As regras do jogo: como o setor bancário falha na sustentabilidade

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27 Fevereiro 2019

Restringir o crédito para propriedades em áreas desmatadas pode quebrar o estado de Mato Grosso. Esta era a visão, em 2008, do então governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, logo após o Conselho Monetário Nacional estabelecer as primeiras restrições para os bancos financiarem desmatadores. Decorridos dez anos, os temores de Maggi não se concretizaram: o Mato Grosso não foi à bancarrota. Mas os desmatadores tampouco tiveram seu crédito totalmente cortado. Repetidas normas do Banco Central e dos próprios bancos foram criadas com esse objetivo, mas diversas delas foram adiadas ou jamais foram cumpridas.

A reportagem é de Piero Locatelli, publicada por ((o))eco, 24-02-2019. 

As primeiras restrições ao crédito agrícola apareceram há uma década, quando o Banco Central criou exigências às quais todos os bancos deveriam cumprir ao financiar empréstimos dentro da Amazônia, que na época somavam R$ 2,6 bilhões anuais. A aprovação da Resolução 3.545, no dia 29 de fevereiro de 2008, ocorreu num cenário de pressão externa para que o sistema financeiro fizesse sua parte no combate ao desmatamento. Naquele momento, o Ibama conduzia, junto à Polícia Federal, a sua maior ação contra o desmatamento até então, a operação Arco de Fogo.

Área de expansão de pasto em fazenda de gado. Marcelândia, MT
(Foto: Marcio Isensee e Sá - ((o))eco)

Entre as primeiras exigências, constava a apresentação de documentos ligados à regularidade fundiária e à ambiental, como o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) e uma declaração de que não havia embargos dentro das fazendas. Parte do setor agropecuário criticou a norma e se mobilizou para derrubá-la, sem sucesso, enquanto a sociedade civil apontava que a exigência era insuficiente para coibir o desmatamento.

A norma era parte uma política que havia começado com um conjunto de ações, em dezembro de 2007. Na ocasião, o governo havia estabelecido medidas para prevenir e punir o desmatamento, como os embargos de fazendas onde tivessem acontecido infrações ambientais e a responsabilização de quem adquirisse produtos delas.

Norma cortou crédito, mas não foi totalmente aplicada

As normas regem todos os empréstimos a agricultores e pecuaristas feitos por bancos de mercado no Brasil, que também podem criar as suas próprias regras.

 (Fonte: ((o))eco )

Um estudo liderado pela PUC-Rio e pela Climate Policy Iniciative mostra que a resolução do Banco Central inicialmente, teve bons efeitos, especialmente na pecuária.

“Estimamos que cerca de R$ 2,9 bilhões de crédito (US$1,4 bilhão) a menos foram emprestados entre 2008 e 2011 em consequência das restrições impostas pela resolução. A maior parte desse total, R$ 2,6 bilhões (US$ 1,3 bilhão), refere-se a pecuária”, dizia o texto publicado em 2013.

Mas ainda que a norma pudesse ter tido um efeito geral positivo, os bancos continuavam a emprestar dinheiro a desmatadores. O Ministério Público Federal já apontava que o Banco do Brasil e o Banco da Amazônia não cumpriam a norma do Banco Central em sua totalidade. O Banco do Brasil teria feito ao menos 55 empréstimos irregulares para produtores, em um total de R$ 8 milhões. Já o Basa teria feito 37 empréstimos, somando R$ 18 milhões para fazendas com o mesmo tipo de prática insustentável.

Na ação, o MPF enfatizava a diferença entre o discurso e a prática dos bancos.

“As propagandas de serviços e linhas de crédito que abusam dos termos ‘responsabilidade socioambiental’ e ‘sustentabilidade’ não retratam essa realidade nas operações de concessão desses financiamentos a diversos empreendimentos situados na Amazônia”, concluía, implacável, uma das ações civis públicas da época, assinada por nove procuradores da região.
Os procuradores da República pediam, além da punição às instituições financeiras, mudanças na efetivação dessa política e do controle de crédito. Até hoje, oito anos depois, os processos contra os dois bancos seguem tramitando na Justiça Federal e aguardam decisões.

O Banco Central também encontrou problemas nos empréstimos feitos por bancos. Segundo a assessoria de imprensa da instituição, foram encontradas 38 operações até hoje que infringiram as regras do Conselho Monetário Nacional (CMN) criadas há dez anos. O Banco Central, porém, não especifica quais foram os bancos, quais seriam as infrações e quais foram as punições sofridas por eles.

Regulação fundiária adiada

A maior mudança já feita na norma do Banco Central desde a sua criação foi a incorporação do Cadastro Ambiental Rural, o CAR. Criado junto ao Código Florestal, em 2012, o instrumento serve para formar uma base de dados das propriedades rurais no Brasil que ajuda no controle e no monitoramento do desmatamento.

O código previa que só os produtores com o cadastro poderiam contratar empréstimos a partir de maio de 2015. A medida daria uma possibilidade de monitoramento sem precedentes para os bancos e o próprio governo. Por quatro vezes, o governo adiou a obrigatoriedade do CAR. Em janeiro de 2019, a apresentação do CAR finalmente passou a ser obrigatória. O governo adiou a implantação do Programa de Regularização Ambiental, mas manteve os prazos para a obrigatoriedade do cadastro.

Principal organização do setor produtivo no campo, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) manifestou-se diversas vezes contra essa obrigatoriedade. A entidade argumenta que os menores produtores ainda não conseguiram aderir ao cadastro, e que os estados tampouco fizeram a sua parte nesse processo.

Para Roberta del Giudice, secretária executiva do Observatório do Código Florestal, a implantação do CAR deve trazer melhorias, mas não é suficiente para solucionar o problema. “A nova regra provoca um maior nivelamento na base dos produtores e das instituições financeiras. Quem precisa do crédito vai ter que se cadastrar, e isso acaba tendo um impacto positivo no conhecimento sobre esses imóveis,” diz Giudice.

Muita punição, pouco resultado

Enquanto as regulações do estado são pouco cumpridas, a principal estratégia dos bancos brasileiros é criar a sua própria regulação, e deixar o governo fora desse jogo. Isso acontece em um grupo formado na Febraban, entidade que reúne, segundo ela própria, “98% dos ativos totais e 97% do patrimônio líquido das instituições bancárias brasileiras”. Neste grupo, há uma equipe de 10 bancos que discutem atualizações e padronizações em suas normas socioambientais.

Quem comanda essa operação é o diretor de relações institucionais da Febraban, Mario Sérgio Vasconcelos. Ele enfatiza a necessidade de o Estado trabalhar na repressão a crimes ambientais, mas descarta a necessidade de novas leis e regulamentações.

“A gente pesquisou em onze países e a conclusão que a gente chega é a seguinte: a legislação brasileira é de longe a mais exigente e a mais crítica, a que mais penaliza. Mas isso não significa que o Brasil, no conjunto desses países, esteja mais bem situado do ponto de vista ambiental”, diz Vasconcelos.

Vasconcelos acredita que o próprio mercado seria capaz de fazer sua regulação sobre o assunto.

“No fundo, é assim: o produtor, o comprador, o supermercado e o consumidor tomam boa parte das suas decisões em bases econômicas. Quando você coloca isso dentro do business e diz o seguinte: ‘Essa coisa de não cumprir o compliance vai lhe custar mais caro, vai lhe custar o mercado’, com lei ou sem lei, o cara faz [a prevenção ao desmatamento]”, diz o diretor da entidade.

Cabeças de gado dentro da Floresta Nacional do Jamanxim, Novo Progresso, Pará
(Foto: Marcio Isensee e Sá - ((o))eco)

A Febraban mantém uma série de normas referentes à política socioambiental que todos os bancos filiados à entidade devem seguir desde 2014. Segundo Vasconcelos, a própria entidade faz a verificação se os bancos estão cumprindo, inclusive enviando clientes “falsos” para saber se instituições estão seguindo essas políticas. Os resultados e auditorias, porém, não são tornados públicos.

Parte do grupo da Febraban, o Banco do Brasil afirma que também estimula o combate ao desmatamento com o financiamento para a intensificação da produtividade para a pecuária. O banco argumenta que a linha de investimento ABC, voltados a sistemas de integração entre lavoura e floresta, corresponde a 41% dos desembolsos na região amazônica.
Maior financiador agrícola do país, o Banco do Brasil destinou R$ 103 bilhões para o financiamento da safra agrícola 2018/2019. Apesar de liderar o financiamento direto ao produtor rural brasileiro, o banco até hoje tem políticas tímidas no combate ao desmatamento.

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