Bolívia. Nova lei de identidade de gênero corre o risco de não ajudar as pessoas trans

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13 Junho 2016

Relatos da mídia retratam a Igreja Católica como oposta a qualquer medida para ajudar a população transexual, mas com muita atenção pode-se ver uma história diferente. Já no século XVI, um bispo e um papa protegeram uma freira guerreira que se apresentava como homem. Atualmente, os bispos da Bolívia procuram o que é melhor para todos, incluindo as pessoas transexuais.

A reportagem é de Andrés Eichmann Oehrli, publicada por Crux, 09-06-2016 2016. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Uma lei recente, que permite que as pessoas mudem de gênero e assegura que as pessoas transexuais recebam o mesmo tratamento que todas as outras ao apresentar a carteira de identidade, tem sido criticada por bispos da Bolívia, que dizem que a lei não foi suficientemente debatida e pode levar a um maior sofrimento.

"Longe de julgar ou condenar, a Igreja Católica expressa seu respeito e solidariedade para com as pessoas e famílias que sofrem por conflitos de identidade sexual de um de seus membros", disseram os bispos, acrescentando que a Igreja "rejeita todas as formas de discriminação e violência com base na identidade sexual".

No entanto, eles continuaram, "a adoção e aplicação desta lei não resolve os problemas subjacentes a esta questão".

Os relatos da declaração feitos pela mídia têm representado a Igreja como oposta a qualquer medida para ajudar as pessoas transexuais, mas sua declaração sugere uma leitura muito diferente.

Os bispos são a favor de uma legislação civil que atenda às necessidades reais das pessoas trans; daí vem a crítica a essa lei, que eles alegam "não ter sido debatida publicamente e não ter recebido o consenso necessário ou atenção popular suficiente".

Os bispos estão buscando o que é melhor para as pessoas que sofrem de transtorno de identidade de gênero, assim como fazem para tantos outros setores da população, como as vítimas do tráfico de seres humanos. Na tentativa de apoiar pastoralmente qualquer grupo de pessoas em necessidade, a Igreja se baseia em fontes consagradas pelo tempo: a Bíblia, sua própria tradição de reflexão sobre o ser humano e mais de dois mil anos de preocupação com a humanidade.

A Igreja lamenta e combate qualquer discriminação injusta, como ressalta o Catecismo da Igreja Católica. A Igreja procura - assim como os ativistas dos direitos gays - derrubar a criminalização da homossexualidade em vigência em vários países.

O Papa Francisco tem enfaticamente repudiado qualquer discriminação contra pessoas trans, seja na Igreja ou na sociedade. Uma pessoa que decidiu mudar sua aparência física - seja transgênero ou transexual - merece o mesmo respeito que qualquer outro ser humano.

Isso não é uma ideia moderna para a Igreja. O Papa Urbano VIII (em conjunto com o rei Filipe IV), aparentemente, deu forte apoio a Catalina de Erauso - conhecida como "la monja Alférez" - quatro séculos atrás.

Aos 16 anos, Catalina fugiu do convento dominicano no norte da Espanha, vestindo roupas masculinas e utilizando uma série de nomes masculinos. Ela parecia-se com um homem e até tentou uma versão do século XVII de cirurgia transexual - "secando os seios" com uma pomada secreta.

Ela acabou se tornando soldado nas Índias, lutando bravamente contra os índios araucanos no sul do Chile e sendo promovida a tenente. (Sua extraordinária autobiografia inspirou uma peça de Pérez de Montalbán, um discípulo do dramaturgo Lope de Vega.)

Depois de revelar que era na verdade uma mulher em Huamanga, Peru, ela recebeu a proteção do bispo local e em seu retorno à Europa teve uma audiência com o Papa Urbano VIII, que aparentemente concedeu-lhe permissão para usar roupas masculinas.

É sensato buscar mudanças na lei para tornar a vida mais fácil para as pessoas, mas a reforma legal não pode por si só resolver os problemas que as pessoas enfrentam em suas vidas diárias.

A identidade legal não pode ser facilmente dissociada da realidade física e a aparência - como mostrou Alférez - não determina identidade sexual. Cada célula decide se somos XX ou XY (masculino ou feminino).

O sexo não pode ser considerado como uma mero fachada e não pode ser simplesmente um objeto de escolha pessoal. O objetivo deve ser ter um corpo coerente com a identidade de gênero.

No entanto, o artigo 3º da nova lei da Bolívia afirma que o gênero não é mais do que uma "construção social de papéis, comportamentos, costumes, ideias, roupas, práticas ou características culturais para homens e mulheres".

Mas será que é possível dizer que o gênero depende exclusivamente do que a cultura e a sociedade designam para cada sexo? A lei distingue gênero de "identidade de gênero", que é "a experiência individual de gênero como a pessoa sente, vive e exerce na sociedade".

Por sua vez, ambos são distintos do conceito de sexo, que a lei descreve como uma mera "condição biológica".

A intenção da lei, pelo menos na mente dos legisladores, é ajudar uma minoria a conseguir o reconhecimento legal de sua dignidade intrínseca e tornar suas vidas mais fáceis.

Mas até que ponto essa diferenciação dos diversos aspectos do ser humano interior complicará a vida de muitas outras pessoas, que se sentirão inclinadas a se questionar desnecessariamente sobre sua identidade? Um verdadeiro debate teria permitido que legisladores considerassem os possíveis efeitos colaterais indesejados desta legislação sobre, por exemplo, os adolescentes que muitas vezes têm dúvidas sobre sua identidade.

Os bispos, em sua declaração, advertem que a lei formaliza o conceito de ideologia de gênero, que "ignora o princípio de que a determinação do sexo é constitutiva da pessoa" e "remove a complementaridade natural entre os sexos, reduzindo-a a um fator cultural".

Eles estão certos. Um debate mais amplo e mais profundo teria exposto as falhas intelectuais por trás da lei.

Uma consideração calma de argumentos de todos os lados para esclarecer as questões envolvidas não apenas teria resultado em uma melhor legislação, mas poderia ter realmente ajudado as pessoas que têm transtorno de identidade gênero.

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