12 Novembro 2013
Nesses primeiros meses de pontificado de Francisco, vimos como a ideia de povo é importante para o Papa Bergoglio.
A reportagem é de Aldo Maria Valli, escritor, jornalista especializado em assuntos do Vaticano, publicada no jornal Europa, 09-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Partamos da teologia. Inspirando-se na teología del pueblo (corrente teológica argentina que teve em Lucio Gera e em Juan Carlos Scannone, mestre de Bergoglio, os principais representantes), o atual pontífice pôs em primeiro plano na reflexão pastoral a religiosidade popular, que na Europa, ao invés, foi denegrida por muito tempo.
Na entrevista à Civiltà Cattolica, Francisco diz: "A imagem da Igreja de que gosto é a do povo santo e fiel de Deus [...]. A pertença a um povo tem um forte valor teológico: Deus na história da salvação salvou um povo. Não existe plena identidade sem pertença a um povo". E ainda: "O povo é sujeito. E a Igreja é o povo de Deus a caminho na história, com alegrias e dores [...]. E o conjunto dos fiéis é infalível no crer, e manifesta esta sua infallibilitas in credendo mediante o sentido sobrenatural da fé de todo o povo que caminha".
Consciente de ter expressado um conceito forte, o papa, logo depois, especifica que é preciso estar bem atentos para não pensar que essa infallibilitas de todos os crentes seja uma forma de populismo. Ao contrário, é uma valorização da mensagem do Concílio, mas também do pensamento de Santo Inácio, fundador dos jesuítas. De fato, foi o Concílio que propôs a ideia de Igreja como povo, como comunidade de todos os batizados, sem distinções hierárquicas, e foi Inácio que falou de Iglesia militante.
Quando fala da santidade do povo de Deus, Francisco diz que a vê na paciência de tantos homens e mulheres que fazem o seu dever, que servem à vida, que se colocam à disposição dos mais desfavorecidos. Foi, diz ele, "a santidade dos meus pais: do meu pai, da minha mãe, da minha avó Rosa, que me fez tanto bem".
Mas a valorização do povo, por parte de Bergolio, além do plano teológico e, portanto, pastoral, também ocorre no social e político. Isso fica evidente lendo Noi come cittadini. Noi come popolo, o texto do discurso que o então arcebispo de Buenos Aires proferiu no dia 16 de outubro de 2010 pelos 200 anos da independência argentina e que a Jaca Book oferece oportunamente na tradução italiana (96 páginas), com o prefácio de Dom Mario Toso, secretário do Pontifício Conselho Justiça e Paz.
Vem à tona aqui um Bergoglio social, cuja ideia de democracia deve ser conhecida. O futuro papa, de fato, se declara favorável a uma democracia "de alta intensidade", caracterizada por uma forte participação popular, e denuncia com decisão o "divórcio", assim chamado, entre a elite política e o povo, assim como a política que se coloca a serviço de interesses particulares e não do bem comum.
O contexto, repetimos, é o argentino, mas a reflexão de Bergoglio supera as fronteiras do seu país natal. Assim, quando ele aponta o dedo contra a política subserviente a interesses setoriais e individuais, e reduzida a instrumento de gestão de cargos e espaços, sem capacidade projetual e sem limites e contrapesos contra o capital, é evidente que a mensagem tem um valor muito amplo e também diz respeito a nós.
A reflexão sobre o significado da palavra cidadão é particularmente estimulante. Cidadão, explica Bergoglio, vem do latim citatorium. Portanto, "o cidadão é o convocado, o chamado ao bem comum, convocado para que se associe em vista do bem comum". Para que haja comunidade, cada um deve ter um munus, uma tarefa, uma obrigação, um compromisso com relação a si mesmo e aos outros. Essas são categorias postas quase em segundo plano ou totalmente esquecidas, diz Bergoglio, na época do individualismo consumista, porque hoje o cidadão é, mais do qualquer outro, aquele que pede, critica, demanda, exige e, no máximo, moraliza, mas não é mais aquele que agrega e se põe em jogo.
De onde recomeçar, então? É preciso valorizar a identidade, e esta é recuperada com o sentido de pertença a um povo a caminho. Desse modo, não temos mais, por um lado, o indivíduo isolado e, de outro, a massa indistinta, a massa amorfa, mas temos o povo, e "povo é a cidadania empenhada, reflexiva, consciente e unida em vista de um objetivo ou um projeto comum".
Contra o particularismo e a fragmentação, grandes males das nossas comunidades desagregadas, é preciso passar do ser simples habitante ao ser cidadão. Na ideia de cidadania, há a dignidade e a responsabilidade, mas a cidadania deve ser "integral": os direitos devem ser respeitados sempre.
Dentro desses raciocínios, Bergoglio muitas vezes utiliza uma palavra que não estamos acostumados a encontrar no vocabulário social e político de um eclesiástico. É a palavra "luta". Eis um exemplo: "Ser cidadão significa ser convocado para uma escolha, chamado a uma luta, a essa luta de pertença a uma sociedade e a um povo. Deixar de ser massa, de ser gente massificada, para ser pessoas, para ser sociedade, para ser povo. Isso pressupõe uma luta".
O conceito volta várias vezes e chama a atenção. Os bispos, geralmente, falam no máximo de luta interior, de luta moral, mas a luta a que Bergoglio se refere não é apenas espiritual: é cultural, social e política.
"A luta – diz Bergoglio – tem dois inimigos: a indiferença, me lavo as mãos diante do problema e não faço nada, mas assim não sou cidadão, e a lamentação". Mas nenhuma dessas reações é cristã. O cristão entra em campo e luta. Luta pelos direitos humanos (sabendo muito bem que "afirmar os direitos humanos envolve também a luta para mudar essas estruturas injustas"), pela justiça social ("devemos recuperar a missão fundamental do Estado, que é a de assegurar a justiça e uma ordem social justa a fim de garantir a cada um a sua parte de bens comuns, respeitando o princípio de subsidiariedade e o de solidariedade"), para "erradicar a pobreza", pela "cultura do encontro" que preserve as diferenças "convergindo sobre os valores que garantem a dignidade da vida humana, a equidade e a liberdade".
Costela argentina da teologia da libertação, a teología del pueblo, tão importante para a formação do jesuíta Bergoglio, refuta a leitura da sociedade em chave marxista e, especialmente, se distancia da luta de classes, mas a valorização do papel histórico e cultural do povo é clara, assim como o apelo à luta como consciência da tensão agonística que deve caracterizar a participação do cristão na vida social.
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Democracia, cidadania e luta segundo Bergoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU