O direito penal brasileiro deve ser refletido à luz dos direitos da humanidade. Entrevista especial com Fábio Konder Comparato

Foto: Vatican Media

23 Novembro 2019

O discurso do papa Francisco em audiência com os participantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, proferido no dia 15-11-2019, no Palácio Apostólico do Vaticano, “reflete a necessidade de uma transformação fundamental nas relações entre o universo religioso e o universo laico”, diz o jurista Fábio Konder Comparato à IHU On-Line. Na avaliação dele, o pronunciamento do pontífice evidência que “tanto no seio da Igreja Católica quanto fora dela, firmou-se a convicção generalizada de que, malgrado as diferenças culturais entre os vários povos e suas respectivas culturas, a humanidade é uma só e seus problemas devem ser resolvidos com a colaboração de todos”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Comparato comenta o discurso do Papa Francisco à luz da realidade brasileira e frisa que a “assimetria entre o crime e a pena, de que fala o Papa, é mais do que evidente nos sistemas jurídicos ditatoriais ou oligárquicos, como também nos regimes apelidados falsamente de ‘democracias’, os quais pululam no presente’. A solução da referida assimetria não é, portanto, puramente jurídica, mas sobretudo política”.

Fábio Konder Comparato (Foto: Agência Pública)

Fábio Konder Comparato possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo - USP e doutorado em Direito pela Université Paris 1. É professor Emérito da Faculdade de Direito da USP e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, e especialista em Filosofia do Direito, Direitos Humanos e Direito Político. É também titular da Medalha Rui Barbosa, conferida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Comparato é autor dos artigos Brasil: A dialética da dissimulação, Cadernos IHU ideias, nº. 239, O poder judiciário no Brasil, Cadernos IHU ideias, n°.222 e Para arejar a cúpula do judiciário, Cadernos IHU ideias nº. 288.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como interpreta o discurso do papa Francisco em audiência com os partici-pantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Roma, de 13 a 16 de novembro, sobre o tema "Justiça criminal e negócios corporati-vos”?

Fábio Konder Comparato - O discurso do papa Francisco no XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal reflete, a meu ver, a necessidade de uma transformação fundamental nas relações entre o universo religioso e o universo laico. No passado recente, tratava-se de dois universos distintos, cada um dos quais considerava-se superior ao outro. No citado discurso do Papa, ficou evidente que, tanto no seio da Igreja Católica quanto fora dela, firmou-se a convicção generalizada de que, malgrado as diferenças culturais entre os vários povos e suas respectivas culturas, a humanidade é uma só e seus problemas devem ser resolvidos com a colaboração de todos.

IHU On-Line - Quais as inspirações do discurso para refletirmos sobre o direito penal à luz da realidade brasileira?

Fábio Konder Comparato - Creio que a grande inspiração consiste em refletirmos, todos nós, sobre a unidade mundial de objetivos e propósitos do direito penal, à luz dos chamados direitos da humanidade. Trata-se de um conceito que surgiu com a Organização das Nações Unidas, cuja Carta de fundação foi assinada por 51 países, em 26 de junho de 1945. Tivemos, a seguir, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950, os Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos de 1981, as Convenções sobre a Proteção do Meio Ambiente de 1992 e o Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998. É nesse contexto universal que devemos refletir sobre o direito penal brasileiro.

IHU On-Line - Em sua crítica à maximização do lucro por si só, que gera excluídos no pre-sente e compromete as gerações futuras, o papa convida os juristas a se perguntarem o que podem fazer com seus conhecimentos para combater esse fenômeno. Que contribuições o Direito pode trazer para enfrentar esse fenômeno?

Fábio Konder Comparato - Toda organização social, seja ela local, nacional, regional ou mundial, é sempre erguida sobre dois pilares fundamentais: o sistema de poder e a mentalidade social. O sistema de poder é fundado naquela pessoa ou grupo social, que exerce a chamada soberania ou poder supremo. Eis porque, a partir da filosofia política grega, os sistemas políticos foram classificados em monarquia (poder de um só), oligarquia (poder de poucos) e democracia (poder do povo).

Já a mentalidade social é o conjunto dos costumes e preferências valorativas, dominantes na sociedade. Tais pilares fundamentais da organização política estão sempre intimamente relacionados, pois a cada espécie de poder corresponde uma mentalidade social. A partir do século XVIII, porém, com o crescimento e a expansão universal do capitalismo, a teoria política moderna tornou-se dissimulatória: com o desaparecimento da tripartição social clássica – nobreza, clero e povo –, a burguesia apresentou-se como o povo e assumiu disfarçadamente o poder supremo.

É o que ficou evidente nas Declarações de Direitos da Revolução Francesa. Escusa dizer que o capitalismo não se combate unicamente com o Direito, sobretudo num país chamado Brasil, no qual sempre existiu um sistema jurídico oficial, copiado dos modelos de nações desenvolvidas, e um sistema jurídico efetivo, mas não aparente, em que prevalece o poder oligárquico.

IHU On-Line - No pronunciamento, o papa mencionou o “uso arbitrário da prisão preventiva”, cujo número de detentos sem condenação já ultrapassa 50% da população carcerá-ria. Quais são as causas dessa realidade, as dificuldades do Direito brasileiro acerca deste ponto especificamente e que propostas jurídicas poderiam sugerir saídas para esse quadro?

Fábio Konder Comparato - Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça, realizado em julho deste ano, o nosso país tem a terceira maior população carcerária do mundo; ou seja, 812 mil presos, dos quais 41,5% ainda aguardam condenação. Isto, sem falar em 366,5 mil mandados de prisão ainda pendentes de cumprimento. Como resolver o problema? Quem sabe o presidente Bolsonaro e o Ministro da Justiça Moro têm alguma solução na manga, mas ainda hesitam em apresentá-la...

IHU On-Line - Em seu discurso, o papa também denuncia as “omissões mais frequentes do direito penal”, referindo-se à “escassa ou pouca atenção que os crimes dos mais poderosos recebem, sobretudo a macro delinquência das corporações”, ao tratar dos paraísos fiscais e dos crimes cometidos pelo capital financeiro global. Ele afirma que “é curioso que o recurso a paraísos fiscais, um expediente que sirva para ocultar todo tipo de crime, não seja visto como uma questão de corrupção e criminalidade organizada”. Como avalia essa crítica em particular? Como a justiça brasileira trata essa questão e, em termos jurídicos, como seria possível reverter essas omissões?

Fábio Konder Comparato - O Papa tem razão em acentuar a “escassa ou pouca atenção que os crimes dos mais poderosos recebem, sobretudo a macro delinquência das grandes corporações”, notadamente os crimes cometidos no âmbito do capitalismo financeiro. Acontece que se trata de crimes internacionais e que, para punir os criminosos, é preciso implantar um sistema penal internacional, o que até o presente não foi feito, pelo menos de forma adequada.

IHU On-Line - Outro ponto para o qual o papa faz um chamado à reflexão diz respeito aos “fenômenos maciços de apropriação de recursos públicos”, que “passam despercebidos ou são minimizados como se fossem meros conflitos de interesse”, como o caso da corrupção enquanto "criminalidade organizada". Como essa questão tem sido tratada e pode ser aperfeiçoada pelo direito penal brasileiro, uma vez que nem sempre é possível compro-var casos de corrupção ou o enriquecimento ilícito de agentes públicos? As 10 medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal em 2015 trazem contribuições para enfrentar esse fenômeno? Que propostas, na sua avaliação, permitiram o aperfeiçoamento do sistema jurídico para combater esses crimes?

Fábio Konder Comparato - A corrupção dos nossos agentes públicos é uma moléstia que deita raízes entre nós desde o século do Descobrimento. Como bem acentuou em 1627 Frei Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador, os povoadores do Brasil, “por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal (...). E isto não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída”. E conclui: “Donde nasce também que nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular” [1]. Deveríamos lembrar que a expressão res publica em Roma significava bem do povo; o que os fundadores da nossa (falsa) República jamais compreenderam.

IHU On-Line - O papa também critica a guerra jurídica, o lawfare, e o uso de “falsas acusações contra líderes políticos” e a “instrumentalização” da luta contra a corrupção “a fim de combater governos indesejados, reduzir os direitos sociais, e promover um senti-mento anti-político que beneficia aqueles que aspiram a exercer um poder autoritário”. Como essa reflexão pode ser útil para refletirmos sobre a “guerra jurídica” e a instrumentalização política da justiça no Brasil?

Fábio Konder Comparato - A expressão lawfare foi recentemente criada nos Estados Unidos, para designar o abuso de um sistema jurídico com a finalidade de alcançar objetivos estratégicos de natureza militar ou política. Um bom exemplo, como disse o papa, é a instrumentalização da luta contra a corrupção para lograr golpes de Estado em outros países. Foi o que se fez no Brasil com a chamada “Operação Lava Jato”, que criou o ambiente propício para realizar o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a posterior eleição do atual Chefe do Poder Executivo federal. Segundo todos os indícios, esse lawfare foi concebido e orquestrado pelos norte-americanos, de quem o ex-juiz Sérgio Moro sempre foi “amigo do peito”.

IHU On-Line - O papa também menciona os crimes ambientais e fala em “ecocídios”. Como é possível avançar nessa questão juridicamente?

Fábio Konder Comparato - O chamado ecocídio é, substancialmente, um crime contra a humanidade, pois destrói o meio ambiente do nosso planeta. Infelizmente, porém, ele ainda não foi inserido no Artigo 7º do Estatuto do Tribunal Internacional, que define os crimes contra a humanidade.

IHU On-Line - Segundo o papa, “entre a pena e o crime existe uma assimetria” e “a realização de um mal não justifica a imposição de outro mal como resposta. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de justiçar o agressor”. Concorda com essa compreensão? Como o direito penal pode permitir que se faça justiça à vítima em todos esses casos em que o próprio papa critica?

Fábio Konder Comparato - Essa assimetria entre o crime e a pena, de que fala o Papa, é mais do que evidente nos sistemas jurídicos ditatoriais ou oligárquicos, como também nos regimes apelidados falsamente de “democracias”, os quais pululam no presente. A solução da referida assimetria não é, portanto, puramente jurídica, mas sobretudo política.

IHU On-Line - Na mesma linha, o papa sugere que “devemos ir em direção a uma justiça penal restaurativa” e diz que “o desafio atual para todo advogado penal é conter a irracionalidade punitiva”. Como compreende essa proposta, quais são seus limites e vantagens em relação a uma concepção de direito punitivista para tratar os crimes que o próprio papa denúncia?

Fábio Konder Comparato - Assim como o que acaba de ser dito, a contenção da “irracionalidade punitiva” é uma tarefa antes política do que jurídico-formal.

Nota:

[1] Vale notar que no linguajar daquele tempo o substantivo república designava a comunidade, ou o grupo de cidadãos com interesse comum, e repúblico o indivíduo que se interessa pelo bem da comunidade. Cf. o clássico Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva. (Nota do entrevistado)

 

Leia mais