27 Fevereiro 2015
"Desmoralizar, portanto, legal ou politicamente não importa, quem está sob suspeita, é considerado mais importante do que alcançarem-se os fins para os quais as Comissões são instaladas, pois isso diminui o poder da/o indiciada/o, do seu partido, do tudo quanto esse defende e aumenta o capital político de quem a/o acusa", escreve Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
O Poder Legislativo tem como função principal a de elaborar as leis. Esse objetivo tão óbvio como a sua própria denominação induz convencer parece frequentemente esquecido por poderosas pressões políticas de outros interesses.
As chamadas CPIs (Comissões parlamentares de inquérito) e CPMIs (Comissões mistas, aquelas integradas por representantes da Câmara e do Senado) têm proliferado de tal forma, nos últimos anos, que colocam sob suspeita a possibilidade de qualquer discussão tranqüila de projetos de lei à espera de votação, as vezes por anos a fio,como aconteceu com a PEC (projeto de emenda constitucional) do trabalho escravo.
Os trabalhos das/os representares do povo, eleitas/os para garantir o fortalecimento de direitos já conquistados, elaborar novas leis, corrigir as ultrapassadas no tempo e no espaço, ouvirem as reivindicações populares e ajuizarem sobre a conveniência de serem atendidas, passaram a dar atenção prioritária a tudo quanto a polícia investiga sobre a prática de qualquer ilícito civil ou penal praticado ou não por qualquer agente público, integrante de qualquer dos três Poderes Públicos, desde que ela/e seja adversário político.
Chama a atenção nesses conflitos ideológicos e partidários o empenho das/os denunciantes em fundamentar a conveniência de se criarem essas comissões, sob inspiração que valoriza mais o seu procedimento-meio do que o seu objetivo-fim: quem deve presidir a Comissão de inquérito, quem a integrará, qual o partido contará com o maior número de representantes na sua composição: a quem deve ou não ser confiada a relatoria; se não existe qualquer risco de as/os escolhidas/os não se encontrarem incursos ou sob suspeita de ter praticado algum ilícito da mesma ou pior espécie da investigada: que a investigação abra chance para se desgastar a moral das/os indiciadas/os e, de preferência, com uma doença contraída por contágio do seu partido, generalizando-se contra o último, o vício que provocou a criação da Comissão; garantir-se a adesão da mídia e da maior parte do eleitorado para, mesmo sem resultados concretos da investigação, ou até com a prova da inocência de quem a Comissão processa, a publicidade que a mesma atrair seja de tal ordem que os efeitos previstos para a sua criação e funcionamento sejam alcançados mesmo a um custo imoral como esse.
Assim, o que há de atenção e respeito devido à moralidade do Legislativo, à imparcialidade na direção dos trabalhos em busca da verdade do fato justificativo do inquérito, parece bem longe de aparecer com clareza, exceções raras à parte, em condutas desse tipo.
Desmoralizar, portanto, legal ou politicamente não importa, quem está sob suspeita, é considerado mais importante do que alcançarem-se os fins para os quais as Comissões são instaladas, pois isso diminui o poder da/o indiciada/o, do seu partido, do tudo quanto esse defende e aumenta o capital político de quem a/o acusa.
A Constituição Federal, entretanto, por mais genérica seja a sua principal disposição sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito, não autoriza um procedimento tão desvirtuado assim. O seu o art. Art. 58 prevê o seguinte: “O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.
§ 1º - Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa.
§ 2º - às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe:
I - discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa;
II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil;
III - convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições;
IV - receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas;
V - solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão;
VI - apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer.
§ 3º - As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
§ 4º - Durante o recesso, haverá uma Comissão representativa do Congresso Nacional, eleita por suas Casas na última sessão ordinária do período legislativo, com atribuições definidas no regimento comum, cuja composição reproduzirá, quanto possível, a proporcionalidade da representação partidária.”
Pelo que se observa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é na interpretação do parágrafo terceiro deste artigo, que as Comissões costumam extrapolar os seus poderes, considerando-se autorizadas a agir como delegacias de polícia, promotoras de justiça ou até juízas, pela circunstância de ali se referir “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.
Um artigo de doutrina, disponível na internet sob o título “Comissões parlamentares de inquérito e suas competências: política, direito e devido processo legal”, de autoria do, hoje, Ministro do Supremo, Luis Roberto Barroso sintetiza a reserva sob a qual tais poderes devem ser garantidos mas não ultrapassados:
“ O que se pretendeu (...) foi dar caráter obrigatório às determinações da comissão, ensejando providências como a condução coercitiva em caso de não comparecimento e impondo às testemunhas o dever de dizer a verdade. Mesmo nestas duas hipóteses, contudo, o que se instituiu foi o poder da comissão e o dever do particular. Não houve outorga de auto-executoriedade à comissão, que, em qualquer caso, haverá de servir-se do Judiciário.”
Para impedir-se, pois, às CPIs e CPMIs o abuso no exercício dos seus poderes, ameaçando ou violando direitos alheios, lembra o jurista um acórdão antigo do Supremo Tribunal Federal, em que foi relator o Ministro Sepulveda Pertence, no qual se lê:
"O decreto de indisponibilidade dos bens de determinada pessoa posta sob suspeição da CPI, qual o impetrante, mostra-se de todo excedente à mais larga interpretação da autoridade das CPIs: indisponibilidade de bens, ou medida similar – qual o arresto, o seqüestro ou a hipoteca judiciária – são provimentos cautelares de sentença definitiva de condenação, os quais obviamente não se confundem com os poderes instrutórios, ou de cautela sobre a prova, que se possam admitir extensíveis aos órgãos parlamentares de investigação. Não se destinando a proferir julgamento, mas apenas a reunir informações úteis ao exercício das funções do Congresso Nacional, a CPI é despida do poder de acautelar a sentença que não lhe caberá proferir. Quanto às demais provisões questionadas – a quebra dos sigilos ‘bancário, fiscal e telefônico’ – não há como negar sua natureza probatória e, pois, em princípio, sua compreensão no âmbito dos poderes de instrução do juiz, que a letra do art. 58, § 3° , da Constituição faz extensíveis às comissões parlamentares de inquérito. (...) Mas, admitida que seja a coincidência dos respectivos âmbitos, é certo que ao poder instrutório das CPIs hão de aplicar-se as mesmas limitações materiais e formais oponíveis ao poder instrutório dos órgãos judiciários. (...) Limitação relevantíssima dos poderes de decisão do juiz é a exigência de motivação, hoje, com hierarquia constitucional explícita – CF, art. 93, IX".
O povo anda na expectativa das denúncias que a Procuradoria da República vai oferecer contra pessoas integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo, com direito a foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal, por atos ilícitos ou crimes praticados contra a Petrobrás. Lá, com todos os poderes de complementação ou produção de novas provas, bem como de garantia de defesa de denunciadas/os, é de se esperar que uma expectativa dessas tenha muito mais chance de não ser frustrada do que resultaria de CPIs ou CPMIs atualmente planejadas para fazer o mesmo trabalho.
Conforme previa, aliás, o mesmo texto do Ministro Luiz Roberto: “Seria insensato retirar bens e valores integrantes do elenco secular de direitos e garantias individuais do domínio da serena imparcialidade de juízes e tribunais, e arremetê-los para a fogueira das paixões politizadas da vida parlamentar. Não se deve interpretar a vontade do constituinte contra os princípios que ele próprio elegeu. Além do Estado democrático de direito (art. 1º), é princípio fundamental da República Federativa do Brasil a separação, independência e harmonia dos Poderes. Qualquer exceção a ele deve ser vista com reserva e interpretada restritivamente.”
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As infidelidades das CPIs à Constituição Federal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU