Padre Neuhaus: O primeiro passo para a paz na Terra Santa é acabar com a ocupação israelense

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10 Setembro 2014

Um cessar fogo entrou em vigor entre Israel e a Palestina na Gaza no último dia 26 após mais de 50 dias de conflito que matou cerca de 2143 palestinos (incluindo cerca de 577 crianças) e deixou mais de 11.200 feridos (incluído cerca de 3.374 crianças), segundo fontes palestinas e outras. Do lado israelense, morreram 66 soldados e 6 civis (incluindo um cidadão tailandês), enquanto que outros 450 soldados e 80 cidadãos ficaram feridos.

A reportagem é de Gerard O’Connell, publicada pela revista America, 05-09-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

O combate cessou, mas muitas questões extremamente importantes ainda precisam ser resolvidas em tempo real, caso quisermos evitar outro conflito e fazer com que israelenses e palestinos vivam em paz. Claro está que estes não estão em condições de resolver a situação por eles mesmos; a comunidade internacional terá de intermediar uma solução duradoura caso o ciclo de violência deve ter um fim e a paz seja restabelecida na Terra Santa após mais de seis décadas de conflito.

Na tentativa de melhor compreender a atual situação depois do conflito na Faixa de Gaza, contatei o padre jesuíta israelense David Neuhaus, vigário do Patriarcado Latino em Jerusalém para os católicos falantes do idioma hebraico em Israel. O Pe. Neuhaus nasceu numa família judia na África do Sul, tornou-se cidadão israelense quando tinha 17 anos e decidiu se converter ao catolicismo aos 26 após terminar o doutorado em Ciência Política na Universidade Hebraica de Jerusalém. Vive na Cidade Santa e é observador atento dos eventos na região.

Eis a entrevista.

Estamos assistindo a uma trégua entre israelenses e palestinos, ao menos por enquanto. O que o senhor pensa quando olha para os últimos 50 dias de conflito na Faixa de Gaza?

Estes foram dias de grande tristeza e profunda frustração, pois a violência se alastrou e eu fui reduzido a um simples expectador. Penso que os nossos líderes nos manipularam no intuito de nos levar subitamente a um frenesi que fez desta guerra um resultado esperado e aceito.

Tanto os líderes israelenses quanto os do Hamas parecem acreditar haver algo a ganhar com os confrontos militares. Os dois lados falam sobre “derrotar o outro lado” via ações militares. Este “outro lado” é visto como um inimigo desumano. O que foi particularmente preocupante era o silêncio praticamente total de vozes importantes. Do lado israelense, a tentativa de enquadrar toda a oposição palestina como terrorismo islâmico, traçando paralelos entre o ISIS e o Hamas, jogando com os piores medos do judaísmo israelense, levou a uma resposta silenciosa aos relatos de que centenas de pessoas estavam sendo mortas em Gaza. A imprensa israelense esteve pouco interessada nas casualidades civis e muito mais atenta em identificar os “terroristas” e na “destruição” deles.

Onde esta situação deixa os dois povos na atualidade? Ela está pior hoje do que era antes?

A situação era bastante ruim antes também. Esta guerra ilustrou a verdadeira fealdade que vinha sendo mascarada antes de a violência irromper em guerra. Mas antes a violência já estava lá, efervescendo. As guerras transformam pensamentos e palavras violentos em atos violentos. Estes dois povos têm estado em guerra há décadas; quatro ou cinco gerações vêm ensinando aos seus filhos que o outro lado é um “inimigo” a ser combatido. Com o Muro de Separação [ou Muro da Cisjordânia], as últimas duas gerações não têm mantido nenhum contato praticamente.

Considerando os próximos meses, o que o senhor espera? E o que o senhor teme?

A minha esperança permanece a mesma de sempre: a de que Deus inspire alguém ou algum grupo interno a dar início a uma nova linguagem cujas palavras criem uma nova visão que atraia as pessoas e que as faça perceber o quanto foram manipuladas a reduzirem o outro a um simples “inimigo”. É claro que vozes assim existem aqui nas margens das duas sociedades. O que realmente precisamos é de um milagre pelo qual a nova linguagem seja ouvida. Precisamos de uma mudança no paradigma político onde os nossos líderes, que vêm falando a mesma linguagem bélica por tantas gerações, sejam substituídos por aqueles que podem oferecer um novo modo de falar e uma nova visão.

O meu medo também continua o mesmo: o de que os nossos líderes vão simplesmente ficar em seus lugares como um resultado da inércia que tem caracterizado a situação por décadas.

O que os líderes religiosos estão fazendo dentro desta situação? O que mais poderiam fazer? O que a Igreja está fazendo?

Em geral, os líderes religiosos têm se permitido serem subordinados às elites políticas que dão o tom. Muito poucas são as vozes religiosas que resistem ao uso político do discurso religioso para justificar uma agenda política. Em grande parte, o “Deus” da instituição religiosa é usado para os objetivos políticos. Por isso, a visita do Papa Francisco foi tão interessante, pois penso que ele tentou romper as correntes que atam a religião à política em nosso contexto. Nas visitas a Belém e a Jerusalém, ele se recusou a ser manipulado e convidou os dois líderes políticos que percebia ser os mais abertos – os presidentes Peres e Abu Mazen – para saírem do confronto político violento através de um ato de invocação religiosa.

Em tudo isso, a Igreja tem um papel muito importante a desempenhar. Na qualidade de um organismo autônomo (os líderes judeus e muçulmanos são, em sua maioria, pagos pelo Estado enquanto que os líderes religiosos cristãos não estão integrados à burocracia estatal), a Igreja pode manter um discurso independente. Sem dúvida, o seu papel é manter uma linguagem compreensível, um papel particularmente importante quando a incompreensão reina. Os cristãos estão à margem em termos estatísticos, mas isso não deve ser visto como uma indicação de marginalidade e irrelevância. Deve ser considerado como uma força, ao não ter a influência do poder e do lobby. A Igreja tem raízes profundas em ambos os lados do muro da inimizade e é chamada a abraçar, de forma consciente, a situação e a aproximar os fiéis na busca pela paz.

Com certeza, foi bastante importante o fato de a paróquia latina em Gaza e a paróquia latina em Beer Sheba estarem celebrando missas em comunhão de fé durante o conflito. O discurso resultante não foi uma fuga piedosa da realidade nem um ato de equilíbrio diplomático, mas sim um reconhecimento da humanidade de todos os que aqui vivem, um reconhecimento de suas mágoas profundas e uma promoção da dignidade básica do ser humano. A Igreja está convidada a descrever o mundo a partir das margens: a partir do ponto de vista das crianças, das mulheres, dos desabrigados, dos oprimidos... O discurso que a Igreja pode fazer a partir da Terra Santa é, possivelmente, a sua maior contribuição para a paz. Para isso, ela precisa se envolver por completo na sociedade na qual vive e não se isolar dela.

Qual a saída deste impasse, desta situação de confronto e conflito?

A saída é muito simples: ver o outro como um ser humano. Ouvi-lo e deixar se tocar por ele. Mas para fazer isso muito ainda precisa acontecer. Os dois lados reivindicam ser vítimas, e os verdadeiros feridos que sofreram no passado (os judeus em sua história como uma minoria, os palestinos na perda de sua terra) são manipulados por líderes que vivem alheio a isso tudo. Não há dúvida de que um primeiro passo deve ser o fim da ocupação israelense, de forma que os palestinos possam ter um espaço para morar e onde não estejam cercados e controlados. No entanto, isso não é o suficiente para, de fato, nos tirar deste impasse.

O que o senhor gostaria que a Igreja e o papa fizessem?

A Igreja Católica tem um papel muito importante: falar ousadamente e formar consciências. Muito ciente de como o discurso dos cristãos sobre os judeus tiveram, no passado, efeitos desastrosos na vida, hoje, da comunidade judaica, a Igreja deve continuar a formular a revolução em curso que tem levado ao nascimento de uma nova relação com o povo judaico.

Muito ciente de como as práticas dos poderosos ao longo dos séculos tiraram povos de suas terras e destruíram suas culturas, a Igreja deve continuar a formular a sua solidariedade junto daqueles que são vítimas da ocupação e retirada. Na Terra Santa, estas duas sensibilidades estão em tensão, e a Igreja é chamada a formular, claramente, uma visão que promova a humanidade, a dignidade e a prosperidade tanto dos judeus quanto dos palestinos. Isso, é claro, envolve falar ousadamente e sem medo não apenas como um diplomata, mas também como um profeta.

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