Rumo à inclusão global de LGBTs dentro das comunidades católicas

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15 Outubro 2014

"Muitas autoridades religiosas em diferentes países tentam se esconder atrás da afirmação de que 'ao defenderem o casamento' não estariam fazendo ou dizendo algo sobre ou contra os gays e lésbicas", escreve James Alison, que escreveu o livro “Jesus the Forgiving Victim: Listening for the Unheard Voice”, entre outros, em artigo publicado pelo sítio da revista jesuíta America, 08-10-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis o artigo.

O que se segue foi apresentado por James Alison no congresso internacional “The Ways of Love” sobre o trabalho pastoral junto à comunidade homoafetiva realizado em Roma, no dia 3 de outubro de 2014, antes do Sínodo dos Bispos sobre a família.

Gostaria de pedir-lhes que se juntem a mim para nos imaginarmos participando de uma cena familiar das Escrituras. Esta cena se encontra no Livro de Atos 10, mas será imaginada a partir de uma distância pequena: ela se reporta a aproximadamente uma semana dos eventos que serão descritos. Estamos na casa de centurião romano Cornélio, em Cesareia. Talvez sejamos membros de uma família, talvez servos ou escravos. Junto de Cornélio, há muito nos acostumamos a ser cidadãos de segunda classe na casa de Deus. Quando acompanhamos o nosso mestre na sinagoga, somos chamados de “tementes a Deus” e a nós é permitido participar e seguir o culto a partir de um espaço cuidadosamente separado. Isso é assim porque, embora saibamos que o único Deus de Israel seja o verdadeiro e seguimos, com atenção, os pregadores de Moisés, nós não nos convertemos por completo. Então, não somos circuncisados se formos mulheres, nem participamos do jugo pleno da lei de Moisés com as suas observâncias e mandamentos.

Participamos, assim, cientes de que somos considerados impuros, que não devemos ser tocados. Frequentemente somos tratados com respeito e mesmo com simpatia genuína pelos que estão dentro da sinagoga se encontram, embora isto seja tingido invariavelmente com uma certa distância e condescendência.

Na semana passada, porém, algo estranho aconteceu. Cornélio enviou três de nós para Jope a fim de que chamássemos Pedro para nos visitar. Pedro aceitou o convite, e na verdade entrou em nossa casa, o que constituía, em si, uma raridade, visto que ele era um servo dedicado, e não um gentil como nós. Não foi engano algum: ele estava bastante ciente sobre o caso, dizendo-nos claramente que, muito embora seja sabido ser ilegal “para um judeu se associar a um gentil ou visitá-lo”, havia se convencido de que “Deus me mostrou que eu não deveria chamar as pessoas de profanas ou imundas”.

Ao ser convidado por Cornélio a falar, Pedro começou dizendo a nós que ele verdadeiramente compreendeu que “Deus não demonstra parcialidade, mas que todo aquele que o teme e faz o que é certo é aceitável para si”. Em seguida, falou-nos sobre uma mensagem de paz que havia enviado a Israel, mensagem da qual tínhamos, de fato, ouvido alguns relatos antes. Esta mensagem fora enviada através de alguém chamado Jesus, o Ungido. Descobriu-se que Pedro era amigo deste tal Jesus de Nazaré, que tinha sido um profeta cheio de obras de poder. Este homem fora condenado à morte como um blasfemador sedicioso, como se estivesse sob maldição de Deus. Mas Deus, ao ressuscitar Jesus da morte, mostrou que a assim-chamada maldição, da qual todos nós ouvimos e lemos na Torá de Moisés, não tinha nada a ver com Ele. E Jesus tem sido visto, desde então, por muitas das pessoas que o acompanharam antes. Na verdade, ele comeu e bebeu junto destas pessoas. Ficou-se claro que ele era a realização há muito esperada de uma série de profecias, muito embora ele as realizou de tal forma que ninguém poderia imaginar. Tendo sido tratado pelos seguidores da religião como alguém digno de condenação, descobriu-se que ele, na verdade, estava agindo com a inteira aprovação de Deus. Nesse sentido, por sua justificação, ele desfez grande parte da forma de se compreender Deus entre os religiosos de seu povo.

Bem, na verdade não esteve claro que Pedro havia compreendido por completo a parte em que ele mencionava que Deus não mostrara parcialidade, visto que parecia pensar estar nos falando, ao menos inicialmente, algo sobre Israel. E, com certeza, as pessoas que ele trouxe junto de si não haviam entendido mesmo. No entanto, na medida em que Pedro falava, todos nós nos encontramos dentro de um grande movimento do Espírito, louvando a Deus e falando línguas estranhas. Todos ficamos espantados, especialmente os que vieram junto de Pedro, dado que eles haviam visto isso antes, mas entre os circuncisados. Eles simplesmente não acreditavam que o mesmo estava acontecendo entre nós, cidadãos de segunda classe.

Na medida em que a cena se desenvolvia, ficava claro que aquilo dito por Pedro sobre Deus não mostrar parcialidade entre as pessoas, e de Deus dizendo a ele para não chamar ninguém de impuro ou profano, era de fato verdadeiro, muito mais do que o próprio Pedro pareceu compreender num primeiro momento. Nós estávamos nos vendo no lado de dentro deste movimento do Espírito da mesma forma que ele e outros estavam, e absolutamente nos mesmos termos de igualdade, sem qualquer distinção. O que mais nos surpreendeu foi como esta situação levou, em seguida, Pedro a falar a seus colegas que nos batizassem.

Já tínhamos ouvido um pouco sobre este sintoma: alguns entre os circuncisados se encontraram participando numa espécie de envolvimento com a vida e a morte de Jesus. Descobriram-se encorajados a serem filhos e filhas de Deus, tornando-se parte de um povo sacerdotal que Jesus inaugurou em sua vida e morte: um povo sacerdotal que era, na verdade, a realização daquilo que Israel fora chamado a ser. E Pedro, lá na casa de nosso mestre, de repente reconheceu que a substância de que se tratava o batismo tinha se manifestado claramente entre nós, que éramos os gentios. Como, então, ele poderia manter afastado de nós o sinal? Portanto, disse a seus companheiros que nos batizassem em água. E ficamos surpresos ao ver-nos partícipes na vida de Deus, partícipes na santidade de Deus, sem qualquer distinção baseada na compreensão de Pedro, ou nossa mesmo, sobre o que é necessário para ser um partícipe na vida de Deus.

Bem, cada um de nós estava chocado com o outro que estava próximo: os cidadãos de primeira classe descobrindo-se no mesmo nível que nós, sem toda a pureza deles e com o sentido de separação desfeito, e ainda precisando superar certa repugnância no lidar com pessoas como nós; e os cidadãos de segunda classe precisando se acostumar a levar a si mesmos a sério e a se comportarem como filhos e filhas, em vez de filhos servos obscenos que tivessem uma espécie de desculpa internalizada em si para a impureza.

Como podemos imaginar, esta notícia começou a se espalhar muito rapidamente. Alguns dos amigos e colegas mais conscienciosos de Pedro ficaram um tanto irritados e pensaram que Pedro, que tinha a reputação de ser impetuoso, estava sendo, nalgum sentido, frívolo ou barato ao agir da forma como agia. Assim, Pedro precisou se explicar em Jerusalém. Felizmente, ele não cedeu, muito embora havia uma grande pressão sobre ele para voltar atrás e pedir desculpas pelo que ele tinha feito (salvando, assim, a cara daqueles que realmente precisavam, aí, serem pessoas como nós, de forma que se sentissem especiais). Na verdade, Pedro disse a todos de forma bem clara: “O Espírito me disse para ir junto deles e não fazer distinção entre eles e nós.” Pedro também descreveu como o Espírito Santo caiu sobre nós enquanto falava, e como percebera que “se Deus lhes deu o mesmo dom que deu a nós quando acreditamos no Senhor Jesus Cristo, quem seria eu para levantar obstáculos a Deus?” Isso foi o motivo para se começar a ponderar e, pouco a pouco, começou-se a perceber que até mesmo nós poderíamos estar incluídos no mesmo dom de perdão que eles, com a vida que flui a partir dele.

Ora, isso aconteceu há alguns anos... nós ainda estamos esperando para ver quais serão as consequências, como será para nós sermos partícipes na Casa do Senhor, filhos e filhas com dignidade igual, todos participando num sacerdócio cujo único requisito de pureza é a do coração. Será interessante ver: Eles irão derrubar suas regras ritualísticas de alimentação por nós? O que eles pensarão de nós por não precisarmos ser circuncisados, não tendo que aceitar todos os mandamentos que constitui o código de pureza deles? E o que faremos da liberdade de nos considerar cidadãos de primeira classe, partícipes, filhos e filhas, e não servos ou estrangeiros na vida de Deus? Qual será a forma de santidade que está vindo sobre nós?

Penso que este relato nos dá uma ideia de onde nos encontramos enquanto católicos LGBTs no presente momento, e eu gostaria de desenvolver com vocês quatro pontos que se seguem a partir daqui.

Uma questão de cristianismo básico

Em primeiro lugar, devido ao que temos sido ao longo dos últimos anos como católicos LGBTs, ficou cada vez mais claro para nós do que se tratava, realmente, as consequências decorrentes da morte e ressureição de Jesus. Jesus em seu ensinamento e por seus sinais poderosos deu testemunha de Deus, que não tinha nada a ver com um tal código de pureza, sem tolerância para quaisquer exercícios religiosos. Ele, no entanto, teve um grande interesse por aqueles considerados inaceitáveis pela sociedade de seu tempo. Por fim, foi considerado blasfemo e subversivo por uma confluência das autoridades religiosas e civis, sendo então morto. O seu assassinato foi feito de tal forma que fosse oficialmente considerado como tendo vivido sob maldição divina.

A sua ressureição foi muito mais do que a demonstração da existência de uma vida após a morte, algo que, em todo caso, muitos de seus contemporâneos já acreditavam. A sua ressureição foi a justificação do alto de que toda a estrutura religiosa e política que tinha sentenciado-o à morte estava sob o juízo de Deus. Noutras palavras, foi a justificação de que ele, Jesus, que tinha parecido ser – para todos os efeitos – transgressor blasfemo e subversivo, estava dizendo a verdade sobre quem é Deus em seu ensinamento. Isso significa que absolutamente qualquer um, de qualquer país sob o sol, que possa perceber ter estado envolvido com algum tipo de construção falsa e violenta da bondade e maldade a que Jesus deu um fim tem condições de ser perdoado por isso, e portanto pode entrar e participar na vida do Deus Vivo sem qualquer marca distintiva especial.

É por isso que não existe, falando formalmente, nenhuma legislação religiosa cristã. A Imagem de Si mesmo que Deus nos deu em Jesus não foi aquela do Legislador, mas a da Vítima tanto dos legisladores civis quanto dos religiosos que se sacrifica. Dada esta autodefinição de Deus, nenhuma definição das pessoas derivada de fora de quem elas são, e que poderia classificá-las em puras e impuras, sagradas ou profanas, pode se manter de pé. Em vez disso, há somente o entendimento de que é começando exatamente de onde estamos, exatamente como somos, que somos convidados a nos tornar filhos e filhas de Deus, partícipes da cada de Deus. O que Deus chama de bom não é uma definição externa, que agrada alguns legisladores, mas aquilo que é bom para nós, que aquilo que é humano é amado e é realizado através do amor em participar na vida de Deus. Não é decepando pedaços de nós mesmos, psicológica ou fisicamente, que seremos salvos. Em vez disso, trata-se de nos descobrirmos e tornarmo-nos quem realmente devemos ser desde sempre, vindo a refletir a glória do nosso Criador. É isso, e não a versão um tanto reduzida de nós mesmos em que, de alguma forma, acabamos nos tornando e a partir da qual a morte e ressureição de Jesus nos lança em encontro à liberdade.

Cada vez se torna mais claro que aquilo que costumava parecer como uma autodescrição de nós era, na verdade, um engano. Mas esta tem sido exatamente a nossa experiência como católicos LGBTs ao longo dos últimos 30 anos ou mais. Fomos caracterizados como, de certa forma, defeituosos, patológicos ou pessoas corrompidas; fomos caracterizados como pessoas intrinsecamente heterossexuais que sofriam de uma forma bizarra e extrema de concupiscência heterossexual chamada “atração pelo mesmo sexo”. Tal descrição, que, na prática, nos rebaixou a cidadãos de segunda classe na casa de Deus, é simplesmente falsa. Acontece que temos a bênção de sermos os titulares de uma variante minoritária marcadamente não patológica dentro da condição humana. E que a nossa filiação a Deus veio a nós tal como somos, com esta variante sendo uma característica menor porém significativa de quem somos. Uma característica, além do mais, que dá uma forma graciosa de quem devemos ser. É claro que tal filiação faz desta característica algo mais, na medida em que superamos a concupiscência que é própria a todos nós como humanos, desenvolvendo e humanizando a nossa capacidade de amar de forma que nos tornemos, cada vez mais, plenos partícipes na vida de Deus.

E isso significa algo bastante importante: a única maneira que um ensinamento pode, realmente, ser católico é lembrando algo que realmente seja o caso a respeito dos seres humanos em questão. Portanto, no momento em que ficar claro que aquilo que costumava parecer como uma descrição acurada de quem somos, descrição que imaginava buscar o nosso bem, não é, na realidade, exato, mas um grande engano simplesmente, então neste exato instante vai se cessar a possibilidade de se afirmar que o ensinamento derivado de tal descrição é católico. Pois o ensinamento católico segue a descoberta daquilo que o Criador nos mostra ser verdadeiramente.

Noutras palavras, tal como no Livro de Atos, o Espírito Santo não espera pela permissão de Pedro antes de começar a produzir filhos e filhas de Deus. Muito pelo contrário. Na verdade, Pedro se vê aprendendo que aquilo que pensava ser verdadeiro sobre a santidade divina e a necessidade de respeitar o Livro de Levítico no intuito de celebrar tal santidade não era o caso. Na medida em que ele passa por este aprendizado, a pureza do código se torna relativizada, chegando a ser interpretado como uma série de tabus não obrigatórios: formas de definir as pessoas a partir de aspectos externos em vez de dizer alguma coisa sobre quem elas são começando por si mesmas.

E é aqui exatamente onde nos encontramos: sem que seja o caso de que exista alguma coisa que Pedro e seus companheiros podem fazer para deter. Assim como o Criador deixou abundantemente claro para nós o qual é, de verdade, o caso, através do processo humano normal de aprendizado sobre a Criação, processo inspirado pelo Espírito por meio do qual entramos como partícipes na Sabedoria de Deus, também o ensinamento concernente a nós como sendo os titulares de uma desordem objetiva que nos inclina a atos intrinsecamente maléficos se revelou como um tabu e, portanto, não vindo de Deus – e, dessa forma, não é uma parte propriamente do ensinamento (ou doutrina) católico.

Catolicidade em vez de inclusão

O meu segundo ponto é tentar tirar algumas consequências disto que vimos até então. Pediram-me para falar a partir do título “Rumo à inclusão global de LGBTs dentro das comunidades católicas”, e, no entanto, a abordagem teológica que lhes ofereço não é, na verdade, sobre inclusão de LGBTs dentro de comunidades católicas mais do que a passagem de Atos 10 era sobre a inclusão dos gentios dentro das comunidades judaicas – um exercício meio vergonhoso no qual cidadãos de segunda classe pediram e receberam lugares humildes numa mesa de primeira classe. Não. Em vez disso, o que temos é a realização surpreendente de que, exatamente no grau em que se tornou claro que somos simplesmente os titulares de uma variante minoritária marcadamente não patológica dentro da condição humana, neste momento, enquanto nos vemos buscando o Senhor, somos considerados a ser os portadores da catolicidade em termos de igualdade com todos os demais. Esta catolicidade começa a ser definida não através dos nossos méritos, mas pelo elemento objetivo de humanidade que trazemos à mesa simplesmente estando presentes como tais.

Por isso é importante? Porque significa que não somos nós que estamos nos adaptando às regras da casa de outro alguém. Nesta casa, todos se encontram adaptando-se ao fato de que, juntos de Pedro, estamos aprendendo algo novo sobre o ser humano, e que toda a nossa compreensão sobre o bem e o mal, dentro e fora, vai mudar por causa disso. O processo é obviamente muito mais doloroso e difícil, ao menos inicialmente, àqueles que possuíam uma postura firme na promoção de uma forma de bem público na qual éramos participantes como exemplos necessários daquilo que considerado errado. E é também muito mais alegre para aqueles de nós que estão descobrindo que, afinal de contas, nós estamos dizendo a verdade. Não é o caso, como frequentemente nos dizem, de que estamos sendo simplesmente autoindulgentes, ou que o nosso amor é prejudicial aos outros, ou ainda que somos malucos por pensar que somos normais, que fomos levados pelo hedonismo e relativismo para dentro de desejos puramente subjetivos e irreais que fazem parte de alguma trapaça desumanizante.

Por favor, observem o que acontece enquanto esta obra do Espírito se torna clara, enquanto a nossa participação como portadores em conjunto do dizer católico da verdade se torna aparente. Antes de tudo, há raiva e ódio por parte daqueles que fizeram um forte investimento naquilo que parecia vir de Deus, mas que se viu ser apenas outro tabu idólatra que exigia sacrifícios. Estas pessoas precisam de ajuda e misericórdia, precisam de nossa magnanimidade em vez de nosso ressentimento. Acima de tudo, não deveríamos procurar provocá-los ou escandalizá-los, por mais tentador que isso possa ser. A seguir apresento algo bastante sutil a que, penso eu, devemos olhar com bastante cuidado. Isto de que falo não vem daqueles que são cheios de raiva, mas que daqueles que têm um amor pelos odres velhos. Estas pessoas desejam dizer algo do tipo: “Sim, percebemos que houve um problema na forma como a Igreja lidou com os gays no passado. E nenhum de nós quer continuar com isso. No entanto, a Igreja tem o direito, nas sociedades tolerantes e multiculturais, de não se permitir ser definida pelo que é, de fato, verdadeiro a respeito dos seres humanos. Em vez disso, insistimos no direito de mantermos vivos os nossos próprios modos piedosos de fazer as coisas sem interferência”.

Mas é aqui onde reside o problema: no momento em que as pessoas seguem este caminho elas estão recusando a catolicidade e criando uma Igreja a sua própria imagem. Porque elas estão transformando a Igreja Católica em um grupo definido por certas regras caseiras, que são independentes da realidade. Noutras palavras, estão criando uma forma de santidade que se defronta com os outros considerados impuros ou profanos. Trata-se de uma regressão ao judaísmo do Segundo Templo. No exato em instante que as pessoas agem assim, elas excluem automaticamente a si mesmas da catolicidade da Igreja, pois estão procurando transformá-la não na manifestação de Deus que anseia que todos os seres humanos se reconciliem com Ele através de Jesus, mas sim numa exteriorização de si próprias, que anseiam por um grupo com uma forte identidade grupal e com fronteiras cuidadosamente definidas que se preocupe quanto a quem está dentro e quem está fora.

Então, por favor, peço-lhes: não pensem, salvo em alguma desatenção, que tais pessoas definem o que significa catolicidade. A catolicidade é definida somente por Deus, quando nos coloca sob questionamento desfazendo todas as nossas barreiras construídas social e culturalmente, conduzindo-nos à verdade sobre sermos irmãos e irmãs de Jesus ao criar uma forma igualitária de sermos humanos juntos que não reivindicam nenhum tipo de comparação, uma forma que flui do Crucificado, que nos perdoa.

Outra variante sobre este assunto está associada àqueles que dizem: “Sim, há algo errado na forma como a Igreja tratou as pessoas LGBTs, mas não devemos ter pressa para mudar as coisas. Deixe a hierarquia organizar, de maneira adequada e pacífica, qualquer mudança que tenha de ser feita”. Isso significa dizer que aqueles que sequer vêm a público reconhecer que somos nós quem está dizendo a verdade – e que são eles que estiveram amarrando as nossas consciências com base num tabu – são os que insistem em organizar uma mudança rumo à veracidade a partir de seu próprio planejamento, programação. Estes devem ter muita sorte mesmo! Não é assim que o Espírito de Deus funciona, como o relato do Livro de Atos deixa claro. O Espírito conduz a todos nós à verdade, dando-nos pontapés, protestando, pondo-nos contra a parede e nos despenteando ao insistir que sejamos ousados em nosso falar, quando for conveniente e quando não for. E os que estão mais surpresos, chocados, sãos os que pensam que qualquer mudança deverá ser feita por eles em seus termos, de preferência sem ter que admitir que eles, também, precisam de perdão.

Não, a veracidade não espera pela conveniência dos que se dedicam à mentira antes de a espreitarem. Ela irrompe, como se estivesse no cativeiro, dando testemunho a Ele que a enviou para correr solta entre nós, e nos leva numa viagem vertiginosa e, finalmente, feliz. O Espírito traz, de fato, a paz que vem com a verdade, mas não por seguir a programação daqueles cujos medos iriam segurá-la, retê-la consigo. Pedro foi verdadeiramente petrino ao escutar o Espírito e reconhecer que esteve em erro sobre o que era preciso para a santidade. Foi agindo assim que ele se tornou o centro de uma unidade aparentemente problemática que, na verdade, era uma Rocha, enquanto que todas as forças de reação buscavam esbofeteá-lo. Não foi ele nem seus colegas quem definiu a agenda ou os prazos.

A preparação para a evangelização

O meu terceiro ponto é: O que isto diz sobre as nossas vidas em diferentes culturas? Uma das coisas que as pessoas dizem é: “Isso tudo sobre as pessoas LGBTs não é outra cosa senão um valor ocidental decadente e deveremos nos defender contra ele”. Mas as pessoas contra as quais estas estão se defendendo não são ocidentais decadentes, mas seus próprios irmãos e irmãs, ugandeses, nigerianos, iranianos, russos, sauditas, jamaicanos. Estes são os nossos irmãos e irmãs que descobriram algo verdadeiro sobre si mesmos e sobre a capacidade deles de amar; eles sabem que o que é verdadeiro faz sentido para eles. E eis o que é o mais notável: esta descoberta de algo que é verdadeiro está funcionando exatamente da mesma forma que o Evangelho disse que funcionaria e seguindo apenas a dinâmica do Espírito que cai vem nós a partir de Jesus. E, no entanto, de forma bizarra líderes cristãos de todas as denominações estão se reunindo com líderes de outras organizações religiosas, organizações que são só desconhecem o Espírito Santo, mas também que, nalguns casos, se colocam inflexivelmente contrários à existência e ao efeito estimulante de qualquer coisa parecida. Tais líderes preferem cercarem-se com todas as trapaças da “religião” em vez de espalhar a Boa Nova daquele que relativizou todas as formalidades religiosas no intuito de nos trazer para dentro de uma nova humanidade, começando a partir dos rejeitados e precarizados.

Porém, esta situação quer dizer que nós, católicos LGBTs, podemos entrar na vanguarda da evangelização sobre a qual o Papa Francisco nos falou, e podemos assim fazê-lo na qualidade de beneficiários satisfeitos e alegres desta nova humanidade. Nós, assim como todo mundo, sabemos como o Espírito de Deus nos humaniza, não destruindo a cultura e, sim, libertando-a de tudo o que é violento e destrutivo daquilo que os seres humanos são chamados a ser. Sabemos que, graças a Jesus, não há um tipo de alimento religiosamente puro ou impuro, não há formas de mutilação genital, ou algo que o valha, sob obrigação religiosa. Sabemos que somente a cultura, e nunca Deus, é quem vem exigindo o uso de véu e cobertura do rosto feminino. Sabemos que o mesmo Espírito que nos ensinou estas coisas, tornando disponível a nós o que é genuinamente verdadeiro, capacitou-nos a descobrir a banalidade enfeitada de nossa condição de variante minoritária, permitindo-a ser a configuração do nosso amor que nos faz testemunhas da bondade de Deus na medida em que estamos ao lado daqueles que se encontram, de fato, sofrendo terríveis injustiças e privações.

Isso não significa simplesmente que somos capazes de passar adiante informações a outras pessoas. Isso significa que somos portadores da catolicidade em nossa carne. Encontramo-nos preparados para ser os portadores do Evangelho precisamente por causa destas coisas extremamente católicas: temos sido parte do processo de correção autocrítica da cultura que é como o Espírito mantém a Igreja fiel e viva. Assim, em cada uma das culturas em que vivemos nos vemos, portanto, em posição privilegiada para ajudar a nossos irmãos e irmãs a desfazerem os tabus, a violência e as estruturas locais e particulares que se mascaram como sendo de Deus, mas que, na realidade, são obra de idólatras. Quem pensaria que seriam os católicos LGBTs os que testemunhariam o vigor do Evangelho, na forma como ele torna viva a criação, até mesmo o valor do direito natural, não como uma armadilha mas como uma aventura? Falem sobre a pedra que os construtores rejeitaram!

Santidade, fala e testemunho

Eis o último ponto que quero apresentar. Qual é a forma de santidade que vem sobre nós? O efeito mais devastador do tabu sob o qual temos trabalhado não é que ele proibiu certos atos sexuais. Esta proibição nunca chegou a conter muitos de nós. Nem mesmo, como acabou ficando bastante claro, conteve muitos daqueles que assumiram o ônus advindo de algum tipo de comprometimento formal de evitar tais atos. Não, o efeito devastador do tabu, tal como por qualquer contágio da idolatria, é que ele prejudica a imaginação, fazendo ser impossível imaginar o bem. Quando a nossa concupiscência foi falsamente definida como uma forma objetivamente disfuncional do desejo heterossexual, todos os nossos atos eram, evidentemente, tão maléficos quanto os outros, e não tínhamos motivação alguma para humanizá-los. “Não ter lanches entre as refeições” pode ser uma instrução útil se ensinar as pessoas a se prepararem para desfrutar melhor a próxima refeição. Mas “não ter lanches entre as refeições e, no caso de vocês, nem refeição também” é uma receita certa para fazer a farra durante os intervalos.

Mas hoje, graças a Deus, estamos começando a descobrir qual poderá ser a configuração da refeição, ou das refeições, em direção a qual poderá valer a pena orientar os nossos apetites. Então, por favor, como parte de nossa descoberta da configuração da santidade que está vindo sobre nós, agora que não mais somos cidadãos de segunda classe com uma desculpa vitimária de ressentimento pela nossa falta de dignidade, vamos permitir que as nossas imaginações sejam animadas pelo Espírito. Já estamos descobrindo algumas das formas nas quais podemos participar na doação de Cristo aos outros – casamento civil, adoção de filhos e, em alguns casos, celibato escolhido livremente. (Esta última era, evidentemente, impossível sob os ensinamentos do tabu – ensinaram-nos que não tínhamos outra opção senão a da vida celibatária e, portanto, esta opção não era, de fato, livre, dado que não se tratava de abandonar um bem por outro, mas sim evitar um mal, mal que era nosso dever solene evitar de qualquer jeito.) Sob quais outras formas vamos descobrir que fomos chamados a ser uma bênção para os outros?

Eis aqui uma pista: não vamos permitir que esta santa obra da imaginação enlevada seja ofuscada pelos que prefeririam debater sem abordar a questão de se somos, de fato, objetivamente disfuncionais ou não. No Novo Testamento, nenhum dos que insistiram que os gentios precisavam ser circuncisados a fim de poder serem salvos tinha algo genuíno a oferecer na discussão sobre as formas adequadas da santidade entre os gentios batizados. Da mesma forma, ninguém que seja incapaz de admitir a legitimidade, o potencial da pureza, do nosso amor que jorra a partir de quem somos tem condição de oferecer ajuda genuína para a resolução sobre os tipos de leis matrimoniais e adotivas apropriadas para nós, muito menos sobre quais seriam as formas apropriadas de liturgia.

Muitas autoridades religiosas em diferentes países tentam se esconder atrás da afirmação de que “ao defenderem o casamento” não estariam fazendo ou dizendo algo sobre ou contra os gays e lésbicas. Se estas autoridades estiverem sendo honestas aqui, deixem-lhes mostrar que a consciência deles não está delimitada por tabus. Deixem-lhes renunciar abertamente a noção de que os homossexuais que formam casais, sobre os quais eles afirmam não estar falando, estão ipso facto saciando uma disfunção objetiva, que são praticantes impenitentes de pecado grave e que, portanto, estariam procurando santificar algo que jamais pode ser aprovado. Uma vez que estas autoridades mostrarem que a consciência deles é livre, e que inexiste, portanto, em seu entendimento, nenhuma rivalidade entre a forma de florescer própria dos heterossexuais em casamento, e mostrarem quais poderiam ser as nossas formas de florescer, então, com certeza, elas – as autoridades – poderão ter algo verdadeira útil a nos oferecer. Porque eles serão legitimamente capazes de contemplar algo sobre como, em nosso caso assim como no deles, a graça aperfeiçoa a natureza. Algo, quer dizer, que flui a partir de quem somos, e não apesar de quem somos. No entanto, durante o tempo em que a lealdade destas estiver encorada no tabu, elas não poderão ser juízes do nosso florescer.

Não, são a veracidade e a paz, o entusiasmo pelo verdadeiro, que vêm com a consciência de ser filho ou filha: somente estes ousam dar luz à imaginação do bem árduo que vem sobre nós. Um bem árduo ao qual podemos aspirar com justiça, e na resolução do qual esperamos nos encontrar. A ousadia que jorra do fato de sermos capazes de falar verdadeiramente de uma consciência não confinada não é um acréscimo extrínseco para se ser cristão. É algo intrínseco sobre aquilo de que se trata ser cristão. Esta ousadia leva a ser capaz de dar testemunho, sem o que não há cristianismo. Para nós, animais linguísticos, ser capaz de falar clara e abertamente é essencial para termos condições de viver nas mesmas condições. É como falamos e partilhamos com os demais as experiências de amor que descobriremos, em nossos relacionamentos, a quem fomos chamados a ser.

E aqui estamos, reunidos na cidade de Pedro. Vamos pedir pelas orações de Paulo, o Apóstolo dos Gentios, que não temeu chamar a atenção de Pedro sobre a apostasia, e que nos ensinou isto: “Omnia munda mundis” – todas as coisas são puras para aqueles que são puros. São Paulo, o Apóstolo, rezai por nós.

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