Por: Cesar Sanson | 07 Julho 2015
"Tsipras e Syriza ganharam porque ousaram dizer a verdade e a verdade é que precisamos saber ousar, lutar, radicalizar a democracia: o governo grego está nesse momento misturado com a multidão e a multidão com o governo, reduzindo ao mínimo a separação entre o político e a vida dos cidadãos". O texto é assinado por Círculo da Cidadania - Rio de Janeiro, em sua página no Facebook, 06-07-2015.
Segundo o Círculo da Cidadania - Rio de Janeiro, "a política que interessa, inclusive nas instituições, é aquela constituída e continuamente reaberta pela mobilização democrática. Podemos sim praticar uma nova horizontalidade capaz de manter a representação nesse terreno. Não queremos novos partidos, ainda menos os seus sindicatos. Somos um partido dos sem-partido".
Eis o texto.
Ao dizer "não" no referendo, a multidão venceu na Grécia e driblou a chantagem terrorista que as instituições do capitalismo global na União Europeia impõem como alternativa única, fazendo de sua exceção a regra. Mas o resultado mostrou como a democracia ainda é possível e está viva. Em vez de resolver dentro de palácios, gabinetes e agências de publicidade, com suas negociatas e intimidações, o governo de Alex Tsipras resolveu levar a economia ao centro da democracia. É a política democrática como base da economia e não o inverso. A democracia é, sim, o terreno aberto das lutas, em que a coragem da verdade contrasta com qualquer descolamento entre o desejo da multidão e razões de estado.
O Syriza foi eleito em janeiro de 2015 ousando dizer a verdade sobre o que significa a "austeridade", outro nome para a imposição de cortes sociais e sacrifícios arbitrários da população. A convocação do referendo continuou essa ousadia, ao evidenciar a luta de classe que está por trás das chantagens da "alternativa única". O enfrentamento foi desmascarado: bancos, tecnocracia neoliberal e casta política cobrando de pobres, precários e todos os cidadãos uma dívida que eles não contraíram.
Existe um elemento decisivo na potência desse "não", sobretudo se olharmos a partir do Brasil. O Syriza não propôs nenhum abandono da globalização, da União Europeia ou do Euro. Mas também não caiu em nenhuma aventura isolacionista de um impossível "socialismo num país só". O elemento decisivo do Syriza foi ter levado ao plano da experimentação democrática a possibilidade de não se render à "única alternativa" e seus constrangimentos macroeconômicos, ainda que sob as roupagens da "correlação de forças" ou "governabilidade".
Uma vez convocado o referendo, a direita mas também a esquerda passaram a contar com a disseminação do medo para frear o Syriza. Haveria caos econômico, o governo cairia, aconteceria um golpe. Mas o Syriza mostra como não pode haver democracia onde vigora o medo e é por essa razão que quem não pode contar com a democracia tem que disseminar o pânico do fascismo, da falência, do "mais pior".
Tsipras se colocou à frente do "não" no referendo, atacando qualquer possibilidade de uma esfera separada da multidão para a política. Ele recusou que as negociações de gabinete e bastidor se tornassem a base para uma decisão que afetará a vida de milhões de cidadãos. Ele sabe que, nesses casos, a voz da multidão é a última a ser ouvida, prevalecendo a voz do grande capital e das máfias. Em segundo lugar, Tsipras disse que, caso o "sim" ganhasse, respeitaria a decisão, mas o Syriza perderia a razão de estar no governo e ele renunciaria. Então Tsipras e seu ministro da economia, Yanis Varoufakis, foram à praça.
Quando o Syriza ganhou as eleições em janeiro passado, alguns segmentos do PT -- por malícia ou na inércia do marketing eleitoral -- comemoraram-na comparando à vitória de Dilma em outubro de 2014. Só esqueceram de alguns detalhes: enquanto o Syriza ganhou para democratizar o poder e assim ter melhores condições de enfrentar a austeridade, o governo brasileiro se tornou ele próprio de uma brutal austeridade, dentro dos mesmos conchavos e negociatas da velha casta política. O PT está mais para o Pasok, o velho partido socialista grego que, nas últimas décadas, embora se apresentasse como de esquerda, não passou de um gestor envergonhado a serviço do governo da troika contra os direitos e conquistas da população. O Pasok fez da mentira e do medo seus instrumentos de perpetuação no poder, até se tornar insustentável.
Se o Syriza ganhou as eleições e consegue avançar graças à coragem da verdade, o PT de Lula e Dilma fez uma campanha em que a verdade que vigorou foi a construída pelo marketing eleitoral, imediatamente negada nas primeiras operações do novo governo. O Syriza ganhou dizendo a verdade porque apostou na mobilização democrática. O PT de Lula e Dilma, ao contrário, ganhou apostando no medo e numa verdade forjada por esse afeto apassivador, isto é, ganhou a eleição contra a democracia, a partir das verbas oriundas de operações corruptas, dos subsídios ao grande capital e dos megainvestimentos autoritários. E eles mentiram duas vezes: primeiro, dizendo que não havia razão de guinar a política econômica no sentido da austeridade e, segundo, que em todo caso o seu diferencial em relação aos demais candidatos é que jamais a fariam. A comida, o emprego, o “futuro” estão sumindo dos nossos pratos porque eles ganharam. Aqui quem impõe a "alternativa única" e cobra a dívida dos cidadãos não é Angela Merkel, mas Dilma Rousseff.
Enquanto o PT se comportar como uma casta mafiosa a mais no poder, estará muito distante de um governo como o do Syriza em sua democracia radicalmente transparente. Tsipras e Syriza ganharam porque ousaram dizer a verdade e a verdade é que precisamos saber ousar, lutar, radicalizar a democracia: o governo grego está nesse momento misturado com a multidão e a multidão com o governo, reduzindo ao mínimo a separação entre o político e a vida dos cidadãos. Varoufakis é o único ministro da economia na Europa que pode atravessar uma multidão recebendo mãos estendidas, beijos, abraços. Syriza hoje é a demonstração viva que a política pode ser digna e que a única esquerda que interessa está dentro dessa dignidade, e não em slogans bem intencionados ou simplesmente cínicos de "saída à esquerda".
A política que interessa, inclusive nas instituições, é aquela constituída e continuamente reaberta pela mobilização democrática. Podemos sim praticar uma nova horizontalidade capaz de manter a representação nesse terreno. Não queremos novos partidos, ainda menos os seus sindicatos. Somos um partido dos sem-partido. Como disse Célio Gari, “Não queremos correntes, mas elos entre círculos e assembleias constituintes”. Não há reforma nem da esquerda nem de sistemas financeiros, que não passe pela coragem da verdade e o desejo da multidão, na base da reinvenção democrática. O trabalho dos pobres, dos precários, da cidadania organizada é que constrói novas formas de democracia e contrapoder, uma outra moeda, a moeda das nossas cidades comuns, de nossos círculos e cirandas de mobilização cidadã.
Nós hoje aprendemos com a multidão grega. A multidão grega precisa de nós.
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Com a Multidão na Grécia e no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU