Meu irmão homossexual

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Por: André | 13 Fevereiro 2015

Como revelam seus diários espirituais, o cardeal Jean Daniélou tomava para si os pecados do seu amadíssimo irmão Alain, para salvar sua alma. A lição de vida de um dos maiores teólogos do século XX.

 
Fonte: http://bit.ly/17pmTFq  

A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio italiano Chiesa, 12-02-2015. A tradução é de André Langer.

Enquanto no Vaticano os cardeais reunidos em consistório se dedicam a reformar a cúria, a pouca distância dali, na outra margem do rio Tiber, um cenáculo de qualificados estudiosos se apaixona por um tema certamente muito mais crítico sobre o presente e o futuro da Igreja e da humanidade: o mistério da história.

Para ser mais exato, o mistério da história visto por Jean Daniélou e Joseph Ratzinger.

Patrocinadas pela Fundação Joseph Ratzinger-Bento XVI e acolhidas na Pontifícia Universidade de Santa Cruz, as jornadas de estudo foram abertas nesta quinta-feira dia 12, à tarde, e terminam no final da tarde desta sexta-feira.

É a segunda vez que a universidade romana da Opus Dei procura jogar luz sobre esse grande teólogo, patrólogo e liturgista que foi Daniélou, jesuíta e cardeal, injustamente mergulhado nas sombras após sua morte, em 1974, ocorrida na casa de uma prostituta parisiense que ele ajudava em segredo.

A primeira vez foi em maio de 2012 e o sítio Chiesa informou com um artigo.

Desta vez Daniélou encontra-se ao lado de Ratzinger. E com razão, porque ambos estão entre os pouquíssimos grandes teólogos católicos do século XX que elaboraram uma visão da história autenticamente bíblica e cristã: uma história não governada pelo acaso, nem pela necessidade, mas repleta das “magnalia Dei”, as ações grandiosas de Deus, uma mais assombrosa que a outra. Basta ler, para ser conquistado, essa obra prima que Daniélou dedicou expressamente a este tema: “Ensaio sobre o mistério da história”.

Tanto Ratzinger como Daniélou têm suas características originais. O primeiro lê a história seguindo a pegada da Cidade de Deus, de Agostinho, e, depois, de São Boaventura; o segundo é mais sensível a esse genial Padre da Igreja que foi Gregório de Nissa.

No entanto, ambos têm em comum um elemento vital: “mesmo sendo grandes intelectuais e homens de universidade, entregaram-se com devoção, obediência a Cristo, pela Igreja e pelos homens”, disse ao Zenit um dos promotores do congresso, Giulio Maspero, professor de teologia dogmática da Universidade de Santa Cruz.

Os Carnets spirituels de Daniélou, seus diários espirituais, publicados 20 anos após a sua morte, levantaram o véu sobre seu espírito e suas obras escondidas, assim como também o fez Le chemin du labyrinthe, a autobiografia de seu irmão Alain, homossexual, convertido a um hinduísmo de marca erótica e companheiro de vida do fotógrafo suíço Raymond Burnier.

Jonah Lynch, da Pontifícia Universidade Gregoriana, também promotor e relator do congresso, disse a este respeito: “Dos diários, são comovedoras as páginas em quem Jean Daniélou oferece a própria vida pela salvação do seu irmão homossexual Alain, enquanto que esse, por sua vez, no Le chemin du labyrinthe rende homenagem a Jean e ao seu amor sincero, embora não compartilhe das suas posições. Vê-se resplandecer na vida do cardeal um enfoque ‘pastoral’ e delicado, um genuíno amor evangélico, tão na moda agora, mas junto ao elevadíssimo preço que este amor exige. Em Jean Daniélou o amor aos afastados não era um mero adorno, mas uma realidade que valia inclusive o martírio”.

A partir de 1943, junto com o grande estudioso do islã Louis Massignon, Daniélou celebrou todos os meses, com a maior discrição, uma missa pelos homossexuais, “por sua salvação”. Confirma-o a sobrinha neta Emmanuelle de Boysson em seu livro dedicado aos dois irmãos Le Cardinal et l’Hindouiste.

Mas também escreve sobre isso o seu próprio irmão Alain em sua autobiografia, da qual vale a pena reler esta página:

Jean sempre teve comigo uma amabilidade perfeita. Durante toda a sua vida sentiu remorsos pelo modo como a família me havia tratado e deixado sem apoio. Dizia-o muitas vezes a amigos comuns. Quando meu amigo Raymond morreu confiou a Pierre Gaxotte, nos corredores da Academia da França, que sentia uma grande tristeza pensando no quanto eu devia estar afetado.

Ser nomeado cardeal foi para Jean uma libertação. Estava finalmente livre da constrição jesuítica da qual, estou certo, sofreu. Os últimos anos da sua vida foram os mais felizes.

Sua morte e o escândalo que esta provocou, pois ele já era uma das maiores figuras da Igreja, foi uma espécie de vergonha póstuma, um dos favores feitos pelos deuses aos que amam. Se tivesse morrido alguns instantes antes ou depois, ou se tivesse em visita a uma senhora do distrito 16 (distrito residencial luxuoso de Paris, ndt) com o pretexto de obras de beneficência, em vez de levar os ganhos com seus escritos teológicos a uma pobre mulher necessitada, não teria havido nenhum escândalo.

Desde sempre, Jean se dedicou às pessoas mal vistas. Durante algum tempo celebrou uma missa pelos homossexuais. Ele tentava ajudar os presos, os criminosos, os jovens em dificuldades, as prostitutas. Admirei profundamente este final de vida, similar à dos mártires, cujo perfume sobe ao céu entre a abominação e o sarcasmo da multidão.

Morreu como morrem os verdadeiros santos, na ignomínia, entre risos e desprezos de uma sociedade ressentida e vil. Nos últimos anos da vida do meu irmão eu morava perto de Roma e era, do ponto de vista de pessoas da Igreja, um apóstata de certa importância. Havia quem nos confundisse e alguns críticos inclusive chegaram a atribuir ao meu irmão o meu livro L’Érotisme divinisé, dizendo: ‘Já sabemos a liberdade de espírito que os jesuítas têm, mas...’. Meu irmão encarregou-se de demonstrar que o escândalo não era ocasionado por nossas crenças ou por nossos atos, mas pela ironia dos deuses, que zombam deste tropel de regras de vida e das chamadas ‘verdades em que se deve crer’, cuja paternidade os homens atribuem a si.”

Também nos diários espirituais do teólogo e cardeal Jean Daniélou aflora a ânsia pela salvação da alma de seu amadíssimo irmão homossexual. Como quando recorda, por exemplo, seu próprio desejo de ir como missionário para a China:

“Os motivos do meu desejo de ir para a China devem ser buscados no zelo pela salvação das almas, objeto da minha vocação. A vida de um jesuíta está completa apenas quando participa da Paixão de Nosso Senhor e também da sua vida pública. Sei que em nenhuma parte Nosso Senhor rechaça esta participação a quem a pede; mas, temo relaxar neste desejo. Nas missões, há uma dose quase certa de privações, de desilusões, de perigos, talvez a morte, talvez o martírio. Além destes motivos, sei que tenho uma capacidade de adaptação que me ajudaria a tornar-me chinês com os chineses; que a vida de missionário oferece mais ocasiões para fazer as obras de misericórdia corporal do que na França; que considerarei que minha vida não teria sido inútil se, por causa dela, a alma de Alain será salva e que não conheço a medida da imolação que Deus deseja para mim por isto”.

Em outra página dos Carnets spirituels, meditando sobre a paixão de Jesus no Horto das Oliveiras, chega a desejar poder assumir sobre si o peso dos “pecados” de Alain e de qualquer outra pessoa:

Jesus, entendi que não queres que eu distinga meus pecados dos outros pecados do mundo, mas que eu entre mais profundamente em teu coração e me considere responsável pelos pecados das pessoas que tu desejas: os de Alain, os de qualquer outro que tu queiras. Fazes-me sentir, Jesus, que eu devo descer mais ainda e tomar sobre mim os pecados dos outros, aceitar, por conseguinte, todos os castigos que eles atrairão sobre mim por causa da tua justiça e, de maneira particular, o desprezo das pessoas pelas quais me oferecerei a mim mesmo. Aceitar, inclusive desejar, ser desonrado mesmo aos olhos de quem amo. Aceitar as grandes infâmias, das quais não sou digno, para estar preparado e aceitar, pelo menos, as pequenas. Então, Jesus, minha caridade se assemelhará um pouco mais àquela com que me amaste.”

E sempre em perfeita alegria: “Viver da fé, do que o que tenho mais claro é que ela é incompreensível. Ter um humor franciscano, mortificado e alegre, travesso e místico, totalmente pobre. Admirar o humor com que o padre de Ars tratava a si mesmo para fugir de qualquer vaidade. Tomar como cômico todo o lado vaidoso da minha vida”.

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No sínodo de outubro passado, a questão da homossexualidade foi uma das mais discutidas, como explica este artigo do Chiesa, com uma intervenção do professor Martin Rhonheimer, da Pontifícia Universidade de Santa Cruz, sobre a posição do magistério e da teologia moral católica na matéria.

O arcebispo argentino Víctor Manuel Fernández, reitor da Universidade Católica de Buenos Aires e amigo e confidente do Papa Francisco, comentou dessa maneira o resultado da discussão sinodal sobre a homossexualidade, um resultado que deixou a ele, e outros, “não satisfeitos com o pouco que se disse” no documento final: “Provavelmente, faltou-nos a vontade de dizer com o Papa Francisco: ‘Quem somos nós para julgar os gays?’”

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Sempre sobre esta questão, observaremos que no próximo dia 18 de fevereiro, Quarta-feira de Cinzas, estará na Praça de São Pedro, com um grupo de homossexuais católicos dos Estados Unidos, Jeannine Gramick, a religiosa de Notre Dame. Ela, junto com o também estadunidense Robert Nugent, religioso salvatoriano, foram objeto, em 1999, de uma notificação da Congregação para a Doutrina da Fé – da qual Joseph Ratzinger era cardeal prefeito – que proíbe a ambos exercer “atividade pastoral a favor das pessoas homossexuais”, pois “os erros e as ambiguidades” encontrados neles no que diz respeito ao ensinamento da Igreja católica na matéria “não são coerentes com uma atitude cristã de verdadeiro respeito e compaixão” por estas pessoas. A irmã Gramick escreveu ao Papa Francisco solicitando ser recebida.

Nota da IHU On-line:

A notificação da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a Irmã Jeannine Gramick, SSND, e o padre Robert Nugent, SDS, assinada por Joseph Ratzinger, prefeito, e Tarcísio Bertone, SDB, arcebispo emérito de Vercelli, secretário, com a data de 31 de maio de 1999, e aprovada por João Paulo II, pode ser lida, na íntegra, em espanhol, clicando aqui.

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