A extrema direita resgata a experiência maquiavélica de usar a religião em favor de quem governa. Entrevista especial com Roberto Romano

Bolsonaro na cerimônia de consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria | Foto: Palácio do Planalto

Por: Patricia Fachin | 28 Mai 2019

A consagração do Brasil ao Imaculado Coração de Maria foi “uma reedição caricata da anedota sobre Henrique IV da França. Protestante, ele teria se convertido ao catolicismo para chegar ao trono”, diz Roberto Romano à IHU On-Line, ao comentar o ato realizado no Palácio do Planalto na semana passada. No caso de Bolsonaro, ironiza, “um presidente que se proclama ‘evangélico’ para ganhar votos se apresenta compungido e exalta a Virgem Mãe, como se ele mesmo fosse o fruto de um milagre mariano”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o professor explica que as consagrações ao Coração de Jesus e ao Coração de Maria têm origem junto à Igreja nascente, mas ganharam uma dimensão política ao longo dos séculos. “Notemos, pois, que na vida moderna, ou desde o final da Idade Média quando se forma o Estado nos delineamentos ainda hoje reconhecíveis, o culto ao Coração de Jesus e de Maria adquire uma dimensão política a cada momento mais evidente. Não será por acaso que o anseio do mundo católico, em luta contra o Estado laico que é diretamente oposto à religião, foi o de formar exércitos (a Ação Católica era um deles) de fiéis para proteger a Igreja e atacar o modernismo, cujos signos mais evidentes eram a cisão protestante, o socialismo, o anarquismo, o comunismo. Sem esquecer, muito pelo contrário, o liberalismo”, pontua.

Roberto Romano também comenta a instrumentalização que políticos à direita e à esquerda fazem da religião, como tem-se observado na cena política recente. “A extrema direita de hoje, na Itália, Alemanha, Bélgica, França e demais países, tem raízes recentes e antigas. Tanto os regimes nazistas e fascistas quanto os comunistas impostos aos povos (na Polônia e na Hungria, por exemplo) deixam traços éticos, cicatrizes terríveis, como a busca de uma autoridade infalível, monocrática, sem compromisso com os indivíduos e movida pelas massas. Traços assim são indeléveis. Basta que a democracia mostre sua face mais feia (como nos programas genocidas neoliberais que preferem a saúde do mercado à vida das pessoas) para que os fantasmas do passado se reapresentem na fala, na imaginação e... no coração dos povos. Assim, os líderes da extrema direita redescobrem as lições maquiavélicas sobre a eficácia política: mover a religião em favor de quem governa. Aí vale tudo, incluindo rosários, hagiografias, milagres”.

Roberto Romano (Foto: Ricardo Machado | IHU)

Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a origem dos atos de consagração de um país ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria?

Roberto Romano - O culto do Coração de Jesus é antigo. Mas devemos partir do fato recente, efetivado pelo Governo Federal a pedido de um grupo político católico. Trata-se do Coração de Maria. Tal veneração também é antiga. Poder-se-ia dizer que ela brota da Igreja nascente.

Santo Irineu, no Adversus haereses, diz de Maria que ela “se tornou a causa da Salvação de todo o gênero humano”. Orígenes (aproximadamente 254) a intitula “nossa mãe”. São Epifânio e outros a chamam “mãe dos viventes, mãe de todos os membros dos quais Jesus é o Senhor” (século V). Santo Alberto Magno a identifica como “a mãe de todos os cristãos, a mãe espiritual de todo o gênero humano”. Entre os séculos XIV e XVI, temos testemunhos da qualificação de Maria como “mãe da Igreja”. São Francisco de Sales redigiu a prece conhecida: “lembrai-vos... dulcíssima, que sois minha Mãe de que sou vosso filho... sois a mãe comum de todos os pobres humanos...”. Assim, com os votos dos fiéis e da hierarquia, Theotokos surge como colaboradora na obra da Redenção por ser pura, imaculada, misericordiosa. Notemos no último vocábulo o acúmulo do coração que perdoa a todos os pecadores.

Foi quase natural o elo entre a misericórdia de Cristo e a de sua mãe. Com o culto do Coração de Maria, os seus propagadores passam à ideia de uma consagração dos povos a ela. Em 1726, sob Bento XIII, o jesuíta Gallifet apresenta um Memoriale (De cultu sacrosancti Cordis Dei ac. D.N. Jesu Christi) para conseguir aprovação ao culto do Sagrado Coração de Jesus. Tal licença foi negada pela Congregação dos Ritos. Sob Clemente XIII (1758-1761) houve nova tentativa. O postulante teve a prudência de distinguir o culto do “Coração Imaculado” de Maria do relativo ao Sagrado Coração de Jesus. A Congregação aprova, agora, o culto do Sagrado Coração. Feita a distinção teológica e de soteriologia, muitos bispos aprovam o culto ao Imaculado Coração de Maria. Pio VI aprova a Festa do Coração de Maria.

O título de Regina Mundi é também antigo. Em saltérios do século X, ela é invocada assim. Em 1875, a Santa Sé aprova o título de “Virgem Imaculada, Rainha do Universo”. Em 1885, Leão XIII dava indulgência à invocação de Maria: “Tu et Filius tuus”. Um lado do coração de Jesus e de Maria foi magnificamente cantado pelo Padre Vieira no Sermão Maria Rosa Mística. O Filho de Deus “veio para remediar, para livrar, para consolar a todos os afligidos, a todos os cativos, e a todos os que choram suas misérias. Bem está. Mas os que não têm misérias, nem trabalhos, nem cativeiros, nem aflições que chorar, não veio o Filho de Deus ao mundo também para eles? Sim, veio, mas como o seu espírito é de piedade, de compaixão e de misericórdia, os tristes, os afligidos, os cativos e os miseráveis são os que mais lhe movem e levam o coração, como se só para eles viera. E se esta é a inclinação e propensão do Filho de Deus, qual podemos considerar que será a da Mãe do mesmo Filho?”. Eis aí uma chave estratégica: os corações de Jesus e de Maria têm predileção pelos oprimidos, pobres, cativos. Não é sem motivos, pois, que o seu culto adquiriu enorme adesão do povo fiel, ao longo dos tempos. A Igreja soube canalizar tal entusiasmo em proveito de seu poder religioso e temporal.

Em 1899, ocorre a consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus, o que acresce a esperança dos fiéis na consagração do mesmo planeta ao Coração de Maria. Em 1902, no encontro internacional dedicado a Maria, em Friburgo, ela foi coroada (em nome de Leão XIII) como “Nossa Senhora, Rainha do Universo”. A festa seria no dia 31 de maio. Em 1931, foi celebrada a lembrança Concílio de Éfeso, quando Maria foi proclamada Mãe de Deus (Theotokos). Em 13 de outubro de 1930, é autorizado o culto de Fátima. Em 1931, os bispos portugueses consagram suas dioceses e a pátria ao Coração Imaculado de Maria [1].

Peço a permissão do leitor para citar uma passagem de artigo meu sobre o pensamento estatal moderno e o culto da Virgem. “Ao contemplar a Virgem nas artes medievais, notamos a desproporção entre o seu tamanho e o dos pecadores. Os corpos trêmulos abrigam-se sob a mulher que esmaga a serpente do mal. O pagamento do pecado é a morte (Rm 6,23), mas a salvação sempre ocorre de forma gratuita. A Mãe de Deus (Theotokos) mostra que o Eterno pode ser alcançado. Cada um dos fiéis encontra em Maria a sua porta ebúrnea para deixar o exílio no mundo, hac lacrimarum vale. Os cristãos possuem cidadania celeste. Eles estão no mundo visível mas caminham para o invisível. O crente, iletrado ou poeta, percebe os acontecimentos ‘em constante conexão com um Plano divino do acontecer, para cuja meta os eventos terrestres sempre avançam’. A coroa de Maria garante o triunfo sobre o Inferno. No culto à Virgem o tempo dos cristãos vai do agora (nunc) ao instante da morte (in hora mortis nostrae). Sem a proteção do Estado, corroído depois do Império Romano, sem a segurança da Igreja, em luta contra o esfacelamento feudal dos mosteiros e dioceses, os leigos submetem-se ao guante dos barões ou peregrinam em massa pelos centros onde Maria os reconforta. Os conflitos entre as duas instituições nascentes — Estado nacional e Igreja centralizada — surgem ao redor do mando soberano. Nas palavras de Georges Duby [2] , ‘a coroação de Maria na catedral celebra, de fato, solenemente, a soberania da Igreja romana’. O tema da Virgem rainha e mãe “concebido na mesma época em que o papa Inocêncio III reivindicava para a Igreja reunida em torno de si a soberania universal (…) espalhou-se muito rapidamente. Em Notre Dame de Paris, cerca de 1200, revestiu as suas formas perfeitas” (Ibid.)” [3].

Ao lado da mística ou abaixo dela o culto de Maria tem faces de ordem social e política. Um dado de antropologia histórica merece indicação: em muitos lugares onde, após o cristianismo, foram elevados templos à Virgem Maria soberana universal, existem fortes vestígios que indicam a presença do culto a Ísis (com seu par Osíris). Assim, os laços afetivos e o culto seriam anteriores à Igreja, fortemente enraizados na cultura popular. Fica a sugestão que pode remeter para estudos sobre as fontes remotas do poder eclesial e seus símbolos e do mando estatal com seus mitos [4]. Deixemos o campo explosivo e passemos ao culto do Coração de Jesus.

Insisto num ponto: sempre o culto ao Coração de Maria, para os seus entusiastas e para a Hierarquia, teve simultaneidade com o culto do Coração de Jesus. É o que proclama São Francisco de Sales em carta à irmã Jeanne de Chantal: “Pensei portanto, cara madre, se a senhora concorda, que precisamos tomar como armas um só coração atravessado por duas flechas, encerrado numa coroa de espinhos, este pobre coração que serve como base a uma cruz que estará no seu cimo, e será gravado com os santos nomes de Jesus e Maria” (Carta de 10/06/1611).

No lado estatal, em disputa perene com o poder eclesiástico, temos a crônica ligada à dedicação dos países aos corações de Jesus e Maria. Em 1638, Luís XIII da França consagra oficialmente o reino à Virgem, colocando aos seus pés, nas palavras do monarca, “nossa pessoa, nosso Estado, nossa coroa e nossos súditos”. Santa Margarida Alacoque, em mensagem dirigida aos reis, diz que Jesus “deseja entrar com pompa e magnificência na casa dos príncipes, para ali ser honrado, na mesma intensidade em que ele foi ultrajado, desprezado e humilhado na sua Paixão”. Em outra mensagem, ela ordena a Luís XIV a construção de um templo “onde estará o quadro do divino Coração, para ali receber a consagração e as homenagens do Rei e de toda a sua corte. Em tal edifício o chefe da nação francesa reconhecerá o império do divino Coração sobre ele mesmo e sobre a nação, ele proclamará sua realeza, e dirá ser um tenente de Cristo”.

O Padre Eudes introduz no reino de Luís XIV o culto do Sagrado Coração. A festa do Sagrado Coração é celebrada já em Montmartre, o mesmo lugar onde hoje se encontra a Igreja do Sagrado Coração. O padre eudista Hébert continua sob Luís XVI o culto que se tornou essencial na Corte. Ele mostra, nos instantes revolucionários mais perigosos para o trono, o Coração de Jesus como amparo contra a impiedade sublevada. Luís XVI consagra a França ao Sagrado Coração e tenta modificar a Constituição civil do clero. Tudo isso piora sua situação. Os católicos perseguidos pelos revolucionários levavam consigo um Sagrado Coração, ou melhor, uma imagem dos sagrados corações, o de Jesus e o de Maria.

A saga do culto continua na Revolução, nos impérios e tem um ponto importante de inflexão na guerra de 1870. Nela, pela primeira vez na história, a bandeira do Sagrado Coração é exposta num campo de batalha. A partir daí surge uma avassaladora onda de consagrações ao Coração de Jesus. Pie, bispo de Poitiers, afirma em sermão: “O crime que nos atrai tão cruéis castigos, é o crime público, o crime social, o crime nacional. Elevemos nossos corações para o Coração de Jesus, para lhe fazer uma consagração pessoal, doméstica, nacional”. O papa Pio IX confirma a construção do templo em Montmartre (1831). Em 1875, Garcia Moreno, presidente do Equador, consagra a nação ao Sagrado Coração de Jesus. Em 1875 ainda, Pio IX consagra o universo cristão ao Sagrado Coração. Em 1899, Leão XIII, na encíclica Annum Sacrum, faz a consagração do mundo. “Dado que o Sagrado Coração é o símbolo e a imagem sensível da caridade infinita de Jesus Cristo, a qual no impulsiona ela mesma a amar em retorno, é natural consagrar a nós mesmos ao santíssimo Coração”.

Os embates entre Igreja e Estado laico (herdeiro do século 18) aumentam a pressão da Propaganda Fidei em prol do Sagrado Coração. Na terceira República, Gambetta proclama: “o clericalismo é o inimigo”. Congregações religiosas são expulsas, ocorre a laicização do ensino até que em 1904 dá-se a ruptura das relações diplomáticas entre França e Vaticano. O exército é expurgado dos líderes católicos que, segundo os defensores do laicismo, eram formados nas “jesuitières” (jesuitarias). Mas, na guerra de 1914, os bispos pedem a consagração dos aliados ao Coração de Jesus, para que a vitória fosse assegurada. Pio XI retoma, na encíclica Miserentissimus Redemptor, o devocionário do Sagrado Coração [5].

Notemos, pois, que na vida moderna, ou desde o final da Idade Média quando se forma o Estado nos delineamentos ainda hoje reconhecíveis, o culto ao Coração de Jesus e de Maria adquire uma dimensão política a cada momento mais evidente. Não será por acaso que o anseio do mundo católico, em luta contra o Estado laico que é diretamente oposto à religião, foi o de formar exércitos (a Ação Católica era um deles) de fiéis para proteger a Igreja e atacar o modernismo, cujos signos mais evidentes eram a cisão protestante, o socialismo, o anarquismo, o comunismo. Sem esquecer, muito pelo contrário, o liberalismo. Exasperando-se a luta entre Igreja e sociedades laicas dirigidas por Estados idem, chegou-se a pensar, como remédio, na consagração do Universo ao Sagrado Coração. O culto do Sagrado Coração adquire cores contrarrevolucionárias na passagem do século XIX ao XX. Na busca de se fazer Povo e exercer uma soberania espiritual, refloresceram na Igreja movimentos, agora de cunho romântico, cuja sensibilidade se casa perfeitamente com o culto do Sagrado Coração. Este carregou um simbolismo político antiliberal marcado: imaginava-se com ele estabelecer a soberania espiritual, mas de direito, do sagrado coração (leia-se, da Igreja) sobre a sociedade e sobre os Estados nacionais. Nesta linha, deu-se a consagração da Bélgica em 1869, da França em 1873, do Equador e outros [6].

IHU On-Line - Recentemente, ao comentar a consagração do Brasil ao Coração de Jesus, o senhor mencionou que isso significou uma prática de política internacional contrária ao liberalismo laico, ao socialismo e ao comunismo no século XIX. Pode nos contar por que essa consagração se opôs ao liberalismo, ao socialismo e ao comunismo?

Roberto Romano - As informações mais decisivas sobre a resistência da Igreja ao pensamento liberal, socialista e comunista podem ser encontradas na vasta literatura conservadora que se espraiou pelo mundo no final do século XIX até metade do século XX. É a literatura dos contrarrevolucionários, em especial a de Donoso Cortés, Joseph de Maistre e L. de Bonald. Não significa que tais autores foram católicos ou mesmo cristãos. Joseph de Maistre foi visto com muita desconfiança pela Cúria Romana. Mas eles encontraram na estrutura vertical e hierárquica da Igreja Católica um suposto remédio contra os males do individualismo (que teriam gerado, em reação, o coletivismo socialista e comunista).

O tema da soberania espiritual da Igreja contra o poder laico ou ateu é avatar da tese de Roberto Bellarmino sobre a soberania indireta da Igreja. Os contrarrevolucionários do século XIX viram na estrutura vertical eclesiástica uma parede contra os movimentos liberais, socialistas e comunistas. Todos eles seriam frutos malditos da Reforma luterana, piorada por Calvino e outros. O princípio da Autoridade fora dinamitado nas revoluções do século XVII e XVIII, o que resultou na anarquia e no seu complemento e oposto, o coletivismo comunista.

As doutrinas dos contrarrevolucionários alimentaram pensadores do autoritarismo no século XX, basta pensar em Carl Schmitt, católico que se desencantou com a Igreja e caiu nos braços do nazismo. A ideia de representação elaborada por Schmitt vai contra a mesma noção, elaborada pelo liberalismo político. O Estado moderno, mecânico e liberal, não consegue unir os indivíduos e as massas porque lhe falta o que só a Igreja preserva: a obediência a uma pessoa, o Papa, que por sua vez representa pessoalmente Jesus Cristo. Embora o culto ao Sagrado Coração não seja mencionado por Schmitt, fica bem clara em suas teses a noção de que o catolicismo guarda no mundo moderno a prática da representação como elo entre pessoas, no caso as humanas e a divina. Não existe representação ao modelo liberal, que é abstrata e mecânica, mas apenas a que se dá entre pessoas concretas. Schmitt, numa blasfêmia enorme, termina por trocar em seus escritos mais sórdidos a pessoa do Cristo pela de Hitler.

Em suma, tudo o que desejarmos saber sobre os contrarrevolucionários do século XX, podemos entender nos seus efeitos, ao consultar os textos de Schmitt. O catolicismo afirma a soberania de Jesus e de sua mãe sobre o mundo, incluindo o político, os Sagrados Corações simbolizam tal realeza. No vazio instalado com a secularização e com a acolhida do Messias nazista, desaparece o Coração misericordioso, brota a impiedade mais bruta que mantém, no entanto, a ideia de um vínculo pessoal nos tratos do poder. A Igreja, com o culto do Cristo Rei e a consagração dos países a Jesus e Maria, tentou opor ao capitalismo e ao comunismo um programa de integridade dos homens enquanto pessoas, não enquanto número. Em tal sentido, parece-me, E. Mounier foi quem soube captar de modo mais profundo a posição religiosa contra os dois polos, a individualização sem peias e a resposta a ela, a coletivização delirante.

IHU On-Line - Como o senhor avalia a decisão do Planalto?

Roberto Romano - Não houve consagração ao Coração de Jesus, visto que ela já ocorreu com o Cristo Redentor em 1931. Ocorreu uma consagração de pequena monta à Maria. Basta notar que da Hierarquia católica apenas dois bispos estiveram presentes ao evento. Trata-se, me perdoem, de uma reedição caricata da anedota sobre Henrique IV da França. Protestante, ele teria se convertido ao catolicismo para chegar ao trono. “Paris vale uma missa”. A história não tem valor documental, mas como diriam os italianos, “è ben trovata”. Um presidente que se proclama “evangélico” para ganhar votos se apresenta compungido e exalta a Virgem Mãe, como se ele mesmo fosse o fruto de um milagre mariano.

IHU On-Line - Como o senhor vê, à esquerda e à direita, o uso político que se faz da religião? Há diferenças no modo como políticos de esquerda e de direita usam a religião para fazer política?

Roberto Romano - A direita imagina ter nascido do ventre religioso. E muitas vezes o é, de fato. A esquerda, salvo a que tem fontes religiosas, nasce do ateísmo laico e, quando se relaciona com as igrejas, o faz com técnicas políticas e alvos de instrumentalização. A direita comete o erro de se imaginar em plano igual à forma religiosa. E sempre que exagera tal gênese imaginária ela se perde nos labirintos do tempo. A esquerda tem se notabilizado por tentar o uso da religião como instrumento de arregimentação de massas, de poder. Fui muito criticado no Brasil pelas duas tendências ao mostrar, em Brasil, Igreja contra Estado, que a Igreja (e a religião) transcende os alvos finitos da política, da economia, da cultura. Mas tal assunto não deve ser abordado agora.

IHU On-Line - No cenário internacional temos visto políticos da extrema direita defenderem discursos religiosos em seus pronunciamentos, ao mesmo tempo em que são contrários a políticas favoráveis à imigração e defendem o nacionalismo, como tem feito Matteo Salvini na Itália. A que o senhor atribui esse fenômeno? Trata-se de algo novo no âmbito político?

Roberto Romano - Não acredito que formas e fórmula culturais nasçam do nada. A extrema direita de hoje, na Itália, Alemanha, Bélgica, França e demais países, tem raízes recentes e antigas. Tanto os regimes nazistas e fascistas quanto os comunistas impostos aos povos (na Polônia e na Hungria, por exemplo) deixam traços éticos, cicatrizes terríveis, como a busca de uma autoridade infalível, monocrática, sem compromisso com os indivíduos e movida pelas massas. Traços assim são indeléveis. Basta que a democracia mostre sua face mais feia (como nos programas genocidas neoliberais que preferem a saúde do mercado à vida das pessoas) para que os fantasmas do passado se reapresentem na fala, na imaginação e... no coração dos povos. Assim, os líderes da extrema direita redescobrem as lições maquiavélicas sobre a eficácia política: mover a religião em favor de quem governa. Aí vale tudo, incluindo rosários, hagiografias, milagres.

IHU On-Line - O ministro das Relações Exteriores brasileiro e parte do novo governo são contrários ao que chamam de “globalismo”, isto é, a existência de um projeto político de um governo global. Como o senhor avalia essa tese?

Roberto Romano - Trata-se de uma expansão desmesurada de doutrinas antes só assumidas em âmbitos como a Tradição, Família e Propriedade - TFP. Sempre digo que a TFP seria como uma espécie de vida guardada em milênios nas pedras ou em gotas de âmbar (como no filme Jurassic Park). A TFP era um retrato fiel, no século XX, do catolicismo conservador do século XIX, incluindo a sua eclesiologia. Hoje a bolha que guardava o ente jurássico explodiu e atinge um coletivo bem maior do que o dos marianos que berravam contra a modernidade. As paredes do Itamaraty foram atingidas pelos dejetos da bolha que formava a TFP. A imitação “católica” e caricata de Trump e de Bannon, via Olavo de Carvalho, ainda irá trazer muitos prejuízos para a vida brasileira.

IHU On-Line - Alguns avaliam que a modernidade apresenta problemas que interferem nas dimensões política e social e que o surgimento de políticos da extrema direita, como os que temos visto na Europa e em certo sentido no Brasil também, que assumem um discurso religioso e econômico, recebem apoio de parte da população porque se apresentam como uma reação à modernidade. Concorda com esse tipo de análise?

Roberto Romano - Em parte. Christopher Hill pergunta em uma de suas obras: “liberdade para quem e para fazer o quê?”. Tivemos nos séculos XIX e XX um entusiasmo desmedido pela modernidade. E com ela, acreditamos em mitos como o desenvolvimento econômico sem limites, o culto das personalidades que lideram o mercado e a política. Também nos esquecemos dos problemas éticos e morais profundos, caímos na voragem do consumo e do gozo que supostamente não têm fim. Reduzimos o mal à banalidade, como bem sugere Hannah Arendt. Sem alimento espiritual administrável, massas buscam felicidade na indústria do entretenimento, na internet, no imediato. Desiludidas, elas se entregam a mitos e cópias de mitos, aceitam de bom grado a servidão. Nada que não tenha sido exposto pela filosofia, de Platão a La Boétie, chegando aos nossos dias. Do desencanto religioso e cultural brotam os carrascos que hoje, no mundo, retomam a saga do fascismo.

 

Notas:

[1] Para informações importantes sobre o tema, ver o livro do Padre D’Hubert Du Manoir, S.J.: Maria, études sur la Sainte Vierge, Paris, Beauchesne et Fils. (Nota do entrevistado)

[2] O Tempo das Catedrais, 980-1420, Lisboa, Estampa,1979, p. 156. (Nota do entrevistado)

[3] O trecho de minha autoria foi extraído do artigo intitulado “A figura do Leviatã” e recebeu publicação numa coletânea em homenagem ao Professor Oswaldo Giacoia: Labirintos da Filosofia, Festschrift aos 60 anos de Oswaldo Giacoia Jr. Campinas, Editora Phi, 2014, pp. 356 e ss. (Nota do entrevistado)

[4] Cf. Jurgis Baltrušaitis, La Quête d´Isis, Paris, Flammarion, 1985. (Nota do entrevistado)

[5] Cf. Um acúmulo útil de informações no site: La dévotion au Sacré-Coeur de Jésus. Résumé historique et théologique aqui. (Nota do entrevistado)

[6] R. Aubert: “La vitalité chrétienne”. Nouvelle Histoire de l ´Église. (Nota do entrevistado)

 

 

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