Podemos falar de inculturação do cristianismo na Ásia?

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Por: André | 26 Março 2015

O presente artigo propõe uma breve apresentação de algumas pesquisas universitárias e debates acadêmicos atuais que poderão ajudar a aprofundar e inclusive a repensar os desafios da questão da inculturação do cristianismo na Ásia. A perspectiva não é, em primeiro lugar, teológica, eclesiológica ou filosófica, mas antropológica e histórica.

Michel Chambon é um teólogo católico leigo, doutorando em Antropologia na Boston University (Estados Unidos). Suas pesquisas versam sobre o encontro e a hibridação atual entre cultura chinesa e fé cristã. Após seu mestrado sobre a crença entre os católicos de Taipei nos espíritos-fantasmas, sua pesquisa de doutorado se debruça sobre as práticas de cura entre os protestantes na China continental.

O artigo está publicado em Eglises d’Asie. Agence d’Information Missions Étrangères de Paris, 18-03-2015. A tradução é de André Langer.

 
Fonte: http://bit.ly/1HEiIoe  

Eis o artigo.

De Voltaire até hoje, a sociedade chinesa foi e permanece sendo um estimulador fundamental para o pensamento ocidental dos fatos religiosos. Foi encontrando a Ásia (particularmente a Tailândia e depois a China) que os Ocidentais passaram a nomear, conceitualizar e relativizar a sua própria tradição chamada ‘religiosa’: o cristianismo. Ainda hoje, o estudo dos fatos religiosos na China estimula a reflexão intelectual no Ocidente, renovando incessantemente a nossa própria compreensão da tradição cristã.

Este artigo propõe uma breve retrospectiva de algumas obras universitárias recentes que estudam os cristãos na China, e além. Mais do que uma descrição sociológica, essas obras testemunham os ricos debates universitários sobre o fato religioso e sublinham como conceitos, tais como ‘cristianismo’ e ‘religião’ não são evidentes dada a complexidade e a riqueza da profundidade sócio-histórica da referência a Jesus Cristo. Um distanciamento crítico sobre o que nós chamamos, um pouco apressadamente, de ‘cristianismo’ pode nos ajudar a reconsiderar a maneira como nós, muitas vezes, consideramos os debates sobre ‘o cristianismo na China’ e, ultimamente, sobre a maneira como falamos dos cristãos na China atual.

Em seu livro de 2011, A questão religiosa na China (1), Vincent Goossaert e David Palmer aliam história e antropologia para revisitar a evolução e a reconfiguração da paisagem religiosa na China de meados do século XIX até hoje. As chamadas práticas religiosas (meditação, oferendas, técnicas de longevidade, etc.), longe de terem desaparecido com o avanço das ciências modernas (física, medicina, biologia) ou de estarem centradas sobre um núcleo supostamente ‘tradicional’ e ‘autêntico’, foram incrivelmente transformadas e/ou revitalizadas.

Durante todo esse período, os múltiplos atores sociais (associações de templos, clero, legisladores, grupos de devotos, associações caritativas, etc.) não pararam de ajustar, reciclar, erradicar ou inventar práticas diversas – todas ligadas a corpos doutrinários constantemente reavaliados –, tomando emprestado, às vezes, do que hoje se convenciona chamar de medicina moderna, geomancia chinesa, adivinhação ou culto dos ancestrais.

Para David Palmer e Vincent Goossaert, esta evolução da paisagem religiosa chinesa revela uma espécie de bricolagem permanente que impede de dizer com precisão o que seria religioso ou não, ou o que seria exclusivamente ‘budista’, ‘taoísta’ ou outra coisa (quando na verdade essas categorias seriam uma realidade jurídica e institucional). Os dois autores se distinguem da paisagem intelectual atual ao se recusarem, de um lado, a reduzir os fatos religiosos a uma diversidade de práticas díspares (cada uma específica a atores religiosos particulares) e, de outro lado, a considerar os fatos religiosos como um todo que depende de si e que é transmitido por si mesmo. Com outras palavras, Vincent Goossaert e David Palmer recusam ao mesmo tempo o contextualismo (o contexto explicaria inteiramente a evolução das religiões) e o essencialismo (haveria uma suposta essência em cada religião). Finalmente, as chamadas práticas religiosas se revelam como uma questão: uma questão no plano político para o legislador que buscar enquadrar essas práticas muito heterogêneas e mutáveis; mas também uma questão no plano intelectual para definir o que pode ser a religiosidade e as tradições religiosas.

Nesse contexto de mudança da paisagem religiosa, o estudo do ‘cristianismo’ na China revela-se muito mais árduo e complexo do que parecia à primeira vista. Para se convencer disso, basta ler a obra do historiador Lian Xi, Redimido pelo fogo (2), que é um dos melhores estudos históricos sobre o cristianismo ‘indígena’ chinês. Lian Xi apresenta, com efeito, a emergência e o desenvolvimento desde o final do século XIX de diversos grupos e seitas cristãs na China (Taiping, A Igreja do Verdadeiro Jesus, A Família de Jesus, O Pequeno Rebanho, etc.).

A maioria desses grupos sobrevive até hoje; alguns são muito importantes em número e influência, outros desapareceram. Todos se referem a Jesus de Nazaré e se apresentam como ‘cristãos’ (jidujiao), mas quase todos reescrevem as Escrituras, cultivam visões apocalípticas e rejeitam a fé trinitária. Alguns são hoje reconhecidos como “protestantes” pelo Estado chinês (e alguns meios de comunicação ocidentais), ao passo que outros são combatidos como “cultos perversos”. O grande mérito do trabalho de Lian Xi é explorar com um olho ‘benevolente’ (embora ainda que questionável) esse cristianismo indígena na China, suas nuances e suas características bem locais, para mostrar como a referência a Jesus pode produzir tradições locais muito variadas. O que poderia levar a algum desdém ou silêncio por parte dos observadores estrangeiros é apresentado como ‘inculturação’ do cristianismo sem focalização sobre algumas questões teológicas. Desta forma, essa pesquisa ajuda a entrever como a noção de ‘cristianismo’ não é uma categoria acabada e pré-determinada – particularmente na China.

Outra obra recente que vem enriquecer o debate é a de Eugenio Menegon, Ancestrais, Virgens e Religiosos. (3) Publicado em 2009, esse trabalho do historiador apresenta um estudo detalhado da chegada e do desenvolvimento do catolicismo no norte da Província de Fujian, através dos missionários franciscanos e dominicanos de Manila. O objetivo do autor é participar do debate acadêmico sobre a relação entre Estado e sociedade civil na China imperial, com o caso de estudo específico do desenvolvimento do catolicismo. É apaixonante descobrir como esse último se expandiu no norte de Fujian através das elites locais, os letrados chamados ‘confucianos’, mas também por meio dos comerciantes e dos grandes proprietários de terras, e não somente através dos missionários.

Uma multidão de redes e círculos sociais muito variados apropriou-se de elementos do catolicismo espanhol – como uma espécie de capital simbólico – para renegociar sua situação social. Descobre-se que, assim como na Coreia, as elites letradas confucianas tiveram um papel fundamental para fazer do catolicismo uma religião ‘local’.

Esta pesquisa histórica sobre a inserção e transmissão de uma ‘filiação’ religiosa nova faz perceber a complexidade da sociedade civil chinesa, a diversidade de seus atores religiosos e econômicos, assim como a complexidade do Estado imperial chinês em termos de práticas administrativas e das estruturas sociais. Longe de sugerir dicotomias simplistas como Estado/sociedade ou missionários/evangelizados, este estudo ajuda a descobrir como a fé em Jesus Cristo foi um elemento entre outros para renegociar as normas e os valores da sociedade chinesa no Norte-Fujian, e ajudar, mais tarde, a China a passar de um modelo imperial àquele do Estado-nação.

Outra obra importante para enriquecer esta reflexão sobre o desenvolvimento do cristianismo na China como realidade socioeconômica complexa é o trabalho de Cao Nanlai, Construir a Jerusalém da China (4). Neste estudo antropológico de um protestantismo contemporâneo chinês, Cao apresenta como muitos ‘patrões cristãos’ da grande cidade de Wenzhou se referem às teorias de Max Weber para enfatizar como o cristianismo (protestantismo-calvinista) é um fator de desenvolvimento econômico. Suas igrejas-fábricas são dirigidas por uma equipe de investidores/co-gerentes, sobrepondo realidades da produção industrial e realidades culturais protestantes no interior da qual uma mesma comunidade de fiéis/operários se engaja.

Cao Nanlai nos faz descobrir como a cidade mais cristã da China (entre 25% e 30% da população seria cristã) desenvolveu um modelo eclesial muito específico, corporativista e empresarial, mas relativamente afastado do calvinismo holandês dos séculos XVII e XVIII. Essas estruturas eclesiais, que aliam lugar de culto e unidade de produção, são de fato evangélicas por seu estilo, fundamentalistas na sua aproximação bíblica e relativamente conservadores pelas questões sociais. Essas igrejas, muito numerosas em Wenzhou, são frequentemente massivas e vistosas, e encontram no centro de redes comerciais que vão de Paris a San Francisco, mas, curiosamente, elas não têm pastor residencial (ponto que Cao Nanlai esquece de mencionar). Da mesma forma, as questões éticas no centro da teologia de Calvino – e do argumento de Max Weber – ficam em segundo plano para esses ‘patrões cristãos’ de Wenzhou. (5)

O trabalho de Cao Nanlai também pode ser lido em sintonia com um recente debate em antropologia sobre a noção de ‘globalização’ e em paralelo com o trabalho de Brien Howell sobre os batistas das Filipinas. (6) Comprovou-se, com efeito, muito estimulante para pensar o ‘cristianismo’ como uma das religiões globais e como fator de globalização. O desafio, nesse caso, é explicitar o que se entende por globalização – num debate em que a questão é muitas vezes posta através de uma oposição implícita entre o “local” e o “global”.

Será que tornar-se cristão é uma filiação a uma identidade ‘global’ (americana?) em reação a uma identidade local? Como identidade cristã e identidade local se articulam? Diante destas questões muito importantes na Ásia, Brian Howell recusa compreender a conversão ao cristianismo (aqui batista) num esquema estático e dualista local/global. Pelo contrário, ele se aplica a demonstrar que a fé batista é utilizada pelos fiéis filipinos como meio de ‘localização’, ou seja, como esquema de pensamento para redefinir sua identidade em função de elementos ditos locais e globais – sendo nenhum ‘intangível’ e ‘explícito’ por natureza. É por sua conversão à fé batista que esses fiéis filipinos dão uma nova profundidade à sua identidade, que alguns chamariam ‘local’, em sintonia com múltiplas referências que alguns poderiam nomear ‘globais’. Com outras palavras, a fé cristã (batista) permite-lhes que se situem de outra maneira que a sociedade dominante propõe. Eles não são menos ‘locais’ ou mais ‘globais’: eles se engajam num processo dinâmico de reposicionamento de sua sociedade.

Uma última obra recente que tenta pensar o cristianismo no contexto asiático é a da historiadora Henrietta Harrison. Em A maldição do missionário (7), a autora situa-se explicitamente nas antípodas de Lian Xi e Eugenio Menegon – anteriormente citados – para denunciar uma compreensão estreita da inculturação. A ideia dominante propõe que quanto mais o cristianismo se desenvolve e se enraíza na China, mais se torna chinês. Ora, a realidade é mais sutil. Realizando uma pesquisa histórica muito ‘astuta’ que abrange um período histórico de três séculos, Henrietta Harrison faz um paralelo entre a memória local de comunidades católicas do norte da China com o que os arquivos oferecem hoje (arquivos do Vaticano e de congregações religiosas).

Ela mostra que há uma real tensão ‘hermenêutica’ entre o que dizem os católicos locais e o que dizem os arquivos. Concretamente, as práticas católicas na China (e a memória coletiva que em este feita) são mais ‘exóticas’ e ‘diferentes’ do que aquelas de seus concidadãos não católicos de hoje; ao passo que há três séculos, as formas de devoção e práticas religiosas praticadas nas igrejas católicas e nos templos chineses tinham muito mais proximidades e similaridades. Quanto mais o catolicismo perdurou na China do norte, mais se distinguiu e divergiu em relação às outras práticas religiosas locais. Para Henrietta Harrison, a distância entre os católicos chineses e a cultura religiosa local foi aumentando ao longo dos séculos. Isso não se deve, em primeiro lugar, às diretrizes ‘romanas’, clericais, ou a forças exteriores, mas a um trabalho de releitura e interpretação feito pelas próprias comunidades católicas chinesas.

Este rápido percurso através de algumas recentes pesquisas universitárias mostra como o trabalho atual de historiadores e antropólogos contribui para repensar a noção de inculturação do cristianismo na China. Termos do debate, tais como: ‘cristianismo’, ‘cultura local’, ‘sociedade civil’, ‘poder político’, prestam-se à manipulação. Ultimamente, essas pesquisas universitárias e debates acadêmicos dão prova da complexidade, da riqueza e da profundidade da vitalidade cristã numa sociedade – o que deve alimentar a reflexão teológica, eclesiológica e espiritual.

Vemos como o desenvolvimento do cristianismo na China não é somente um assunto de estatísticas ou de política – no sentido estrito do termo – assim como não é um simples assunto para a teologia ou para os clérigos. Não podemos reduzir os cristãos da China a um grupo homogêneo e claramente definido, supostamente contrário ao Estado (ele mesmo supostamente homogêneo e claramente definido), porque esse gênero de aproximação simplista não faz jus à rica realidade sócio-histórica dos crentes chineses, nem à teologia cristã do mistério da Igreja.

O objetivo desta breve retrospectiva não é, em última instância, pintar um eventual retrato-tipo dos cristãos chineses – retrato que será parcial –, nem dizer com quem se parecerá uma versão ‘inculturada’ do ‘cristianismo’ na China, mas questionar os termos do debate; termos que muitas vezes nos condenam a aporias. Antes de debater e combater sobre uma questão, devemos ousar questionar a questão e garantir a pertinência dos quadros de pensamento subjacentes ao debate. Isso é particularmente verdadeiro quando está em jogo a inculturação do cristianismo na China ou a situação dos cristãos da China.

Michel Chambon, março de 2015.

Notas:

(1) GOOSSAERT, Vincent; PALMER, David. 2011. The Religious Question in Modern China. London & Chicago. University of Chicago Press (publicado em francês em novembro de 2012 pela Éditions du CNRS sob o título La question religieuse en Chine). Para apreciar melhor a obra e o debate sobre a religião na China, podemos fazê-lo em diálogo com: 1.) YUET, Chau Adam. 2011. Religion in Contemporary China: Revitalization and Innovation. Abingdon; New York: Routledge, e 2.) YANG, Mayfair. 2008. Chinese Religiosities: Afflictions of Modernity and State Formation. Berkeley: University of California Press.

(2) LIAN, Xi. 2010. Redeemed by Fire: the Rise of Popular Christianity in Modern China. New Haven: Yale University Press.

(3) MENEGON, Eugenio. 2009. Ancestors, Virgins, & Friars: Christianity as a local religion in late Imperial China. Cambridge: Harvard University Press.

(4) CAO, Nanlai. 2011. Constructing China’s Jerusalem: Christians, Power, and Place in Contemporary Wenzhou. Stanford: Stanford University Press.

(5) Notemos que a campanha midiática atual que tem em conta a destruição de igrejas e a perseguição implícita de cristãos protestantes na China refere-se, na verdade, à destruição de igrejas em Wenzhou e região. Para além dos efeitos midiáticos ocidentais, parece que há, sobretudo, uma ação das autoridades locais dirigida contra esse tipo de templo-fábrica típico de Wenzhou.

(6) HOWELL, Brian M. 2008. Christianity in the Local Context: Southern Baptists in the Philippines. New York: Palgrave Macmillan.

(7) HARRISON, Henrietta. 2013. The Missionary’s Curse, and Other Stories from a Chinese Catholic Village. Berkeley: University of California Press.

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