02 Mai 2014
A maior preocupação de Kasper é que desapareça, entre os fiéis, a percepção do "Evangelho do matrimônio", que, longe de ser um código jurídico, é, ao contrário "a luz e força da vida, que é Jesus Cristo".
A análise é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas. O artigo foi publicado na revista Missione Oggi, de abril de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O livreto do cardeal Kasper, Il vangelo della famiglia [O Evangelho da família], contém a palestra, proferida em Roma, por ocasião do consistório extraordinário dos cardeais de fevereiro passado, com a intenção de fornecer a base teológica para a discussão pastoral do Sínodo extraordinário dos bispos de outubro de 2014 e o ordinário de 2015, ambos dedicados aos "Desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização".
A reflexão de Kasper, acima de tudo, parte de uma rápida análise das mudanças ocorridas no âmbito da família nas últimas décadas, colocando em foco as ambivalências – pense-se apenas no aumento das coabitações e dos fracassos matrimoniais – e destacando realisticamente o abismo existente entre as posições tradicionais da Igreja e as convicções vividas de muitos cristãos.
Mas a maior preocupação de Kasper é que desapareça, entre os fiéis, a percepção do "Evangelho do matrimônio", que, longe de ser um código jurídico, é, ao contrário – são palavras suas –, "a luz e força da vida, que é Jesus Cristo".
Por isso, ele se propõe, acima de tudo, a anunciar a beleza dessa alegre mensagem, percorrendo novamente as grandes etapas da revelação – dos relatos da criação (Gn 1-2) aos textos neotestamentários dos Sinóticos e de Paulo – com o objetivo de trazer à tona o significado original da família, fundamentada em uma ordem que reflete a natureza da pessoa e de tornar ao mesmo tempo transparente o significado novo por ela assumido no quadro da redenção.
Ao delinear essa perspectiva ideal, Kasper, no entanto, não deixa de assinalar também as "duras realidades" que caracterizam a experiência matrimonial e familiar, colocando-as em estreita relação com a presença, desde o início, de estruturas de pecado (Gn 3), que explicam a alienação das relações humanas como consequência da alienação da pessoa em relação a Deus.
Também não deixa de salientar a profunda mudança que investe contra o matrimônio, graças à sua inserção no contexto do reino de Deus; mudança que também dá razão da doutrina da indissolubilidade radical, que, portanto, deve ser inscrita no contexto de uma visão especificamente cristã da vida matrimonial.
Kasper aborda, depois, a partir daí, a questão da pastoral dos divorciados em segunda união. As respostas dadas pela Igreja, depois da celebração do Vaticano II, privilegiaram cada vez mais formas de acolhida e de acompanhamento, sugerindo a adoção de práticas extrassacramentais de salvação.
Kasper se pergunta se esse é o único caminho possível ou se não se torna necessária uma mudança de paradigma, que, partindo da consideração da situação na perspectiva de quem sofre e pede ajuda, leve a Igreja a admitir também a possibilidade de acesso à prática sacramental.
Duas são, a esse respeito, as situações sobre as quais Kasper se debruça. A primeira é a dos divorciados em segunda união subjetivamente convencidos em consciência da não validade do seu matrimônio anterior, que, contudo, não têm a possibilidade de demonstrar isso mediante a via canônica. Nesse caso, ele hipotetiza o recurso a outros procedimentos pastorais, como o apelo a um padre com grande experiência espiritual, que, conhecendo diretamente a pessoa, assuma a responsabilidade pelo discernimento acerca da validade do primeiro matrimônio, permitindo, onde seja inválido, o acesso aos sacramentos.
A segunda situação diz respeito àqueles divorciados em segunda união que reconhecem a validade do seu primeiro matrimônio, mas cujo vínculo matrimonial se despedaçou irremediavelmente, e que passaram para segundas núpcias. Referindo-se ao tratamento reservado na Igreja das origens aos lapsi e aos adúlteros, e assumindo a posição de alguns renomados Padres, Kasper solicita a adoção de uma pastoral que vá além do rigorismo e do laxismo, e que, depois de um adequado período de penitência – a referência aqui é à prática penitencial canônica como segunda tábua de salvação – torne possível a aproximação dos divorciados à comunhão eucarística.
Os critérios éticos mencionados no livro, que vão da lei da gradualidade ao princípio da epiquéia, constituem suportes igualmente fundamentais da práxis pastoral exposta, cuja implementação exige, no entanto – Kasper enfatiza isso com força –, a capacidade de um discernimento que implica uma grande sabedoria espiritual e pastoral.
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As solicitações de Kasper ao Sínodo. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU