Carta Aberta aos intelectuais de esquerda, a propósito do Fórum “Emancipação e Igualdade” de Buenos Aires

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Por: Jonas | 23 Março 2015

“Não é contraditório que um fórum de esquerda como se supunha, sobretudo por aqueles que foram convidados, não contasse com pelo menos um de nossos mais destacados intelectuais (da Argentina), já que todos os painelistas locais, coordenadores dos diferentes grupos de expositores, eram funcionários do Governo e não houve um só representante de nossa esquerda nacional?”, questiona a militante e socióloga Susana Merino, em uma carta aberta na qual problematiza a abordagem e o ambiente propiciado pelo Fórum “Emancipação e Igualdade”, realizado em Buenos Aires, de 12 a 14 de março de 2015.  A carta é publicada por Rebelión, 20-03-2015. A tradução é do Cepat.

Eis a carta.

Intelectuais do mundo assinaram recentemente um manifesto intitulado “Última chamada”, no qual reconhecem que estamos diante de uma mudança profunda em um modelo de consumo que está nos conduzindo ao “colapso da civilização”. No entanto, contradizendo os princípios que aparentemente sustentam a nível global, alguns deles convalidaram com sua assistência e sua palavra situações governamentais que em seus discursos aparentam responder a esse objetivo, mas que nos fatos e ao longo de décadas procedem claramente em um sentido totalmente contrário.

E estou me referindo concretamente àqueles convidados pelo Governo que participaram do Fórum intitulado “Emancipação e Igualdade”, convocado pelo Ministério da Cultura argentino, e que aconteceu entre os dias 12 e 14 do corrente mês de março, com a sala cheia, no Teatro Cervantes, um dos teatros mais belos de Buenos Aires. Figuras como Noam Chomsky, Ignacio Ramonet, Gianni Vatimo, Emir Sader, Piedad Córdoba, Leonardo Boff, entre os mais destacados, passaram pelo palco transmitindo seus conhecimentos, reflexões e experiências para um público em sua maior parte jovem, atento e entusiasmado. Porém, o verdadeiramente surpreendente é que não houve a menor possibilidade de confrontar esse conjunto de ideias que transcendem o nacional com contribuições genuínas de nossa intelectualidade vernácula, já que aqueles que participaram, em nível local e em sua maioria apenas como coordenadores, foram somente funcionários de confiança do Governo nacional. Ou seja, o pensamento argentino, o de nossa esquerda progressista, brilhou por sua ausência e foi impossível contar com uma visão genuína e direta de nossa própria problemática.

Na realidade, nada disto deveria surpreender aqueles que compartilham um país que em nenhum instante deixou de estar submetido aos interesses que não coincidem com os da maioria de seus habitantes. E que, nesta última década, fez surgir uma nova classe dominante centrada em “um esquema produtivo primário-exportador, impulsionado pelo Estado, capital transnacional e seus sócios locais, com uma profunda dependência dos mercados globais” e mais recentemente da insaciável necessidade de matérias-primas do gigante chinês. Um esquema que veio se consolidando a partir da espoliação da terra mediante a expulsão do pequeno e médio produtor e de sua ocupação pelos chamados “pools” de plantação ou agronegócios, baseados na incorporação massiva das sementes transgênicas (Monsanto) e do desmatamento massivo, cujas graves consequências se agigantam cotidianamente (chuvas fortes que já não penetram lentamente nos solos, mas que correm pelas superfícies impermeabilizadas, inundando povoados e cidades e gerando irreparáveis perdas humanas e materiais).

Tudo isto ligado à fumigação com pesticidas que já se encontram em nossos próprios alimentos e que são a causa do aumento de doenças como o câncer nos chamados “povos fumigados”, somado à irresponsável proliferação das atividades mineiras a céu aberto que contaminam o ar, o solo e a água com cianeto e sódio e sobre as quais, graças a escandalosas regalias, o Estado não exerce nenhum controle e contra as quais os habitantes das regiões envolvidas se manifestam heroicamente, apesar do permanente assédio e repressão que sofrem.

Nada disto é novidade e todos nós, cidadãos, que vemos crescer a passos gigantescos nossas vilas miséria, inseridas na própria trama do tecido urbano, sem infraestrutura de serviços, sem moradias minimamente aceitáveis, com subsídios sociais miseráveis que nada resolvem, mas apenas procuram ocultar o desemprego e a precariedade, e onde, ao contrário, prolifera a venda e o consumo de drogas (com dezenas de aeroportos clandestinos e intimidantes “narcomáfias”, assim como alguns outros países irmãos sul-americanos, cada vez mais, encurralados por este flagelo), temos conhecimento disto.

Problemas todos para os quais não existem políticas públicas, nem dotações orçamentárias que possam resolvê-los, nem planos de investimentos que gerem empregos estáveis e genuínos e que permitam, por sua vez, a iniciação e a continuidade do emprego ou que estimulem as atividades cooperativas, apoiem e fortaleçam as tão valiosas e exemplares fábricas recuperadas.

Um Governo que se negou a incentivar uma auditoria da dívida como fez Equador, no entanto, com a colaboração de especialistas argentinos e que apesar de apregoar enganosamente o desendividamento, continua aumentando nossa dívida externa, em dólares, em yuanes ou seja lá como for.

O abandono, ou o que é pior, a agressividade consentida em relação às comunidades autóctones, encurraladas pela voracidade “sojeira”, é mais uma amostra do desprezo ao qual estão submetidas essas comunidades nas regiões mais distantes do país e cujos direitos legalmente estabelecidos não são de fato reconhecidos, como qualquer um dos presentes no Fórum poderia comprovar, uma vez que a poucas quadras do Teatro Cervantes estava e ainda está instalado um acampamento de indígenas Qom aguardando ser recebidos e ouvidos por alguma autoridade nacional.

Há muitas coisas precisando de uma solução que um Governo “nacional e popular” não deveria ignorar, sem citar todas, algumas tão sérias como a investigação de fatos criminosos de enorme envergadura como foram os atentados à organização judaica AMIA e à embaixada de Israel, mantidos na impunidade há mais de 20 anos e que, recentemente, culminaram na morte de um promotor responsável pela causa que desnudou a obscura trama de relações existentes nos serviços de inteligência locais e estrangeiros e entre eles.

Poderia continuar enumerando problemas, mas aqueles que tenham verdadeiro interesse em conhecê-los não terão dificuldades de encontrar interlocutores locais verdadeiramente preocupados por situações que vem se prolongando e se agravando no tempo, sem encontrar mais do que promessas eleitorais que não apenas não se cumprem, mas que, pior ainda, são contraditórias.

Pergunto-me: como é possível que as mais destacadas figuras do trabalho filosófico-político de nosso tempo, e de ambos continentes, não estejam informadas das características demagógicas e da exacerbação do neoliberalismo em nosso país? Quem conhecendo este resumido panorama cometerá o equívoco de imaginar sequer a existência de um Governo de esquerda na Argentina? Consequentemente, acredito que a presença dos reconhecidos intelectuais que participaram dos três dias semeou entre o grande público uma grande confusão. A multidão convocada em sua totalidade pela situação aplaudiu calorosamente os representantes latino-americanos e europeus, especialmente aqueles que se referiam às conquistas sociais e econômicas de seus países, como Equador e Bolívia, porque acendiam um esperançado entusiasmo e transmitiam um falso sentido de identificação que, em nosso caso, é absolutamente ilusório e que serve apenas para os que residem em Buenos Aires ou nas proximidades do poder e que ainda gozam de certas vantagens ou privilégios.

Não é contraditório que um fórum de esquerda como se supunha, sobretudo por aqueles que foram convidados, não contasse com pelo menos um de nossos mais destacados intelectuais, já que todos os painelistas locais, coordenadores dos diferentes grupos de expositores, eram funcionários do Governo e não houve um só representante de nossa esquerda nacional?

E, por último, e o maior tópico de minha preocupação, os participantes estrangeiros (todos dos mais altos níveis) não sabiam do que se tratava? Ou é para garantir o poder, o prestígio e o reconhecimento internacional, independente de onde seja, com quem seja e de quem se beneficia, ainda que seja o neoliberalismo mais desenfadado? E pode ser que eu passe por ingênua, mas... Intriga-me e me causa dor!

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