. Os acampados do Gezi Park de Istambul, o 15M espanhol, o #YoSoy132 mexicano e as mobilizações de rua do Brasil em 2013, especialmente o Movimento Passe Livre - MPL, visibilizaram uma revolta geral contra a mercantilização da vida. Aqueles protestos e ações visibilizavam novos estilos de vida, novas formas de estar juntos, de ocupar o espaço público. Nesse momento, estou fazendo uma pesquisa sobre a antropologia da cultura visual daqueles protestos e estou descobrindo coisas maravilhosas, como que as imagens mais importantes e virais não foram imagens de resistência, violência policial ou heroicidades individuais. O estudo Beyond the iconic protest images: the performance of ‘everyday life’ on social media during Gezi Park revela, por exemplo, que as imagens realmente importantes para o movimento, as mais virais, retratavam a vida cotidiana do acampamento. São imagens que fogem do regime icônico da mídia. Imagens que capturam a não-ação da protesta, os intervalos, os tempos não acelerados, que atribuem significado e constituem uma forma prefigurativa de política. Os participantes daquelas acampadas exploravam novas formas de viver e se expressar no espaço público, práticas mais empáticas de cidadania. Os acampamentos desse ciclo de protestos faziam florescer o que Kristin Ross descreve como “luxo comunal” (o livro Luxo comunal vai ser lançado esse ano no Brasil pela Autonomia Literária). Aquelas acampadas configuraram uma nova expressividade relacionada com as vozes pequenas, as palavras pequenas, o anonimato, as vozes dos “Zé Ninguém”. Acho que aquela epopeia épica das pequenas coisas foi e é profundamente subversiva.

O caso brasileiro é peculiar e apresenta algumas diferenças. Primeiro, porque houve bastante violência policial. Tal vez por isso, o formato acampamentos/ocupações existiu – no ano de 2011 em algumas cidades, depois no OcupaCabral, OcupaAlckmin…–, mas não foi majoritário. Porém, essa vida cotidiana, esse luxo comunal, esteve muito presente nas ocupações das câmaras municipais e assembleias legislativas, na Aldeia Maracanã do Rio, no dia a dia do Parque Augusta em São Paulo, Ocupe Estelita no Recife… e depois em algumas iniciativas, como A Batata Precisa de Você, entre muitas outras. Encorpar as lutas antecipando as utopias futuras em um presente visível, sensorial e compartilhado é algo muito subversivo. Muito mais que as grandes ideias dos intelectuais de esquerda. O fazer com outros cria subjetividade e inaugura mundos.

IHU On-Line – Olhando Junho de 2013 desde dois ângulos, da época de sua eclosão e vista desde o presente, como poderíamos compreender a relação dos governos de esquerda com o movimento? Eles entenderam o que aconteceu?

Bernardo Gutiérrez – Olha, acho que inicialmente teve uma tentativa sincera de escuta. O Governo da Dilma tentou entender e reagiu bem. Durante os primeiros dias das jornadas de Junho, o próprio Lula manteve encontros com diferentes ativistas que estavam envolvidos nos protestos. Lembro que o governo do Tarso Genro no Rio Grande do Sul, a través do Gabinete Digital, também esteve na ponta dessa escuta. Depois, o ministro Gilberto Carvalho articulou rodas de conversas com ativistas. Durante sua gestão, Fernando Haddad abriu uma nova secretaria de direitos humanos na prefeitura de São Paulo, para tentar dialogar com os movimentos e pautas de junho de 2013. Um dos problemas era que as vezes essa escuta chegava carregada de dinâmicas anteriores. Os políticos de esquerda procuravam os supostos líderes de junho, as lideranças da multidão. E isso era impossível! Foi um levante sem lideranças. Quando a Dilma convidou o Movimento Passe Livre - MPL para uma reunião em Brasília, eles lançaram uma carta explicando que não tinham líderes. Por outro lado, os movimentos da esquerda tradicional não tiveram inicialmente um bom entendimento do “espírito de junho”. Minha crônica A revolta brasileira se avoluma e desconcerta os partidos de esquerda, publicada no livro Saudades de Junho, contém algumas pistas. O dia 20 de junho de 2013 eu entrei na Avenida Paulista com a “coluna de esquerdas” que alguns militantes de partidos de esquerda e de sindicatos articularam para aquele dia. Entraram no grande protesto com forma de coluna, com bandeiras vermelhas, com um formato bem rígido. O texto Uma greve geral com lado B, publicada já no dia 12 de julho de 2013, relata a greve geral convocada pelos principais sindicatos. O protesto da avenida Paulista de São Paulo era totalmente diferente dos protestos dos dias anteriores. Falei com duas garotas de 16 anos, que andavam por lá em patinetes. A fala de uma delas é um bom resumo da ópera: “Gostei mais das manifestações dos primeiros dias, havia mais liberdade, cartazes mais plurais”. Ainda assim, durante o ano 2013 todos os governos de esquerda e as esquerdas tentaram de algum jeito escutar os novos movimentos e protestos que pipocavam pelo país.

Acho que o primeiro ponto de virada foi a Copa do Mundo. O governo da Dilma aprovou a lei antiterrorista e começou a criminalizar os protestos anti-Copa, com um discurso patriótico bem estranho. Não repararam que os principais atores dos protestos contra a Copa – Comitês Populares da Copa, moradores de comunidades e ativistas – eram ou de classe popular ou estavam à esquerda do governo. Porém, considero que o grande ponto de mutação foi a eleição presidencial de 2014. Tanto a esquerda como a direita polarizaram ao extremo a eleição. Queriam evitar a surpresa da terceira via, que no momento era a Marina Silva. Também queriam varrer as dinâmicas horizontais de junho de 2013. Foi um erro. Por isso incluo alguma cobertura de aquela eleição no livro. Um segundo turno entre Dilma Rousseff e Marina Silva teria feito bem à democracia. Então, depois de várias tentativas de escuta falidas, o petismo mudou de estratégia e começou a criticar os protestos de junho de 2013.

IHU On-Line – E hoje a compreensão melhorou?

Bernardo Gutiérrez – Acho que piorou. Penso que no ano 2014 as esquerdas tradicionais, especialmente o petismo, entenderam que aquelas novas formas e aqueles novos coletivos estavam questionando sua própria essência. Aconteceu algum tipo de recolhimento identitário difícil de explicar. A esquerda voltou a sua identidade vermelha mais pura, e creio que não foi só tática ou estratégica. Era algo sentimental. Eu não tenho nada contra a identidade vermelha, pelo contrário. Reconheço que é útil e necessária para milhões de pessoas que se reconhecem nela. Mas os protestos vermelhos, tão diferentes das multidões de junho de 2013, acabaram sendo uma barreira excludente que afastou milhões de pessoas que não eram “coxinhas” e não se identificavam com as direitas. A esquerda não está conseguindo criar um diálogo fluido entre o “popular” e um novo componente cidadanista, urbano, de militância mais branda e dispersa, muito presente a partir de junho de 2013. Tarso Genro criticou recentemente o discurso e programa petista, ancorado em outra época. “Ainda agimos como se existisse uma classe trabalhadora nas fábricas que teria potencial hegemônico na sociedade”, disse Tarso. Acho válida a crítica. Considero também muito oportuna a crítica que Talíria Petrone, deputada federal eleita pelo PSOL no Rio de Janeiro, fez entre o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial de 2018: “A esquerda precisa voltar aos territórios, não para levar uma verdade, mas para escutar”. Mas vamos combinar que a culpa toda do que está acontecendo não é só, de esquerda, certo?

IHU On-Line – De que ordem são as relações que se podem estabelecer entre as Jornadas de Junho, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e, cinco anos mais tarde, a eleição de Bolsonaro?

Bernardo Gutiérrez – Não acho que exista uma explicação linear para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Muito menos um vínculo direto entre junho de 2013 e o impeachment. Houve muitos fatores. Sou muito consciente que desde o início dos protestos de junho teve uma tentativa de apropriação por parte de grupos de direita. Aqueles grupos anticorrupção apareciam nos primeiros estudos de rede do Interagentes. Depois da repressão policial do dia 13 de junho de 2013 a revolta do MPL se transformou em uma revolta geral, distribuída, em rede, com claros processos de auto-organização e audiocomunicação de massas. Depois do mega protesto do dia 17 de junho de 2013 a mídia conservadora e as direitas tentaram canalizar a indignação dos “vândalos” contra o governo. O protesto do dia 20 teve essa mistura bizarra e louca de esquerdas, direitas e novos vândalos. Mas acontece que uma semana depois, os manifestantes de direita saíram das ruas, perderam o controle. Não se sentiam confortáveis nas assembleias, nas ocupações, nos espaços coletivos. Os movimentos que foram se envolvendo nas redes e nas ruas tiveram bastante jogo de cintura e conseguiram afastar dos protestos os grupos mais reacionários. Entre julho de 2013 e a Copa, a onda de protestos entrou em um flanco esquerda – comunitário muito interessante.

Continuo achando que aquela eleição presidencial do ano 2014 foi o ponto de virada. Aquela polarização extrema não tinha muito a ver com os movimentos de junho. A maioria dos grupos envolvidos foram se afastando do debate e das ruas. O papel de Aécio Neves, que não reconheceu o resultado eleitoral, foi fundamental para os acontecimentos. Não teria tido impeachment sem o apoio de Aécio Neves e do PSDB. Aécio é um dos principais responsáveis pela situação atual. Depois da eleição de 2014, as novas direitas saíram do armário e lançaram um movimento diferente e brutal. Aquelas direitas saíram das ruas em junho de 2013, mas ficaram trabalhando, esperando o momento apropriado. Já durante a aprovação do Marco Civil vimos uma forte articulação das novas direitas, construindo essa polarização. Depois do impeachment, a mídia continuou alimentando o antipetismo, o antilulismo, de forma muito irresponsável. Ao mesmo tempo, teve outras interferências, inclusive externas. Teve financiamento estado-unidense para grupos de extrema direita do Brasil. Ou seja, a culpa não é das jornadas de junho. Também não é só uma questão da falta de entendimento das esquerdas. Houve muitos fatores.

IHU On-Line – Como o senhor avalia análises que ligam as Jornadas de Junho de 2013 à emergência de uma nova direita que ocupa as ruas para defender governos autoritários, especialmente no Brasil? O que há de consistente e frágil nessas aproximações?

Bernardo Gutiérrez – Como já disse, penso que não há uma relação tão linear assim entre as jornadas de junho de 2013 com o impeachment ou a ascensão de Jair Bolsonaro. Curioso: muitas pessoas consideram o Movimento Brasil Livre - MBL como parte do movimento de junho de 2013. É uma aberração. Contudo, o MBL só nasceu em novembro do ano 2014. No epílogo escrito para fechar Saudades de Junho descrevo a habilidade que teve uma certa nova direita para capturar o sentimento anti-establishment. A ultradireita sequestrou parte do espírito de junho e transformou aquela indignação contra a classe política em um sentimento anti-establishment visceral, em antipolítica pura. E é uma pena, porque existia em junho de 2013 um desejo claro da renovação política. A esquerda perdeu a oportunidade de ocupar a pauta anticorrupção, que entregou na mão das direitas. Foi um erro, porque as direitas têm muitos problemas com a corrupção, mais que as esquerdas.

O que aconteceu? Difícil responder. Eu penso que as esquerdas se colocaram no ciclo eleitoral como “o sistema”. Comparada com a épica anti-establishment “do coiso”, até as campanhas do PSOL tiveram sabor institucional. Com a perda de peso de centro-direita, a ausência de uma alternativa anti-establishment de esquerda, as toneladas de fake news e aquela facada misteriosa no então candidato Bolsonaro, a eleição de 2018 foi um presente para a extrema direita. A nova modalidade de golpe que descreve Suely Rolnik existiu. Teve golpe parlamentar, sim, e muitas interferências. Nas últimas décadas, a mão desestabilizadora dos Estados Unidos esteve bem presente na região. Depois de junho de 2013, especialmente depois do impeachment, Estados Unidos realizou movimentos para acabar com a liderança brasileira na região, como foi provado por vazamentos de Wikileaks e The Intercept. Isso, sem tocar no escândalo da Vaza Jato e no sinistro papel do Sérgio Moro, uma vergonha internacional. Mas a culpa não foi de junho de 2013, nem dos vândalos, nem dos manifestantes anti-Copa.

Por isso, acho que é um erro colocar no mesmo pacote o ciclo de protestos 2013-2014 e os movimentos das elites para acabar com o governo da Dilma Rousseff. Tinha um plano. E Bolsonaro foi um acidente. É muito evidente que o plano A das elites para a eleição presidencial de 2018 era Geraldo Alckmin. Só que deu errado, o candidato tucano não esteve à altura do momento antissistema brasileiro. Por isso, o João Dória quase foi o candidato tucano, porque ele sim representava esse sentimento antissistema e antilulista.

IHU On-Line – Qual o impacto subjetivo das Jornadas de Junho?

Bernardo Gutiérrez – Continuo achando o lema “por uma vida sem catracas” do MPL lindo de mais. Lindo e potente. Foi o grande lema, o grande imaginário, dos protestos de junho de 2013. Segundo o Programa para a descatralização da própria vida – um projeto que Jerusa Messina, uma das fundadoras do coletivo Contrafilé, desenvolveu anos antes dos protestos do MPL – pular a catraca é a inauguração de um fato portador de futuro. Pular a catraca é uma inscrição do fato na vida pública. Lembro muito bem daqueles festivais de pular catracas na rua, festivos e subversivos. Sou muito fã do bloco carnavalesco Pula Catraca de Belo Horizonte, que surgiu no pós-junho, a partir do coletivo Tarifa Zero BH. Esses pulos de catraca são proliferações de potência vital, de articulações coletivas, são uma forma de transformar nossas frustrações em desejo.

Penso que todas aquelas práticas coletivas e sociais que surgiram no ciclo de protestos de 2013-2014 foram uma revolta contra as formas de vida individualistas e mercantilizadas do neoliberalismo. Descobrir que podemos estar juntos na rua, envolvidos na carne do mundo, fazendo coisas com pessoas diversas, com pessoas desconhecidas inclusive, sem as hierarquias do passado, é muito poderoso. Reverter ainda que seja temporariamente as dinâmicas mercantis da vida, construir outras lógicas de relação, gera um impacto subjetivo profundo. Ocupar Câmaras municipais, assembleias legislativas, parques, praças, pular catracas, fazer funcionar todos esses dispositivos de outro jeito, é algo inesquecível. Dentro das crônicas e textos de Saudades de Junho há detalhes maravilhosos. Detalhes que formam parte de um impacto subjetivo daquele junho desmedido que podem voltar no momento menos esperado.

IHU On-Line – Há, no geral, um certo pessimismo que ronda o Brasil atual. Em que sentido as Jornadas de Junho podem inspirar esperança para um futuro melhor para o país?

Bernardo Gutiérrez – Olha, eu não quero mitificar aquele ciclo de protestos nem pensar que ele esconde todas as soluções aos nossos problemas. Mas um bom entendimento das dinâmicas desse ciclo de protestos poderia inspirar esperança para um futuro melhor. Quero resgatar um episódio da campanha presidencial de 2014. O dia 12 de outubro de 2014, um grupo de artistas convocou em São Paulo um ato de apoio crítico à candidata presidencial Dilma Rousseff, chamado Treze tons de vermelho. A campanha oficial de Dilma ia na direção contrária às novas narrativas e práticas que surgiram em junho de 2013. O evento Treze tons de vermelho mandava um recado aos símbolos históricos da esquerda. Vermelho sim, mas com treze tons. O ativista Paulinho Fluxus, uma das pessoas envolvidas no evento, reivindica há anos a potência da cor rosa, porque o vermelho, para ele, é necessário, mas insuficiente. Durante a Copa de 2014, Paulinho Fluxus inventou uma bandeira brasileira verde rosa. O ano passado vimos a maravilhosa bandeira que a escola Mangueira criou para o desfile do carnaval carioca, com o lema “Índios, negros e pobres”. Esse campo narrativo e estético é um dos aprendizados de junho de 2013. Não é possível que o bolsonarismo continue sequestrando a bandeira brasileira e o nacionalismo. Disputar esses campos é totalmente necessário.

Desfile da Mangueira, em 2019 (Foto: Divulgação | Mangueira)

Outro dos aprendizados de junho de 2013 tem a ver com as formas de organização, com as dinâmicas de auto-organização, com a construção de movimentos autônomos e inclusivos. Acho que a campanha que milhões de brasileiros fizeram no segundo turno para apoiar a candidatura de Fernando Haddad, surgida fora das estruturas do PT, tinha esse DNA colaborativo e aberto que explodiu a partir de junho de 2013. Aquela campanha foi uma faísca de um futuro possível, mas que só funcionará de verdade com uma candidatura aberta e suprapartidária.

IHU On-Line – Hoje vivemos uma espécie de imobilização das ruas, mesmo diante de descalabros e afrontas graves aos direitos civis e humanos, incluindo aí recordes de assassinatos e violações às populações nativas. O que explica o silêncio das ruas? Onde estão as multidões de 2013?

Bernardo Gutiérrez – Milhões de pessoas estão simplesmente perplexas, sem saber o que fazer, somatizando no corpo o desastre geral. É difícil convocar protestos ou ações desde cantos da sociedade que não sejam petistas ou bolsonaristas. Estar à defensiva, sempre reagindo contra algo, é insuficiente. Seria fundamental inaugurar uma nova fase de movimentos, redes, coletivos e protestos que não sejam só contra, senão a favor. Rejeitar uma coisa é sempre fazer outra coisa. A potência das sublevações está em ser “não” e “sim” ao mesmo tempo, em pôr em prática o novo mundo, no dia a dia. Penso que uma reinvenção da cotidianidade desde os vínculos comunitários, desde os cuidados, é um dos caminhos. É curioso que quando um fiel evangélico tem um problema, sua comunidade reage rapidamente, existe um pronto socorro imediato. Quando um esquerdista tem um problema, muitas vezes não acha ninguém por perto. Aquele “ninguém solta a mão de ninguém” parece-me muito inspirador, o princípio de algo. Mas é insuficiente se as esquerdas e a oposição ao governo Bolsonaro não reagem com urgência.

IHU On-Line - A esquerda não entendeu o fenômeno do bolsonarismo, então?

Bernardo Gutiérrez – Acho que não. A superioridade moral da esquerda, que estigmatiza as culturas bregas, o mau gosto cultural dos favelados e/ou evangélicos, a música sertaneja ou caipira, até os bailes funk, aprofunda a distância. A socióloga Esther Solano criticou recentemente “os intelectuais perfeitos e pomposos e seus textos que ninguém lê”. Tem razão. O governo Bolsonaro se comunica com a população em múltiplos espaços (rodeios, igrejas, churrascos, festivais sertanejos...), usando uma linguagem simples e mensagens muito fragmentadas, sem ter medo das contradições. Os intelectuais de esquerda, e as esquerdas no geral, escrevem textos intelectualmente bons, coerentes e pomposos que ninguém lê. Escrevem posts estilosos nas redes, que só a bolha da esquerda lê. Há outro ponto importante: acho que as esquerdas brasileiras estão totalmente atordoadas na oposição e não estão reconhecendo que o modelo político-econômico que defenderam durante muitos anos – desenvolvimentismo, inclusão pelo consumo, certo estatismo com toques neoliberais – está bastante esgotado. Até não reconhecerem isso e proporem um mundo novo, propostas novas, as esquerdas serão uma oposição inoperante e incapaz de reverter a situação. O bolsonarismo tem um mundo próprio, uma visão clara, forte e emocionante do mundo. As esquerdas têm um mundo em parte esgotado, e não estão tendo a ousadia de enunciar novas fronteiras desse mundo. Da para defender os valores da esquerda modificando discursos, narrativas e programas políticos.

Nas redes e fora delas, como aponta a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, “uma grande parte da esquerda está mais fechada do que aberta. Repele mais do que acolhe. Cancela mais do que dialoga”. É preciso que o amor seja maior que o medo, que nosso mundo seja mais acolhedor, solidário e excitante que o seu.

IHU On-Line – Que fazer então?

Bernardo Gutiérrez – É vital revigorizar a resistência desde o afetivo, desde os corpos, desde os cuidados e os vínculos comunitários. Para mudar as coisas, tem que existir esse desejo de pular uma catraca, de pular com outros, de estar juntos nesse pulo, no sentido metafórico. Um desejo que também é uma vontade de estar com os outros, de brincar, de carnavalizar a política. Depois de destravar os corpos, deveria surgir uma tentativa ambiciosa de construir um novo meta-movimento desde a sociedade civil. Um movimento que nasça no interior dos partidos políticos não funcionará. Apelando à democracia, esse novo meta-movimento bem poderia defender a maioria das pautas progressistas vinculadas à inclusão, direitos humanos, convivência e redistribuição econômica, sem parecer “esquerdona”. Apelando à democracia, o meta-movimento pode seduzir também aos novos ecossistemas de ativismos urbanos que trabalham com sustentabilidade e, por que não, empreendedorismo. Apelando à democracia, usando novos símbolos neutros (protestos com camisas brancas?) ou recuperando símbolos sequestrados (como a bandeira do Brasil) ou rituais cedidos à direita (panelaços), esse meta-movimento pode trazer de volta milhões de pessoas. Os símbolos de esquerda são úteis para mobilizar militantes, movimentos sociais tradicionais e pessoas politizadas. E devem ser usados. Mas são contraproducentes para chegar além da bolha da esquerda.

Infelizmente, acho que esse novo meta movimento não vai surgir só da sociedade civil e que depende do que aconteça dentro da política representativa. Um passo importante deveria ser a configuração de uma frente democrática que isole o governo Bolsonaro. Uma nova concentração democrática que coloque o governo Bolsonaro além da linha, fora da constituição, da lei, para que a maioria de brasileiros e brasileiras reparem que o discurso e práticas do governo Bolsonaro são basicamente anticonstitucionais. Só com essa aliança estratégia entre as esquerdas e o centro-direita liberal será possível de aqui a três anos surja uma Frente Ampla atrelada à esquerda. Não vejo outra opção para ganhar no ano 2022 que uma Frente Ampla com todas as esquerdas e algum partido mais atrelado ao centro. Vai ser bem difícil, porque a luta pela hegemonia no campo esquerda continua violenta. Acho bem irresponsável.

Por isso, eu gosto muito de algumas iniciativas políticas da esfera municipal, que têm certo espírito de junho. São candidaturas construídas de baixo para cima, de uma forma mais horizontal, como foi o caso do Muitas, cidade que queremos em Belo Horizonte. Usando a chapa PSOL, o movimento criou uma campanha própria, colorida, inclusiva, e conseguiu eleger em 2016 duas vereadoras, Áurea Carolina e Cida Falabella. Tenho certa esperança no ecossistema do Ocupa Política, que se define como um movimento suprapartidário de ocupação dos cargos legislativos, teve na origem coletivos como Muitas (Minas Gerais), Bancada Ativista (São Paulo), Chama (Rio de Janeiro) e Agora é com a Gente (Pernambuco). O Ocupa Política obteve na eleição de 2018 um total de 2.201.279 votos, elegendo quatro candidatos federais e nove regionais: 12 mulheres, nove negras e três transexuais. Nada mal.

Estou torcendo para que as candidaturas do Ocupa Política tenham um bom resultado nas eleições municipais. Estou gostando também como as esquerdas de Porto Alegre estão tentando construir uma candidatura de baixo para cima, ao redor da figura de Manuela D’Ávila. Seria uma tragédia que no final das contas tivesse outra candidatura do PT além da frente de esquerdas. Penso, isso sim, que a narrativa deveria ir além da esquerda, deveria ser estilo Frente Ampla. A candidatura deveria ser uma confluência, parecida as que conquistaram as principais prefeituras da Espanha no ano 2015.

 

Saudades de Junho (sinopse do livro)

Reprodução da capa do livro (Foto: Divulgação)

Mergulhar no passado é também procurar novos horizontes para o presente e o futuro. Eis o principal motivo pelo qual editora gaúcha Liquidbook compila 27 textos do jornalista e escritor Bernardo Gutiérrez no livro Saudades de Junho. Os textos, publicados em veículos da mídia internacional entre junho de 2013 e janeiro de 2015, são maioritariamente reportagens e crônicas sobre aquelas intensas Jornadas de Junho e muitos dos seus desdobramentos. Há textos sobre o Movimento Passe Livre (MPL), rolezinhos, ocupações urbanas, protestos contra a Copa, autogestão, mídia livre, espaço público, sobre o Parque Augusta de São Paulo, sobre “o carnaval indignado” do ano 2014, entre outros assuntos. Os protestos que aconteceram depois do 2015 ficam fora do livro. Na Introdução e no Epílogo o jornalista justifica a escolha de isolar o período 2013-14 do ciclo de protestos conservadores iniciado no ano 2015 e propõe algumas ideias para sair do impasse político.

 

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