''Comunicar o Evangelho da família hoje.'' Como?

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01 Setembro 2014

Cremos na família realmente como agente da ação evangelizadora ou meramente como “receptáculo” passivo? Estamos dispostos, como Igreja, a também beber dessa fonte, ou apenas a pensá-la e a utilizá-la como “receptáculo” passivo de uma “transmissão”? Talvez seja justamente do nosso modo de pensar e de dizer o “evangelho da família hoje” que advenham as maiores incompreensões e, principalmente, desafios.

A opinião é do jornalista Moisés Sbardelotto, doutorando em Ciências das Comunicação pela Unisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012). É também membro da Comissão Especial para o Diretório de Comunicação para a Igreja no Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O artigo foi publicado na revista O Mensageiro de Santo Antônio, de setembro de 2014.

Eis o texto.

No fim de junho, foi divulgado o “instrumento de trabalho” (Instrumentum laboris) da III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, que será realizada em outubro sobre o tema Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização. Trata-se de um texto muito relevante para toda a Igreja, por ser a síntese de uma “vasta resposta eclesial por parte do povo de Deus” sobre a questão da família hoje, que será debatida pelos bispos do mundo inteiro, em Roma, gerando grandes expectativas em todas as comunidades.

O instrumento de trabalho quer ser um “primeiro ponto de referência para o diálogo sinodal”, para “favorecer o confronto e o aprofundamento” (n. 158) durante o Sínodo. O documento nasceu da contribuição de toda a Igreja, em nível mundial, graças ao questionário enviado pela Santa Sé em novembro de 2013. Enriquecido com todas essas contribuições, o texto se divide em três partes centrais: 1) “Comunicar o evangelho da família hoje”, 2) “A pastoral da família face aos novos desafios”, 3) “A abertura à vida e a responsabilidade educativa”.

Mais do que refletir sobre a temática central, quero propor aqui uma reflexão sobre a linguagem utilizada especialmente na primeira parte do documento, em que se aborda a “comunicação do evangelho da família hoje”. Muitas vezes, o modo de pensar e de dizer a importância da família pode contradizer a nossa missão como Igreja.

O documento parte da constatação de que “a comunicação e a recepção dos ensinamentos da Igreja relativos à família se dão em modalidades bastante diversificadas, segundo as experiências familiares, o tecido eclesial e o contexto sociocultural” (n. 8). É importante que essa diversidade seja reconhecida e valorizada, pois isso faz com que o diálogo intra e extraeclesial possa avançar.

Mas, depois, a apresentação dos desafios pastorais fica obscurecida por uma linguagem que trai essa complexidade eclesial e sociocultural, reduzindo a evangelização a uma mera “transmissão da fé”, em que, de um lado, há “pessoas sensíveis à doutrina cristã” e, de outro, “muitos cristãos que ignoram a existência destes ensinamentos” (n. 8). Mas será que essa separação entre “sensibilidade” e “ignorância” é tão clara assim? A compreensão do panorama não deveria ser um pouco mais complexa?

O instrumento de trabalho afirma que “um bom número de Conferências Episcopais observa que, onde é transmitido em profundidade, o ensinamento da Igreja com a sua genuína beleza, humana e cristã, é aceito com entusiasmo por grande parte dos fiéis” (n. 13). Ao falar do escasso conhecimento dos documentos da Igreja por parte dos fiéis, o mesmo artigo diz que, quando esse ensinamento é conhecido, “muitos cristãos manifestam dificuldade em aceitá-lo integralmente”.

Nas entrelinhas, portanto, diz-se que uma “transmissão em profundidade” ocorre quando os fiéis “aceitam com entusiasmo” ou “integralmente” o que é transmitido. Isto é: quase nunca! E isso não se deve a uma “dificuldade” dos fiéis, porque, de fato, a aceitação (passiva) é quase impossível. Sempre há negociação e reconstrução criativa daquilo que é “transmitido” e recebido. Por outro lado, “aceitar integralmente” pressupõe abrir mão do que é central na comunicação: a apropriação criativa daquilo que é transmitido por parte de quem o recebe. Qualquer processo comunicativo envolve um certo grau de “não aceitação integral”, no sentido de fazer coisas novas com o que é “transmitido”.

“Transmitir” é fazer chegar a alguém exatamente aquilo que se emitiu, independentemente do contexto. Como criticava Paulo Freire, “transmitir” é uma compreensão mecanicista, estática e domesticadora da comunicação – eu transmito “algo” coisificado que um “receptor” passivo deve aceitar e que, ao aceitá-lo, irá se sobrepôr aos seus conhecimentos pessoais. Mas a comunicação está a anos-luz dessa compreensão – é ir (muito) além do que foi transmitido, é apropriação, é negociação, é reconstrução, é transformação de todo o “meio” comunicacional (incluindo os agentes, a mensagem, o contexto, as mediações).
O documento também diz que os textos do Magistério da Igreja “não parecem permear profundamente a mentalidade dos fiéis” (n. 11). Ora, pensar que temos o poder de fazer com que nossos textos possam “permear profundamente a mentalidade” de alguém é considerar esse alguém um ser ignorante, não pensante, não reflexivo, inerte. É assim que pensamos o “outro” na evangelização?

O instrumento de trabalho continua dizendo que, “em geral, são mencionados [nas respostas recebidas pela Santa Sé] elementos parciais da doutrina cristã, mesmo se relevantes, onde se observa uma resistência, em diversos graus” (n. 13). Resistência? É óbvio que haverá: faz parte da ação comunicativa, como prática transformadora e ação crítica sobre a significação do mundo. Ninguém comunica nem se comunica “passivamente”.

Mas, logo em seguida, o instrumento de trabalho explica que algumas Conferências Episcopais observam que o motivo de tal resistência “é a falta de uma autêntica experiência cristã, de um encontro pessoal e comunitário com Cristo” (n. 15). Aqui está o maior problema: culpabilizam-se os fiéis – teologicamente – por algo que é intrínseco ao agir comunicacional. A resistência não é privilégio dos “hereges” contemporâneos. Antes de buscar o motivo da resistência ou de julgá-la moralmente como “falta de uma autêntica experiência cristã”, seria bom entendê-la na sua expressividade: o que significa “resistir aos ensinamentos da Igreja”? Há uma forma de comunicação central nesse gesto dos “resistentes”. Tal resistência não poderia ser até mesmo, ao contrário, fruto da experiência e do encontro com Cristo, como expressão autêntica e sincera do sensus fidei fidelium, o senso da fé por parte dos fiéis, em diálogo com toda a Igreja?

No documento de trabalho do Sínodo, explicita-se ainda uma “unanimidade nas respostas também em relação aos motivos de fundo das dificuldades na aceitação do ensinamento da Igreja: as novas tecnologias difusivas e invasivas; a influência dos mass media; a cultura hedonista; o relativismo” (n. 15). Tal constatação reaparece na segunda parte do documento, em que se afirma que as mídias têm um “impacto negativo sobre a família”, porque “transmitem valores errados e desviantes” (n. 68). Diz-se que “a televisão, o smartphone e o computador” podem alimentar “relações fragmentadas e alienação” e que “acaba-se assim por viver relações virtuais entre os membros da família, onde os meios de comunicação e o acesso à internet se substituem cada vez mais às relações”, com o “risco da desagregação e da desunião familiar, mas também a possibilidade que o mundo virtual se torne uma verdadeira realidade substitutiva” (idem).

Como de praxe em certos documentos da Igreja ou mesmo no linguajar eclesial em geral, a culpa pelas “dificuldades na aceitação” da doutrina está no “outro”: na cultura, na tecnologia, no mundo. Mas não seria necessário repensar melhor? Muitas vezes, os motivos de fundo, quase via de regra, estão no próprio agente emissor, que não reconhece o “outro” na sua alteridade e, assim, coisifica tanto o receptor quanto a mensagem, querendo “transmitir” (mecanicamente) “algo” (coisificado) a “alguém” (apassivado), dando de ombros ao contexto sociocultural específico. Isso não é comunicação, muito menos evangelização.

Mas há pontos relevantes, que deixam algumas brechas de esperança. O documento informa, por exemplo, que “algumas intervenções constatam a importância de valorizar elementos das culturas locais, que podem ajudar a compreender o valor do Evangelho” (n. 14). Esse é o eixo de toda evangelização entendida como processo de comunicação: a inculturação. Como diz o Papa Francisco na Evangelii gaudium, “pela inculturação, a Igreja ‘introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade’” e assume “os valores das diversas culturas” (n. 116). Sem reconhecimento, compreensão, valorização e acolhimento do “outro” e do seu contexto específico, é impossível comunicar. O instrumento de trabalho acena para isso, quando defende que é preciso “integrar os ensinamentos da Igreja sobre a família com os valores sociais e morais do povo”, ressaltando “a importância da interculturalidade no anúncio do Evangelho da família” (n. 14). Que assim seja!

A questão é: cremos na família realmente como agente da ação evangelizadora ou meramente como “receptáculo” passivo? Como indica a Premissa do instrumento de trabalho, “a família constitui um recurso inesgotável e uma fonte de vida para a pastoral da Igreja”. Não se trata apenas de recurso, mas também de fonte de vida para a Igreja. Estamos dispostos, como Igreja, a também beber dessa fonte, ou apenas a pensá-la e a utilizá-la como “receptáculo” passivo de uma “transmissão”? Talvez seja justamente do nosso modo de pensar e de dizer o “evangelho da família hoje” que advenham as maiores incompreensões e, principalmente, desafios.

Tal constatação reaparece na segunda parte do documento, em que se afirma que, “entre as diversas situações críticas internas à família são mencionadas insistentemente também as dependências de álcool e drogas, mas também da pornografia, por vezes usada e partilhada em família, assim como do jogo de azar e de videogames, internet e social networks” (n. 68). Todo esse ponto é extremamente crítico e ácido, comentando que as mídias têm um “impacto negativo sobre a família”, porque “transmitem valores errados e desviantes”. Diz-se que “a televisão, o smartphone e o computador” podem alimentar “relações fragmentadas e alienação” e que “acaba-se assim por viver relações virtuais entre os membros da família, onde os meios de comunicação e o acesso à internet se substituem cada vez mais às relações”, com o “risco da desagregação e da desunião familiar, mas também a possibilidade que o mundo virtual se torne uma verdadeira realidade substitutiva”.

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