O drama venezuelano, o fim do chavismo democrático e a ascensão do castrismo. Entrevista especial com Rafael Luciani

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Por: Patricia Fachin | Tradução: Moisés Sbardelotto | 18 Agosto 2017

Depois de um regime totalitário com Chávez e uma ditadura cívico-militar “que se consumou com o golpe de Estado que Maduro deu”, hoje os venezuelanos estão “experimentando outro giro no ordenamento da realidade política atual depois da instalação da Assembleia Constituinte no último dia 4 de agosto”, diz o venezuelano Rafael Luciani à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Segundo ele, após a instalação da Assembleia Constituinte em 4 de agosto deste ano, Maduro reagrupou “as forças radicais do chavismo castrista que lutavam por espaços de poder”. Na prática, explica, isso significa que “todos os poderes públicos existentes ficam submetidos a suas decisões cotidianas”, ou seja, pode haver destituição de prefeitos, governadores, poderes públicos e revogação de leis.

De acordo com o professor da Universidade Andrés Bello, de Caracas, “a atual crise da Venezuela não tem origem em Maduro, mas sim no totalitarismo que Chávez foi montando, na medida em que ia assumindo o controle absoluto dos poderes públicos”. Entre os aspectos fundamentais para compreender o que se passa na Venezuela atualmente, Luciani afirma que é preciso considerar “a adoção do modelo político revolucionário cubano ou castrismo” desde 2004, quando “Chávez começa a enviar as promoções do Estado Maior Venezuelano a Cuba para estudar o modelo político do governo revolucionário cubano. Esses são os militares que ocupam hoje os altos comandos e proclamam publicamente: ‘Pátria, socialismo ou morte’. Mas também são esses os militares com quem Maduro teve que negociar e outorgar-lhes altas cotas de poder político e econômico através de ministérios e empresas públicas, para poder se manter no poder”, informa.

Rafael Luciani também comenta a postura assumida pela Igreja da Venezuela em relação à crise política do país, inclusive o pronunciamento do papa Francisco sobre a aprovação da Assembleia Constituinte, e dá um panorama da atual situação social. “Hoje, em 2017, para quase 75% da população, o dinheiro não é suficiente para comprar a cesta básica a cada mês, não comem três vezes por dia” e “cerca de 30% das crianças estão em risco de desnutrição”. Ele diz ainda que “para dar uma ideia da grave deterioração social e do fracasso do modelo econômico, antes de Chávez, em 1998, por exemplo, a pobreza era de 60%. Hoje, em 2017, a pobreza supera os 70%, há cerca de 30.000 mortos por ano, temos um parque industrial reduzido — seja por meio de expropriação ou do fechamento — a um terço do que existia e padecemos de uma hiperinflação que supera os 800%”.

Na mesma perspectiva do papa Francisco, Luciani defende que a única alternativa à atual crise venezuelana é “construir uma ‘unidade nacional superior’, que não seja só dos partidos que formam a oposição, mas que também inclua o chavismo democrático e faça uma aliança estratégica com a sociedade civil, pois esta última foi a que tornou possível a logística e a mobilização para realizar a consulta popular no dia 16 de julho passado”.

Na avaliação dele, o “drama venezuelano” também passa por uma negociação com Cuba. “Digo isso porque tenho insistido que o chavismo que governa é o castrista. O Vaticano pode exercer pressão ou iniciar negociações com Cuba sobre o caso venezuelano. Esse diálogo com Cuba poderia contribuir, pelo menos, para pressionar o governo venezuelano a reconhecer a crise e a abrir um ‘canal humanitário’, porque as pessoas estão morrendo”.

Rafael Luciani (Foto: fresnedaofm.blogspot.com.br)

Rafael Luciani é doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana, e em Filosofia pela Universidade Salesiana. O pós-doutorado foi na Julius-Maxiliams Universität. Atualmente é professor titular na Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas e professor extraordinário na Pontifícia Universidade Salesiana de Roma e no Boston College, Boston, EUA.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como você descreve o que se passa na Venezuela neste momento? Ainda nesse sentido, pode nos explicar em que consistiu a proposta de Maduro de votar uma nova Assembleia Constituinte? Como avalia esse processo e quais são os argumentos daqueles que são favoráveis à mudança na constituinte e daqueles que são contrários?

Rafael Luciani – Passamos de um regime messiânico de corte totalitário que foi sendo montado com Chávez a uma ditadura cívico-militar que se consumou com o golpe de Estado que Maduro deu, como reconheceu a própria Procuradora da República, Luisa Ortega Díaz [1]. Ela declarou que, em março deste ano, tinha sido rompido o fio constitucional depois que o Tribunal Supremo de Justiça desconheceu a Constituição de 1999 e inabilitou o poder legislativo que havia sido eleito pelo voto direto e universal em 2015, com uma maioria esmagadora em favor da oposição democrática.

No entanto, estamos experimentando outro giro no ordenamento da realidade política atual depois da instalação da Assembleia Constituinte no último dia 4 de agosto. Na prática, essa Assembleia funciona como uma espécie de junta de governo, que permitiu que Maduro, graças à assessoria cubana, reagrupasse todas as forças radicais do chavismo castrista que lutavam por espaços de poder. Essa Assembleia foi declarada com caráter supraconstitucional por um período de dois anos, de modo que todos os poderes públicos existentes ficam submetidos a suas decisões cotidianas. Isso significa que ela pode destituir prefeitos, governadores, poderes públicos e revogar leis. Sua origem não apenas é ilegal, e a forma de sua eleição, inconstitucional — como explicaram as cátedras de Direito Constitucional das universidades públicas e privadas da Venezuela —, mas também fraudulenta, porque assim reconheceu a própria empresa Smartmatic, que fornece os serviços técnicos ao Conselho Nacional Eleitoral venezuelano. Isso que eu chamo de uma espécie de junta de governo conseguiu, taticamente, a depuração interna do chavismo, mediante a expulsão dos grupos que representam o chavismo democrático, deixando sozinho no poder o chavismo cívico-militar castrista.

Tanto Maduro quanto o atual vice-presidente, Arreaza [2], são as figuras mais fiéis ao modelo castrista. Sua intenção é reproduzir o modelo político cubano, e querem conseguir isso mediante a Assembleia Constituinte. A sua convocatória de modo unidirecional por Maduro não contou com o aval plebiscitário do povo, como soberano original, tal como Chávez fez quando convocou a Assembleia Constituinte de 1999, que deu origem à atual Constituição da Venezuela. Maduro, passando por cima do modelo político previsto na atual Constituição, assumiu uma eleição de representantes por “setores” ligados ao “partido único do governo”, e não por meio do sufrágio universal, direto e secreto do povo venezuelano.

IHU On-Line – O senhor já afirmou que a Venezuela passou de Chávez a Maduro, do totalitarismo para a ditadura. Em que aspectos o governo de Maduro se aproxima e se distancia, ou é uma continuidade ou uma ruptura, em relação ao programa político iniciado por Chávez?

Rafael Luciani – A atual crise da Venezuela não tem origem em Maduro, mas sim no totalitarismo que Chávez foi montando, na medida em que ia assumindo o controle absoluto dos poderes públicos, a ponto de governar por decretos presidenciais, sem a necessidade desses mesmos poderes. Três aspectos aqui são importantes para entender isso. Primeiro, a imposição de um pensamento único. Chávez começa a usar a expressão “Socialismo do século XXI” a partir de 2005, embora esse termo não existisse na Constituição da República aprovada em 1999. As críticas foram crescendo, de modo que ele se viu na necessidade de legitimar essa forma de governo, e convocou em 2007 um referendo para reformar a Constituição. Mas Chávez perdeu esse referendo. Desse modo, ao não contar com o aval do povo, começou a implementar a reforma socialista cubana através de decretos presidenciais. Isso lhe permitiu criar, de forma inconsulta e unidirecional, o marco jurídico e ideológico que hoje vemos consumado na Ditadura de Maduro.

Um segundo aspecto é a imposição de uma ideologia militar. Chávez era o presidente da República, mas governava como o Comandante Chefe das Forças Armadas. Isso significa que não se aceitavam deliberações nem dissidências. Aqueles que se opunham a ele eram totalmente excluídos de qualquer acesso aos serviços públicos do Estado. A lealdade começou a ser mais importante do que a eficiência. Isso foi criando a dependência entre os indivíduos e a figura caudilhista do presidente. Esse modelo pode ser legal em outros países, como em Cuba, China ou Coreia do Norte, mas não podemos dizer que é um modelo democrático. Nesse aspecto, Maduro se distancia de Chávez, porque, ao não ter poder sobre os militares, então tem que negociar com eles para poder se manter no poder. Hoje em dia, quase a metade do governo, assim como as grandes empresas públicas, entre elas a Arco Minero, estão nas mãos dos militares. Quando Maduro começa a perder o apoio popular, até chegar, hoje em dia, a ter 80% do país contra ele, vê-se obrigado a usar a força repressiva que exerce através de três forças oficiais, como a Polícia Nacional Bolivariana, a Guarda Nacional e o Serviço Bolivariano de Inteligência; e uma força paramilitar, que são os coletivos ou grupos civis armados, que controlam as zonas populares. Só assim ele pode conter o mal-estar diário que existe no povo venezuelano por causa da escassez de alimentos e medicamentos.

Chávez governava sobre o modelo ceresoliano de exército-caudilho-povo, que se sustentava graças à imensa riqueza do petróleo, que permitiu a organização das chamadas “missões”, por meio das quais se beneficiavam os setores populares. A bonança petrolífera lhe permitiu a consolidação de um totalitarismo de Estado, mediante a ocupação dos poderes públicos, mas não teve a necessidade de implementar uma ditadura, porque contava com o seu carisma como líder da revolução. No entanto, agora que o petróleo não permite sustentar esse projeto, e não tendo o carisma do caudilho, o que resta a Maduro é o controle político e a repressão militar para se manter no poder.

A influência cubana

Um terceiro aspecto a se considerar é a adoção do modelo político revolucionário cubano ou castrismo. Essa opção ideológica funciona sobre a contínua purificação das suas próprias fileiras partidárias e a eliminação de qualquer dissidência opositora. O argumento que defendem é que, quando o povo se levanta, é preciso usar as armas, porque é preciso salvar a revolução a todo o custo, sem importar os meios que se usem. Esse chamado foi feito pelo presidente Maduro em várias oportunidades pelos meios de comunicação. Não se entende isso se não lembrarmos que, a partir de 2004, Chávez começa a enviar as promoções do Estado Maior Venezuelano a Cuba para estudar o modelo político do governo revolucionário cubano. Esses são os militares que ocupam hoje os altos comandos e proclamam publicamente: “Pátria, socialismo ou morte”. Mas também são esses os militares com quem Maduro teve que negociar e outorgar-lhes altas cotas de poder político e econômico através de ministérios e empresas públicas, para poder se manter no poder.

IHU On-Line – Como os apoiadores do então programa de Chávez hoje se posicionam acerca do governo Maduro?

Rafael Luciani – Maduro foi realizando uma depuração dentro do chavismo, conseguindo expulsar, com êxito, as forças democráticas do chavismo que não estão de acordo com o modelo revolucionário cubano que está se impondo. Essas forças são representadas hoje pela procuradora-geral da República, Luisa Ortega Díaz — destituída pela Assembleia Constituinte ao ser acusada de “traidora da pátria” — e o ex-ministro do Interior e da Justiça, Rodríguez Torres [3]. A postura das forças políticas do chavismo democrático encontra eco no sociólogo venezuelano Edgardo Lander [4], que reconhece que há um fechamento de todas as vias institucionais para resolver o conflito, porque o governo desconhece a Assembleia Nacional, não permitiu o mandato constitucional de mudar os reitores do Conselho Nacional Eleitoral, cancelou o referendo revogatório e adiou todas as eleições. Para Lander, representante da esquerda intelectual venezuelana, “estamos muito longe de algo que possa se chamar de prática democrática. Utilizam-se todos os instrumentos do poder em função de se preservar no poder”.

Ocorreram encontros muito positivos entre as forças da oposição e o chavismo democrático. Recentemente, houve um encontro muito importante na Universidade Católica Andrés Bello. Acho que esse é o caminho para um reagrupamento das forças políticas democráticas pela via da unidade tática ou unidade nacional superior que se estabeleça entre os líderes opositores e os desse chavismo democrático nascente.

IHU On-Line – Há relatos de que a população venezuelana está passando fome e enfrentando uma série de problemas sociais por conta do racionamento de comida e remédios no país. Que informações você tem sobre essa situação?

Rafael Luciani – Na Venezuela há fome, e as pessoas morrem por falta de medicamentos. Quando me dizem no exterior que eu estou exagerando, eu os convido a irem para a Venezuela e a viverem alguns meses padecendo de alguma doença. Verão que terão que recorrer a amigos no exterior para conseguir certos remédios ou morrerão. Por exemplo, quem não tem hoje os meios econômicos para conseguir comprimidos para a hipertensão no exterior e pagá-los a um preço elevadíssimo já sabe que está destinado a morrer de um infarto em um curto espaço de tempo, porque não há esse tipo de medicamento em todo o país. O governo não permite a entrada de ajudas humanitárias, menos ainda se provêm da Cáritas ou de outras entidades da Igreja Católica. Essa foi, precisamente, uma das exigências que o Vaticano fez ao governo venezuelano e que provocou que o governo não seguisse o processo de diálogo em dezembro. Em 2012, a FAO registrava apenas 5% de fome na Venezuela. Hoje, em 2017, para quase 75% da população, o dinheiro não é suficiente para comprar a cesta básica a cada mês, e não comem três vezes por dia. De acordo com estudos recentes da Cáritas da Venezuela, cerca de 30% das crianças estão em risco de desnutrição atualmente.

Para dar uma ideia da grave deterioração social e do fracasso do modelo econômico, antes de Chávez, em 1998, por exemplo, a pobreza era de 60%. Hoje, em 2017, a pobreza supera os 70%, há cerca de 30.000 mortos por ano, temos um parque industrial reduzido — seja por meio de expropriação ou do fechamento — a um terço do que existia e padecemos de uma hiperinflação que supera os 800%. Um professor em tempo integral em qualquer universidade venezuelana ganha cerca de 50 ou 60 dólares por mês. Isso acontece no país com as maiores reservas de petróleo do mundo. O país que teve o melhor sistema público de educação e de saúde de toda a América Latina.

IHU On-Line – Fala-se que a Igreja tem posições divergentes em relação à crise da Venezuela, mas recentemente o senhor declarou que não há fissuras na Igreja no momento. Por que na sua avaliação não há mais fissuras? Acerca de quais pontos fundamentais havia divergência anteriormente?

Rafael Luciani – Houve individualidades ao longo do período de Chávez que apoiavam de forma incondicional o processo revolucionário, porque houve uma narrativa que ia na direção do reconhecimento do pobre em uma sociedade onde havia separações muito grandes e onde nunca houve uma interação sociocultural e interclassista real. Hoje, no entanto, o que resta são vozes individuais, alguns poucos padres, que defendem incondicionalmente o projeto de Maduro, enquanto recebem benefícios econômicos do próprio governo, como habitação, carros e guarda-costas, embora pareça fantasioso. No entanto, a Igreja venezuelana nunca padeceu de divisões nem de fissuras.

É preciso compreender que a Igreja na Venezuela, até meados do primeiro período do ex-presidente Rafael Caldera, no início dos anos 1970, desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento do país; por exemplo, na educação e na formação de líderes sociais. Houve uma geração de empreendedores formada dentro da estrutura da Igreja Católica. Até meados dos anos 1970, começa uma quebra, talvez despercebida, na qual a Igreja como instituição vai se separando da Igreja como povo de Deus. Essa quebra foi ocorrendo gradualmente e foi adquirindo proporções de divisão entre o mundo diocesano e o das congregações religiosas, cada um com pastorais muito diferentes. Aí vai se dando não uma Igreja popular, como ocorreu em outros países da América Latina, mas sim uma presença da Igreja nas comunidades e nos bairros que não era 100% institucional. No entanto, um dado muito particular da Igreja venezuelana é que os nossos bispos nunca foram, como em outros países, inquisidores dogmáticos ou políticos, mas tiveram uma atitude muito pastoral de respeito e diálogo com as diversas posições e visões que coexistem na Igreja venezuelana. Foi isso que evitou que nunca tivesse êxito a tentativa de Chávez de criar uma Igreja paralela.

A posição atual de toda a Igreja depois do autogolpe de Maduro foi muito clara e coerente com uma visão democrática do país. A Conferência Episcopal Venezuelana denunciou que, para o governo, “tudo gira em torno do político, entendido como conquista do poder, esquecendo as necessidades reais das pessoas” e instou a “se perguntar muito séria e responsavelmente se não são válidas e oportunas, por exemplo, a desobediência civil, as manifestações pacíficas, as justas reivindicações aos poderes públicos nacionais e/ou internacionais e os protestos cívicos”. A isso, somou-se a voz da Conferência de Religiosos e Religiosas da Venezuela, reconhecendo “a falta de autonomia entre os cinco poderes públicos: Executivo, Legislativo, Judicial, Eleitoral e Cidadão” e enfatizando “a indolência do governo nacional perante a situação crítica que o nosso povo vive, demonstrando, mais uma vez, que só lhe interessa a luta para se manter no poder”, em um contexto de “iminente ditadura”.

A Companhia de Jesus na Venezuela, através da revista SIC do Centro Gumilla, que representa a teologia da libertação na Venezuela, também tornou pública a sua posição oficial: “Enfrentamos uma ditadura como cidadãos e como cristãos”, que se consuma com “as decisões tomadas pelo Tribunal Supremo de Justiça na Sala Constitucional datada de 28 e 29 de março, que pressupõem um claro golpe de Estado e um desmascaramento definitivo do governo como uma ditadura”. Depois da fraude eleitoral que levou à instalação da Assembleia Nacional Constituinte no último dia 4 de agosto, o jesuíta José Virtuoso, reitor da Universidade Católica, referiu-se a essa Assembleia como a “constitucionalização de uma ditadura militar socialista, como disse a Conferência Episcopal. Teremos uma transformação da Constituição, e essa mudança é para consolidar um regime autoritário, muito centralizado na figura do presidente, com poderes onímodos sobre o Estado e do Estado sobre a sociedade. E eu acredito que as sociedades não têm saída com um modelo desse tipo. Essa sociedade que lutou contra esse modelo vai seguir em rebeldia”. De fato, o próprio papa Francisco, através da Secretaria de Estado, pediu a “suspensão” da Assembleia Constituinte. Isso incomodou muitos no alto governo, e agora veem o Papa como um opositor.

IHU On-Line – É possível estimar quantos são os presos políticos hoje na Venezuela? Por quais razões eles estão presos e em que condições eles se encontram?

Rafael Luciani – A perseguição política hoje na Venezuela não é só à oposição, mas também ao chavismo democrático. É uma perseguição executada pelo Estado contra qualquer tipo de dissidência em relação ao modelo revolucionário cubano. Os tribunais militares são usados para processar os dissidentes. Não se recorre aos tribunais civis. Recentemente, Maduro ordenou 25 anos de prisão a quem for considerado traidor da pátria. Eu acho que nenhuma ditadura de direita na América Latina chegou a esse número de anos de condenação.

De acordo com as organizações não governamentais que trabalham pelos direitos humanos, como o Foro Penal, e os centros de direitos humanos das universidades, como o da Andrés Bello, existem hoje mais de 700 presos políticos. A isso, é preciso somar os mais de 5.000 detidos em menos de quatro meses que se encontram nos calabouços do Serviço Bolivariano de Inteligência ou nos quartéis da Guarda Nacional. Muitos dos quais foram submetidos a torturas, como denunciou a procuradora-geral da República. Entre os casos mais terríveis, está o do jovem violinista de 23 anos Wuilly Artega, que pertence ao sistema de orquestras da Venezuela, que foi encarcerado e torturado por tocar violino em um protesto de rua. Ou a senhora Lisbeth Añes, que foi julgada por um tribunal militar pelo fato de levar comida, remédios e roupas para os presos políticos. A Igreja verificou as condições em que esses presos se encontram, mas não conseguiu nenhuma resposta por parte das autoridades. Nunca antes tínhamos visto a crueldade com que atacam os manifestantes e atiram à queima-roupa. A única explicação é a tese do ideólogo esquerdista argentino Borón, a quem Maduro segue: “Se uma força social declara guerra contra o governo, requer-se deste uma resposta militar”.

IHU On-Line – Recentemente você declarou que um caminho menos traumático para a crise venezuelana seria um acordo por uma transição que incorpore as forças do chavismo político não castrista, os militares e a oposição democrática. Por que essa lhe parece a melhor alternativa? Em termos políticos, qual é hoje a alternativa ao governo Maduro?

Rafael Luciani – Aqueles que realmente sustentam Maduro no poder são os militares. Ele não tem apoio popular para se sustentar, nem conta com a unidade monolítica que tinha antes nas fileiras do chavismo. A única coisa que lhe resta é a força bruta repressiva militar. Não estamos dizendo que se dê um golpe de Estado. É preciso rechaçar categoricamente qualquer tentativa de golpe de Estado, seja provocado internamente ou por ingerências externas. E, no caso venezuelano, já estamos vivendo e padecendo da ingerência dos militares e do pessoal cubano que controla as alfândegas, os cartórios e a imigração, e até mesmo a sala de situação do governo. Nem a ingerência de Cuba nem a dos Estados Unidos devem ser aceitas. Nenhuma, venha de onde vier.

A única saída viável, se não quisermos que o chavismo castrista volte ao poder em poucos anos, tem de ser negociada entre a oposição, o chavismo democrático e os militares, para formar já, de modo público, um novo governo que represente o que o povo pedia em 1998. O desafio é criar uma “unidade nacional superior”, para além da atual Mesa da Unidade Democrática - MUD. Mas essa unidade nacional superior deve incluir outra instância da sociedade venezuelana que possibilitou a impressionante consulta popular que foi realizada no dia 16 de julho. Trata-se dos movimentos sociais, das organizações não governamentais e da sociedade civil em geral, que, junto com os partidos políticos, mas sem se submeter a eles, conseguiram montar a estrutura logística e tática que permitiu que muito mais do que sete milhões de venezuelanos expressassem pacificamente a sua rejeição ao atual modelo político e o desejo de uma transição democrática já. Isso é algo completamente novo na Venezuela, digno de ser estudado em nível latino-americano. O próprio povo se reuniu, organizou-se, votou e decidiu o seu próprio destino. E foi um ato interclassista, ou seja, em que participaram igualmente todas as classes e setores sociais do país, sem distinção. Foi isso que deu tanta força ao 16 de julho. Por isso, tudo se deu de forma voluntária, pacífica e disciplinada. Esse elemento que existiu nos anos 1960 e 1970 deve voltar à política venezuelana, que os partidos representem e deem liderança aos distintos setores sociais do país.

Reforma integral do sistema eleitoral

Para ser honesto, seria necessária uma reforma integral do sistema eleitoral venezuelano, se quisermos eleições livres e transparentes. Levemos em conta que a maioria dos partidos opositores encontram-se atualmente “ilegalizados” por decisão do Tribunal Supremo de Justiça, e os principais líderes da oposição se encontram inabilitados, detidos ou exilados. O problema é que estamos no meio de um grande dilema, porque as ditaduras não dão espaço para alternativas utópicas, ou não seriam ditaduras. Se a oposição inscreve seus candidatos para uma eleição, então é provável que a Constituinte suspenda essa eleição, ou façam uma nova fraude, porque Maduro tem uma rejeição de mais de 80% do país, e a própria empresa Smartmatic, que trabalha para o Conselho Nacional Eleitoral, denunciou que tinham sido manipulados os dados eleitorais para a Constituinte. Mas se a oposição decide não participar, então tolerará as eleições com a segurança de que os seus candidatos ganharão por não terem oposição alguma e se apoderará de todos os municípios e províncias que hoje em dia estão nas mãos da oposição. Esse dilema, posto pelo próprio governo para ganhar mais tempo no poder e dissipar os protestos, fez com que alguns fatores da oposição mais radicais se separassem da Mesa da Unidade Democrática.

Por isso, a única via que a oposição tem para sair desse dilema e recuperar de novo a confiança das pessoas é construir uma “unidade nacional superior”, como o papa Francisco a chamava quando era cardeal em Buenos Aires, que não seja só dos partidos que formam a oposição, mas que também inclua o chavismo democrático e faça uma aliança estratégica com a sociedade civil, pois esta última foi a que tornou possível a logística e a mobilização para realizar a consulta popular no dia 16 de julho passado. Essa “unidade nacional superior e interclassista”, então, pressupõe assumir as diversas vias de luta ao mesmo tempo.

Por um lado, a Assembleia Nacional tem o dever de nomear os novos reitores do Conselho Nacional Eleitoral, cujos prazos estão vencidos. Ao fazer isso, seguramente, a Constituinte processará os novos reitores, como fez com os magistrados do Tribunal Supremo de Justiça que a Assembleia Nacional nomeou para substituir aqueles que atualmente gozam de uma nomeação ilegal. Mas, simbolicamente, esse gesto é muito importante, porque significa que a única autoridade soberana e constitucional está exercendo aquilo que o povo lhe ordenou no dia 16 de julho na consulta popular. Paralelamente a isso, pode-se ir para as regionais, fazendo uso da mesma logística e estrutura que a sociedade civil montou para o 16 de julho. E, por sua vez, devem continuar os protestos pacíficos nas ruas, como estabelecido pela Constituição ainda em vigor. Por fim, seria um erro da oposição pensar que se ela não for às eleições é uma vitória. Diante de uma ditadura assessorada por outra que tem mais de 50 anos no poder, não se pode pensar tão unidirecionalmente.

Daí a importância de construir agora uma “unidade nacional superior e interclassista”, nomear um governo transitório, dar rostos aos líderes da transição e fazer um pacto para a transição, em que os partidos ponham de lado os seus personalismos e ambições, para dar espaço ao chavismo democrático e à sociedade civil, e que seja uma proposta interclassista, ou seja, que inclua todos os setores sociais do país. Perante uma ditadura, não vale a tese de que alguns defenderam o fato de ir conquistando espaços pouco a pouco. Por fim, se a oposição vai para as eleições com uma “unidade nacional superior” organizada e as vence, e depois o governo comete fraude, como fez com a Constituinte, e não reconhece ou muda os resultados, estará expondo ao mundo a natureza ditatorial do governo, e a reação internacional será a de não reconhecer esses resultados, como já fez com a Constituinte.

Isso será uma vitória para a oposição e para o povo venezuelano, embora não se veja com clareza neste momento, pois uma réplica da ditadura cubana prejudica toda a região e não é só um problema interno dos venezuelanos. A pressão internacional foi minando a ditadura, e é preciso continuar trabalhando nesse sentido. Caso contrário, existe o perigo latente de se começar a ver o surgimento de grupos anárquicos e terroristas que ninguém pode controlar. Isso é muito perigoso, e é preciso evitar a todo custo.

IHU On-Line – Por que na sua avaliação a Santa Sé é hoje uma das únicas instituições internacionais que ainda pode tentar uma negociação com o governo venezuelano?

Rafael Luciani – A maioria dos países que têm relações diplomáticas com o Estado venezuelano manifestaram a sua recusa em reconhecer qualquer decisão que seja emitida pela Assembleia Constituinte. Por exemplo, disseram que, se os créditos que a nação pedir a entidades estrangeiras não forem aprovados pela Assembleia Nacional, a única soberana e constitucional, eleita por voto direto e universal em 2015, eles não serão outorgados ao governo. No entanto, o caminho da pressão internacional não pode se reduzir ao econômico. É preciso ver com outra ótica mais ampla e de tipo geopolítico. E é aí que o Vaticano tem um papel importante.

O drama venezuelano passa necessariamente por Cuba. Digo isso porque tenho insistido que o chavismo que governa é o castrista. O Vaticano pode exercer pressão ou iniciar negociações com Cuba sobre o caso venezuelano. Esse diálogo com Cuba poderia contribuir, pelo menos, para pressionar o governo venezuelano a reconhecer a crise e a abrir um “canal humanitário”, porque as pessoas estão morrendo. A aposta do Vaticano deve estar nessa direção. O papa Francisco conta com a estatura moral e a credibilidade internacional suficiente para chamar a atenção em nível internacional sobre o tema humanitário e conseguir o envio de alimentos e medicamentos para a Venezuela. Isso minaria ainda mais o governo e permitiria salvar muitas vidas que hoje estão em perigo de morrer.

IHU On-Line – Como avalia as sanções do governo Trump à Venezuela?

Rafael Luciani – Trump é a versão capitalista do totalitarismo de Chávez. Ele tem uma ideia absoluta do poder e usa vias paralelas, e não oficiais, para governar. Atualmente, ele controla todos os poderes públicos e usa a política do amigo e do inimigo de Schmitt, como Chávez fazia. O pior que ele poderia ter feito foi ameaçar a Venezuela de uma possível invasão militar, porque isso só beneficia o discurso anti-imperialista castrista que o governo segue. Mas tanto a oposição quanto a Igreja já se manifestaram contra a advertência que Trump fez ao governo da Venezuela sobre uma possível invasão militar. Todos os países da região também se pronunciaram contra isso.

No entanto, não nos esqueçamos de que as relações entre Maduro e Trump não são tão más como aparentam e aparecem na mídia. Maduro contribuiu com 500.000 dólares para a campanha Trump, através da filial da PDVSA nos Estados Unidos, que é a CITGO. Além disso, os Estados Unidos são o primeiro parceiro comercial da Venezuela, e a Venezuela é dona de uma das maiores redes de distribuição de gasolina em todos os Estados Unidos. As sanções feitas pelo governo dos Estados Unidos não foram ao Estado venezuelano nem aos seus cidadãos, mas a figuras políticas que estão envolvidas em corrupção e narcotráfico internacional. Se a Colômbia é o primeiro produtor de drogas do mundo, e os Estados Unidos são o primeiro consumidor, hoje a Venezuela é o primeiro país de tráfico aéreo da droga. Isso muda a imposição internacional frente ao governo venezuelano.

A ação internacional deve seguir o caminho que foi iniciado com a Declaração de Lima, mediante a qual se ratificou o desconhecimento à fraudulenta Assembleia Constituinte, reconheceu-se a legitimidade da Assembleia Nacional eleita em 2015 pelo voto universal e secreto, e confirmou-se a procuradora Luisa Ortega Díaz como única procuradora-geral da República. Neste último caso, está sendo dado um respaldo, por parte da comunidade internacional, ao chavismo democrático que quer sobreviver depois desse drama que vivemos. Isto é muito importante se quisermos uma transição viável. Mas a comunidade internacional deve se somar ao esforço, em colaboração com o Vaticano e a Igreja venezuelana, de pressionar mais para que se abra um canal humanitário e possam entrar alimentos e medicamentos no país.

Notas:

[1] Luisa Marvelia Ortega Díaz: é uma advogada venezuelana. Foi fiscal do Ministério Público da Venezuela entre 2008 e 2014 e posteriormente assumiu um segundo mandato no cargo, o qual teria vigência entre 2014 e 2021, mas foi destituída da função em 5 de agosto de 2017. (Nota da IHU On-Line)

[2] Jorge Alberto Arreaza Montserrat: político venezuelano que ocupou diversos cargos no governo do ex-presidente Hugo Chávez. (Nota da IHU On-Line)

[3] Miguel Eduardo Rodríguez Torres: é um militar venezuelano. Foi ministro do Poder Popular para Relações Interiores, Justiça e Paz do Governo Bolivariano da Venezuela até 2014. (Nota da IHU On-Line)

[4] Edgardo Lander: é um sociólogo venezuelano e professor da Universidade Central da Venezuela. (Nota da IHU On-Line)

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O drama venezuelano, o fim do chavismo democrático e a ascensão do castrismo. Entrevista especial com Rafael Luciani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU