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Por: André | 20 Abril 2015

Hoje estamos acompanhados pelo Pedro Miguel Lamet (foto, à direita), jesuíta, escritor, professor de jornalistas e também blogueiro de Religión Digital. Ele vem para nos visitar porque está publicando um novo romance, Pablo de Tarso, el Resplandor de Damasco. El apóstol de las naciones. Um romance histórico que acaba de ser publicado pela Editora La Esfera de los Libros. Vai partilhar conosco também sua visão da conjuntura vaticana, dizendo que o Papa “não tem que ser uma esfinge”, mas deve estar com o povo, como Francisco.

 
Fonte: http://bit.ly/1CPCMfE  

A entrevista é de Jesús Bastante e publicado por Religión Digital, 10-04-2015. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Por que Paulo, Pedro?

Para mim era, em primeiro lugar, um grande desafio, porque tive este projeto em mente durante muito tempo, mas demorei para criar coragem para enfrentá-lo, porque tenho uma relação difícil com Paulo. Creio que não sou o único a quem isso acontece, porque Paulo é atrativo, mas, às vezes, de tão seguro de si, é repugnante. Ao mesmo tempo, aparece como muito frágil, como um vaso de barro. Este caráter, somado ao fato de que é um personagem representado como sendo relativamente de alta classe, choca com as crenças de que era zambeta – pessoa com as pernas puxadas para fora... – e tinha uma calva muito forte; barba de bode, sobrancelhas juntas... Uma descrição que não o torna muito atraente e, no entanto, quando se vai lendo suas Cartas, descobre-se um poço de teologia.

Essas contradições são um desafio: é um homem muito discutido, na sua época e ainda hoje. Na Igreja, motivou a separação – do protestantismo e do tema da fé – e inclusive foi acusado de que, durante a Segunda Guerra Mundial, a exterminação judaica se deveu a ele, teoria totalmente rocambolesca.

Quem?

Foram teses do pós-guerra. Hoje, as ideias são as contrárias: há uma série de escritores que insistem em que Paulo nunca deixou de ser judeu.

Embora fossem cidadãos romanos, os primeiros cristãos seguiram atuando em base à tradição judaica. O próprio Jesus jamais pôde ser cristão.

Claro, vivia-se a síntese de muitas culturas. Paulo formou-se em uma cidade de cultura fundamentalmente helênica. Tarso era intelectualmente grega. Depois, conheceu perfeitamente o mundo romano, e ao mesmo tempo, entregou-se, judeu fariseu, à sua cultura judaica.

Caiu do cavalo e converteu-se no primeiro convertido da História, ou é o que costumamos dizer. Mudou seu pensamento, mas continuou tendo o mesmo temperamento, o mesmo mau humor. O que há de bom e de mau nessa conversão, nesse fulgor?

Piñero disse que não pode ser um converso porque não havia a que converter-se: o cristianismo não existia como tal. Eu creio que é um homem iluminado diretamente por Deus. A impressão mais forte que eu tive ao escrever o romance, pesquisando sobre Paulo, foi encontrar-me com um homem que é em grande parte moderno, um outsider, um homem livre, que recebe tudo por iluminação de Deus. Foi para a Arábia para refletir, e 13 anos depois fez contato com Pedro e João e o famoso irmão de Jesus, Tiago, que para mim é um personagem curiosíssimo. Quase não se falou dele e era um judeu do mais fiel, que se opôs a Paulo e chegou a mandar espiões atrás dele. Isto é correto: diz-se isso nos Atos dos Apóstolos.

Jesus o chama e ele segue esse impulso interior: realmente isso é uma conversão. Está consciente na alma e na mente. Busca diretamente o que sentiu e isso o leva adiante contra a Igreja oficial.

Aí começam as primeiras discussões sérias entre os discípulos diretos de Jesus (Pedro, Tiago, João) e Paulo, que não foi, mas é considerado um dos mais profundamente discípulos. Não é um dos Doze, mas é o grande apóstolo da Igreja primitiva. Até que ponto Paulo é imprescindível para a Igreja? Por que não foi entendido pelos mais próximos a Jesus?

O marketing da Igreja é feito por Paulo: ele é o verdadeiro fundador do cristianismo. Não propriamente da mensagem evangélica, que é Jesus, mas do cristianismo como religião. Pregou primeiro nas sinagogas, entre os judeus, mas descobriu que havia uma necessidade muito grande na sua época, a de que as religiões da época não preenchiam as pessoas. Nem Artemisa, nem os mistérios de Eleusis preencheram em Paulo nenhum vazio. Ajudou os judeus a completar a sua visão: chegou o Messias. Mas fracassou e foi ao encontro dos tementes de Deus, que eram um grupo de gente que estava se aproximando dos judeus, mas não queriam circuncidar-se, por exemplo, porque eram mal vistos entre os romanos. Claro, naquela época ia-se nu às termas e, circuncidado, todo o mundo ria de você.

As mulheres, que não tinham que se circuncidar, foram as grandes colaboradoras de Paulo. De acordo com sua época, Paulo não foi antifeminista, mas o contexto também não ajudava muito. No tempo de Paulo havia mulheres que celebravam a eucaristia, ou pelo menos o ágape. Reuniam-se como diaconisas. Creio que tudo isso fez com que Paulo tivesse muitíssimo sucesso em sua época. Com as ideais muito claras, foi fundando pouco a pouco comunidades. Sobretudo em cidades domésticas, em pequenas comunidades. Foi tendo sucesso com os pagãos: seu pensamento estendeu-se “até os confins da terra”, o que se discutiu. Eu situo o começo do romance na Espanha, quando ele se encontrava aqui.

E qual é a reação de Pedro, João e dos outros quando se encontram com um senhor alheio a eles, durante um certo tempo perseguidor de cristãos, que está propagando as ideias que eles viveram com Jesus?

Sua visão devia ser, para dar um exemplo, como a tensão que pode haver entre um João Paulo II e um Romero: admiram-no e apreciavam-no, mas, ao mesmo tempo, defrontavam-se com uma pressão judaica muito forte. Pedro, a princípio, participa de refeições que não são purificadas (a carne sem sangue e tudo isso) e pouco a pouco vai cedendo ao influxo de Tiago e outros de Jerusalém, contra a linha de Paulo. É muito interessante comparar o que disse Paulo em suas Cartas e o que dizem os Atos dos Apóstolos sobre isso, porque Paulo é muito mais duro com a Igreja de Jerusalém.

Quem ganha essa batalha? O cristianismo paulino ou a cátedra de Pedro?

Claro... Em um primeiro momento se vê que é preso na Cesareia e os judeus no Templo rechaçam-no completamente. De alguma maneira, também os Apóstolos e Paulo precisam apelar a César. Por isso, o romance é coprotagonizado por Júlio, um personagem que aparece nos Atos que é o centurião que se faz muito amigo de Paulo. Isso é histórico.

Em suma, creio que de uma forma imediata Pedro ganhou, mas de forma mediata Paulo chama a atenção. Foi rechaçado inclusive depois de morto. Há uma carta de Pedro que diz que Paulo é pouco entendido... Para mim, uma coisa que me parece muito curiosa do Evangelho em geral e de Pedro e Paulo é que escrevem de maneira completamente diferente. O Evangelho é narrativo, muito mais simples e direto, mas Paulo é pensamento teológico, norma e dogma. Mas é uma maneira de tornar inteligível para um mundo pagão a mensagem de Jesus. Nas cartas, quase não fala da vida de Jesus, e isso causa uma estranheza. As pessoas, além disso, têm uma ignorância notável sobre Paulo: não o leram e só o conhecem porque ouviram a carta sobre o casamento... Quem aprofunda, não tem essa visão amorosa de Paulo: fica perplexo. Aconteceu comigo, embora agora me sinta muito próximo dele. Porque ele faz uma síntese, efetivamente, entre estar apaixonado por Jesus e essas viagens à Grécia dos mistérios... Entre o lírico e o prático. Ele sintetiza toda a baderna que havia no entorno da religião na época; rechaça muitas normas, como a lei mosaica, e reduz tudo à fé, que leva ao amor, que tudo soluciona. É uma síntese maravilhosa.

O é, embora causasse problemas na Igreja. Você fala da surpresa de interiorizar Paulo, de investigar o personagem. Como é, em grandes linhas, o Paulo que você desenha em seu romance?

Através do que Júlio vai escrevendo, o romance vai desvelando Paulo. Este capitão centurião, que seria certamente um dos encarregados de apagar o fogo nos tempos de Nero, tem problemas com sua mulher, que é uma moça bem do mundo romano que não aceita que Júlio se reúna com os cristãos em segredo. Os cristãos tinham fama de matar crianças e de serem uns monstros. Ele recebe das catacumbas uma série de documentos, e esses rolos são as Cartas de Paulo, os Atos e outros. Faz amizade com Lucas, que vivia naquela época em Roma, e vai comparando o que vai descobrindo com o que Lucas lhe conta. A partir daí emerge aos seus olhos um Paulo que é uma pessoa muito bem formada, mas um outsider. Tem lutas consigo mesmo por sua fragilidade, mas ao mesmo tempo é um pouco metido. Essa convicção é que lhe permite lutar. Se não fores um pouco orgulhoso, muitas vezes vais recuar diante das dificuldades... Ele sofre de tudo – doenças, perseguições, cárceres, naufrágios... –, mas sobrevive pelo grande amor a Jesus Cristo. Um amor que o leva a uma enorme solidão, mas lhe dá força. Descobri que na relação com seus amigos era terno: essa carta maravilhosa a Filêmon, que salva um escravo! Foi rechaçado mesmo assim, assim como muitas outras grandes figuras. Penso na biografia de Arrupe...

Todos os grandes personagens da Igreja tiveram essa época escura de serem rechaçados ou mesmo perseguidos.

Porque são livres com sua fé.

Você falava antes de Romero, de Arrupe, a quem conhece muito, muito bem; Francisco de Assis e, de certo modo, o Papa Francisco, que, assim como Paulo, vem de fora e quer pregar às periferias... Assim como Paulo, tem caráter e busca a liberdade. Como o vê?

Exato. Eu tenho uma espécie de pressentimento de que alguma vai acontecer. Isto está provocando problemas de fundo na Igreja mais conservadora e pode acabar estourando a tensão. Para mim, foi fundamental que Francisco tenha dito que vai estar no comando da Igreja universal mais uns três anos ou um pouco mais. Ele disse isso, em primeiro lugar, para tranquilizar os que têm medo de que faça muitas mudanças e, em segundo lugar, porque creio que no fundo ele é um homem que vê claramente que as coisas podem andar, estando ele ou não. Porque está semeando uma semente irreversível. Ele está conseguindo mudar a atitude.

O que provavelmente seja muito mais importante do que mudar qualquer norma.

Claro. Está voltando a Jesus. Com suas fragilidades também – em algum momento usou mal alguma expressão –, porque é humano e se expressa como tal.

É curioso como, com este papa, estamos eliminando as mediações. As jornalísticas e as eclesiais, porque todo o mundo que escuta o Francisco sabe o que está dizendo, sem intérpretes. Não há a necessidade de ler um tratado de teologia para entendê-lo. Há personagem sem escatologia...

Como fazia Jesus... Outro dia, no entanto, em um debate na TV me diziam que Bento era um teólogo e Bergoglio não: essa espécie de visão aristocrática... Como se o papa tivesse que ser alheio às pessoas! Jesus estava ao lado do povo, aproximava-se para acariciar as crianças e dizer as verdades de uma forma inteligível: com parábolas. Este papa está criando uma nova linguagem, mas são neologismos que todos entendemos.

Compreende os que pensam que pode estar destruindo a Igreja como instituição?

Creio que na Igreja viveu-se muito da tradição. O que aconteceria, por exemplo, se o papa tirasse a guarda suíça? Haveria uma revolução na Igreja, apesar de que nenhum guarda suíço seja consubstancial ao Evangelho. Pouco a pouco, creio que este homem vai conseguir que a Igreja mude, com o C9 e a reforma da cúria, a consulta ao povo e outros detalhes magníficos.

Em breve veremos o que surgirá do novo sínodo. Depois de perscrutar a vida de Paulo, reconhecendo, além disso, que tinha reticências sobre esta figura, hoje, gosta mais dele e entende sua mensagem como necessária para a Igreja?

Muitíssimo mais. Eu creio que Paulo, além da figura “fundadora”, é uma luz que Deus Pai deu ao cristianismo depois que Jesus, na intimidade da sua terra – não saiu da Palestina – semeara o Bem. Paulo nos diz que isso vale para tudo e que é muito mais simples do que se pode imaginar – nesse momento, o judaísmo carregado de perseguições... – e também libertador. A única coisa que falta para ser cristão é crer verdadeiramente em Jesus. A mensagem do amor é libertadora e, penso, que muito atual. Que uma pessoa, livremente, siga em frente com a inspiração que teve, no fundo mística, em um mundo como o nosso, tão necessitado de mística, é algo muito bonito.

Paulo de Tarso. O resplendor de Damasco, um romance histórico imprescindível de Pedro Miguel Lamet, editado pela Editora La Esfera. Foi um prazer tão intenso quanto o personagem. Hoje, quando faz 35 anos do assassinato de dom Romero [24 de março, data da realização da entrevista], outro corajoso incompreendido, necessário para a Igreja de hoje. Muito, muito obrigado por seu livro e pela entrevista.

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