21 Mai 2015
“Há depressão, o povo está de cabeça baixa. Quando fala dos bispos, este Papa que em geral mostra grande misericórdia com todos, parece inclinado a usar a vara”. Relidas no dia seguinte, as palavras pronunciadas segunda-feira por Francisco na abertura dos trabalhos da Conferência episcopal italiana deixaram marcas profundas; e fizeram voltar a aflorar reflexões amargas. Elas têm sido vivenciadas como a confirmação de uma severidade que há meses é advertida com dor e surpresa: como se fosse a longa onda de um Conclave que em 2013 revelou uma maioria hostil a qualquer hipótese de Papado italiano e curial. O risco é o de confirmar a ideia de um Pontífice convencido que a Igreja católica se salve aprofundando o fosso com uma nomenclatura eclesiástica suspeita de estar em conluio com o poder. Por isso, por trás das frases sinceras sobre a devoção e a obediência ao “Santo Padre”, se esconde um embaraço que toca diretamente o episcopado italiano, procurando entender as coordenadas culturas de Jorge Mario Bergoglio e convicto que os últimos atormentados anos de Bento XVI, com os escândalos e as lutas internas na Roma papal, tenham sedimentado um preconceito anti-italiano difícil de arranhar.
A reportagem é de Massimo Franco, publicada no jornal Corriere della Sera, 20-05-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Mas, o mal-estar não se refere somente à CEI e ao Vaticano. Vai além das fronteiras da Itália, e atravessa outras nomenclaturas eclesiásticas: como se Francisco, o Pontífice da virada epocal, cansasse em fazer brecha nas categorias médio-altas da Igreja, a despeito dos triunfos populares. Há três números que encerram as incógnitas de seu papado: 20, 70, 10. São os percentuais com os quais é fotografado o seu apoio na Roma vaticana da parte dos homens a ele mais próximos.
Os 20 por cento, segundo as suas análises, são aqueles que estão convencidos que devem apoiá-lo: os 70 por cento abrangem uma espécie de maioria silenciosa e indiferente, que o aceita à espera de outro Pontífice; e os 10 por cento fotografa o grupo dos inimigos do papado argentino, embora talvez não declarados. São cifras que, número a mais ou a menos, repercutem na Casa Santa Marta, onde habita Francisco, na comunidade latino-americana de Roma, e na Argentina. Mas, no mar de anonimato no qual afloram críticas a Jorge Mario Bergoglio se intui uma potencial ruptura geográfica e estratégica.
Verdadeiro ou não, o Papa parece expressar um modelo de Igreja “hostil à Itália, à Europa e em geral ao Ocidente entendido como Norte do mundo”, sustenta um cardeal italiano. Com o resultado de ver crescer uma corrente aninhada na terna ambígua dos 10-70-20. Descobre-se até um início de rejeição, dos principais aspectos do pensamento de Bergoglio, como a famosa conferência de Aparecida, em 2007, na qual se afirmou a sua liderança na América Latina, e que o Papa cita com frequência. Há cardeais e bispos que jamais citam Aparecida. Sustentam que não entendem as reformas de Francisco. E advertem que o modelo Buenos Aires não pode ser aplicado a toda a Igreja. É uma experiência, objetam, mas não a experiência da Igreja. Na resistência de alguns episcopados europeus se percebe “o hábito de se sentirem quase como príncipes”, rebate um alto prelado latino-americano. Mas, semelhantes contrastes acabam por dar crédito a um conflito surdo entre duas visões de Igreja; e até por evocar a ideia de “duas Igrejas”, incapazes de dialogar, porque, em vez de se reduzirem, as distâncias entre elas ameaçam ampliar-se.
Agora é claro que após dois anos, o Papa decidiu confiar-se a uma espécie de Cúria em formato reduzido, porque não confia naquela existente; e de modificar na raiz o ‘cursus honorum’ episcopal e cardinalício, na Itália e alhures: como se as posições de crédito tivessem sido zeradas, após as demissões de Bento XVI.
Para preparar a próxima encíclica sobre a ecologia, Francisco não se serviu das estruturas curiais. Consultou, ao invés, uns duzentos estudiosos, para evitar que aquela que ele chama de auto-referencialidade vaticana. E por uma semana fez vir de Buenos Aires monsenhor Victor Manuel Fernandez, teólogo e reitor da Universidade Católica Argentina, para ajudá-lo na confecção. Em resposta, recebe uma obediência leal, mas intimidada, cautelosa. Por traz das falas sobre um Francisco “isolado” sobressai uma estrutura eclesiástica intolerante à ideia de uma relação direta entre o seu líder e as multidões do mundo, saltando de fato sobre as hierarquias tradicionais.
“Não sei quanto o Papa conseguirá guiar e governar os processos que pôs em andamento”, explicava recentemente um cardeal europeu, preocupado. “Viu-se isso com o Sínodo, que correu o risco de lhe escapar das mãos”. O temor é que atingindo de modo impetuoso os limites da Igreja, Francisco se reforce pessoalmente, mas acabe por enfraquecê-la. Mesmo se todos lhe dão razão que em dois anos de papado, a imagem das cúpulas do catolicismo mudou para melhor. Os escândalos como Vatileaks, as complicações IOR, a própria pedofilia assumiram hoje contornos menos traumáticos. Em nível internacional o ativismo está produzindo resultados vistosos, embora às vezes controversos: a Santa Sé é protagonista como não lhe acontecia há muito tempo, na Ucrânia, no Oriente Médio, em Cuba. E todos que se encontram e convivem com Francisco afirmam que não entender tudo isto é a resposta típica de quem não quer mudar nada: simplificações que provavelmente revelam antes uma frustração e não a realidade.
Não são subvalorizadas, todavia, porque se alimentam de incompreensões que o Papa, não obstante o seu carisma, não consegue superar. Quando o presidente, cardeal Angelo Bagnasco, critica o modo pelo qual são publicadas pela mídia as palavras de Francisco à CEI, como se fossem somente de censura, ele capta um problema verdadeiro. E faz entender a dificuldade de apresentar de modo objetivo uma relação marcada pela dificuldade de falar a mesma linguagem: e, complicado pelo dualismo com o secretário geral, Núncio Galantino, percebido por alguns setores da CEI como uma espécie de interventor do papa. “A Igreja italiana continua sendo, para Francisco, um problema aberto”, admite um seu amigo latino-americano.
Mas isto não é privo de consequências. O fosso entre o Pontífice do povo e a Igreja-instituição permanece. Os bispos sentem -se obscurecidos e censurados por Francisco. E apontam como um risco sua tendência de guiar a Igreja com uma espécie de “governo-sombra”. Mas talvez, se deveria perguntar se o “obscurecimento” não seja uma consequência de responsabilidades e faltas, pelo menos de alguns deles. E, quando chamam em causa o “governo sombra”, aludindo à Casa Santa Marta, mostram não ver mais como lugar-símbolo da ruptura virtuosa de Francisco com os palácios das intrigas vaticanas. Hoje, aquele albergue dentro dos Sagrados muros começa a ser olhado como um funil onde notícias e mexericos se entrecruzam de maneira quase indeslindável. “Quem está no vórtice”, se diz no Vaticano, “depois se torna vítima”. Mas, no vórtice, Francisco mostra sentir-se à vontade. Incomodados aparecem, por ora, os seus adversários.
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20-70-10. As incógnitas de um papado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU