O México é cético em relação a um Estado dominado

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Por: André | 19 Novembro 2014

O desaparecimento forçado dos 43 estudantes normalistas pôs em evidência a crise atravessada pelo Estado mexicano. O fracasso das autoridades para localizar os jovens e o conluio entre o crime organizado e as diferentes instâncias de governo no caso acentuaram o descrédito generalizado da população em relação às instituições públicas. “O Estado ficou desacreditado diante deste massacre, porque havia sinais claros, pelo menos desde há um ano, de que Iguala era um foco de violência e de que havia um governo paralelo. O próprio prefeito agora preso, José Luis Abarca, executou uma liderança social há um ano. Na verdade, foi aberta uma averiguação prévia, mas a Procuradoria Federal não investigou o caso. Diante das evidências, as três instâncias de governo – municipal, estadual e federal – não fizeram nada”, garantiu, em conversa telefônica com o Página/12, Carlos Illades Aguiar, historiador da Universidade Autónoma Metropolitana (UAM) e autor de Breve história de Guerrero.

 
Fonte: http://bit.ly/1ykKsXc  

A reportagem é de Patricio Porta e publicada no jornal argentino Página/12, 17-11-2014. A tradução é de André Langer.

O ceticismo diante da reação dos funcionários é tal que os pais dos estudantes não aceitam a versão do procurador-geral, Jesús Murillo Karam: que os policiais de Iguala e Cocula (Guerrero) entregaram os jovens ao grupo criminoso Guerreros Unidos para serem assassinados. “O Estado federal está ultrapassado, está agindo em diferentes regiões do país, em Michoacán, em Guerrero, em Tamaulipas. Não tem a capacidade militar nem institucional para enfrentar estes problemas. Por outro lado, diferentes instâncias do Estado e do governo estão parcialmente dominados pelo crime e pela economia criminosa. Trata-se de inaptidão, de incapacidade e, ao mesmo tempo, de conivência”, explicou o acadêmico mexicano.

“Está comprovada a participação da polícia local, embora não saibamos até que ponto outras forças do Estado participaram. Mas, não é só o Estado, mas este associado ao crime organizado. Essa é uma razão importante da reação”, acrescentou Illades Aguiar, que assinalou que o que deu notoriedade ao massacre de Iguala foi a ação dos corpos de segurança do Estado.

Assim que os fatos vieram à tona, a indignação transformou-se em sentimento nacional. Apesar de que a violência constitui um pano de fundo no México, os níveis de impunidade em torno do ocorrido em Iguala sacudiram a sociedade. “O presidente Enrique Peña Nieto não articulou uma estratégia diferente da de Felipe Calderón. Ele simplesmente baixou o tom nos meios de comunicação na questão da guerra e do enfrentamento com as quadrilhas. Desde que assumiu a presidência, Peña Nieto está mais preocupado com as chamadas reformas estruturais, em particular a energética. Praticamente apagou das telas e dos meios de comunicação o conflito com o crime organizado, sobretudo as chacinas. Por isso, surpreende mais o que ocorreu em Iguala”, avaliou Illades Aguiar.

Neste ponto há uma concordância com Ariel Rodríguez Kuri, professor investigador no Centro de Estudos Históricos do Colégio do México: “O governo de Peña Nieto confiou em que transferir a nota vermelha das primeiras páginas dos meios de comunicação seria suficiente para baixar a tensão social e política em relação ao crime. De fato, o governo não tem uma doutrina de segurança nacional, nem tampouco, propriamente falando, uma doutrina militar, como também não a teve Calderón. Confiaram na sua astúcia, mas não na criação de políticas de Estado”, disse a este jornal.

De acordo com a sua análise, a resposta dos mexicanos ao desaparecimento dos 43 jovens se deve ao fato de que a “normalização” de situações extremas tem um limite. “Talvez fosse excessivo falar de normalização da violência na sociedade mexicana. Talvez se trate de um estado de choque coletivo que diminui as respostas mais conscientes, inibe-as e posterga-as, mas na realidade não as anula nem as suprime”, arriscou.

No entanto, Rodríguez Kuri disse que outra explicação seria a combinação dos atores que intervieram no caso. “Estudantes, policiais, prefeitos, partidos políticos e criminosos como agentes ativos. Governo federal, estadual, exército como atores omissos. Com isto quero dizer que a reação diante da violência e do crime tendia a ser postergada pela dicotomia posta em voga por Calderón e pelos meios de comunicação entre os bons de um lado e os maus do outro. Ayotzinapa mostra um dos cenários mais execráveis que a sociedade pode enfrentar: a zona cinzenta, a extensa zona de transição entre a delinquência mais brutal e descarada, e a utopia de uma sociedade boa e pacífica”, assinalou.

“Mesmo que leve tempo para reconhecê-lo, a indignação da sociedade mexicana é uma resposta necessária não apenas diante da autoridade política, mas diante de si mesma, por aquilo que evitou, perdoou, omitiu, deixou passar. E é preciso sublinhar o seguinte: os delinquentes não vêm de Marte; foram produzidos pela própria sociedade”, destacou o pesquisador do Colégio do México.

Neste sentido, a falta de determinação das autoridades poderia prejudicar o desenvolvimento do país. “Um exemplo ilustra essa improvisação, que raia a irresponsabilidade: a reforma energética. Isso acontece porque o México terá novos e poderosíssimos players operando no território nacional em zonas afastadas. Um grande tubarão petroleiro transnacional estaria disposto a fazer um pacto com os maus da região para que o deixem explorar suas faixas de concessão? Imaginemos um Abarca em escala petroleira, governando um estado petroleiro rico no México. Impossível? A proposta de reforma energética de Peña Nieto nem sequer utilizou o termo segurança nacional quando ele propôs a reforma constitucional. É como se o impacto midiático da reforma fizesse inútil ou redundante qualquer política que previsse cenários de risco para a segurança. Peña Nieto é um tigre de papel quanto ao dever de todo estadista: antecipar, prever cenários de risco para os seus cidadãos”, advertiu Rodríguez Kuri, que, além disso, indicou que “há marketing, mas não há estratégia”.

Enquanto isso, Illades Aguiar recordou que o recrudescimento da violência começou durante o governo de Calderón (2006-2012), quando seu governo lançou a chamada “guerra” contra o narcotráfico. “Quando Calderón fez sua campanha para a presidência, nunca falou de uma guerra. Nem sequer falou do crime organizado. Uma semana depois de ter sido empossado presidente, declarou de fato uma guerra que não estava prevista, nem sugerida. Em segundo lugar, nunca pediu autorização ao Congresso, nem definiu os alcances. Um presidente conservador como Calderón viu na militarização do país uma saída para uma sociedade bastante sublevada e diante de um candidato opositor (Andrés Manuel López Obrador) que não reconheceu sua vitória. Mas o problema da guerra está em como a propôs”, apontou o especialista da UAM.

“Nunca calculou os custos e também não identificou tão claramente o inimigo. Como bom católico reacionário, interpretou isto como uma cruzada, como uma guerra justa entre os bons e os maus. A estratégia de Calderón dirigiu-se para acabar com as cabeças dos cartéis do narcotráfico. Mas ao conseguir isso, algo que Peña Nieto depois continuou, esses grupos não desapareceram, mas se fragmentaram. E ao se fragmentarem, começaram a invadir outras zonas. Houve um processo de fragmentação e expansão no território nacional. É uma guerra precipitada, sem apoios e sem consensos. O que temos em Iguala é em parte a consequência dessa guerra colocada nesses termos”, prosseguiu Illades Aguiar.

O atual secretário de Governo (Ministro do Interior), Miguel Angel Osorio Chong, reconheceu poucos meses depois que Peña Nieto assumiu, em 2012, que 70.000 mexicanos haviam morrido em consequência da “guerra” contra o narcotráfico empreendida pelo Calderón. O número poderia ser inclusive maior.

Outro fator que explica a chacina de Iguala é o componente autoritário do Estado mexicano. “O México não teve uma ditadura militar, mas um Estado autoritário, não acostumado a prestar contas. Antes de 2000, o PRI manteve a hegemonia durante 70 anos. Um regime sustentado no apoio popular, mas também na repressão quando fosse necessário. No México, embora sem ponto de comparação com a América do Sul, também houve uma guerra suja. Na década de 1960, mas sobretudo no começo dos anos 1970, houve em Guerrero duas guerrilhas rurais importantes que o exército combateu. Há uma matriz autoritária no Estado mexicano. Isso deu um aspecto mais violento à relação entre o Estado e a sociedade. Apesar da alternância, não houve transição no Estado, não houve transformação. Ainda perduram os velhos esquemas e padrões. Quando o PRI deixou o governo federal, em 2000, estava menos exposto ao olhar público do que hoje”, destacou Illades Aguiar.

Mesmo assim, indicou que o crime organizado encontrou em muitos governos locais e estaduais sócios dispostos a negociar. “O sistema de dominação política no México, em particular em nível municipal, está muito ancorado na figura dos “cacicazgos” – que administram recursos e mobilizam as pessoas para votarem ou para participarem um ato público –, que agora negociaram a nível local com o crime organizado. Em várias regiões do país, a presença do crime potenciou estes “cacicazgos”, porque já administram muito mais recursos e têm mais poder. A política local e nacional ficou muito mais cara quanto às exigências das campanhas. Então, torna-se mais atrativo conseguir recursos da economia do crime. Estas velhas estruturas se misturaram com o crime organizado”, observou.

Iguala é a entrada à zona da Sierra em Guerrero, onde há plantações de papoula muito importantes. O México é o principal produtor de papoula da América e Guerrero é o principal produtor de papoula do México. “É uma zona delicada e não se tomou nenhuma medida especial, nenhuma estratégia de contenção do crime e dos danos que pudesse provocar à sociedade”, questionou Illades Aguiar. “O México entrou em um processo de globalização muito forte nos últimos 25 anos. Foram abertos os mercados e as fronteiras, o que deu uma oportunidade muito grande para a exportação de drogas. Tendo uma fronteira de três mil quilômetros com o principal consumidor de drogas do mundo, era impensável que o México não se orientasse nessa direção. Os Estados Unidos transferiram sua guerra contra o crime organizado. Essa guerra está ocorrendo agora no México”, concluiu.

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