09 Setembro 2013
Para quem se lembra do preâmbulo à guerra liderada pelos Estados Unidos no Iraque há 10 anos, a reação do Vaticano dos últimos dias à prospectiva de uma campanha militar ocidental na Síria não pode deixar de soar como uma lembrança de coisas passadas.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 06-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mais uma vez, o Vaticano lançou uma pressão diplomática plena contra um possível ataque contra uma ditadura do Oriente Médio, um ataque aparentemente justificado pelos abusos dos direitos humanos e pela ameaça de armas nefastas, mas também claramente calculado para promover a mudança de regime. Mais uma vez, os porta-vozes vaticanos estão alertando para o fato de que tal ofensiva pode desencadear um conflito regional mais amplo, promover o extremismo e piorar a vida para os grupos minoritários, especialmente os cristãos.
O paralelo não é exato, já que o Iraque foi uma guerra terrestre propriamente dita, enquanto o presidente Barack Obama prometeu que não haverá botas pisando no chão da Síria. No entanto, tanto a sequência dos eventos quanto até a linguagem que está sendo usada pelo Vaticano hoje provocam uma sensação vertiginosa de déjà vu.
Daqui para frente, a questão é se a história irá se repetir em ao menos outros quatro sentidos também. Primeiro, recapitulemos as semelhanças.
À medida que o governo Bush lançava as bases para a guerra no Iraque no início de 2003, o Papa João Paulo II e o corpo diplomático do Vaticano emergiram como uma voz da consciência crítica e de liderança. Seus esforços começaram com três grandes iniciativas:
• No dia 27 de fevereiro de 2003, embaixadores credenciados junto à Santa Sé foram urgentemente convocados para participar de uma reunião com o principal diplomata do Vaticano, o arcebispo francês (hoje cardeal) Jean-Louis Tauran, que argumentou que a guerra no Iraque teria consequências inaceitáveis para a população civil e inflamaria sentimentos extremistas.
• No dia 2 de março de 2003, o Papa João Paulo II usou o seu discurso do Ângelus de domingo para anunciar que ele estava designando a quarta-feira seguinte, que seria a Quarta-Feira de Cinzas daquele ano, como um dia especial de oração e de jejum pela paz pelo Iraque.
• Durante o seu discurso do Ângelus do dia 16 de março de 2003, João Paulo II deixou de lado o seu texto para falar de improviso para a multidão na Praça de São Pedro sobre a sua própria experiência de guerra, dentre outras coisas citando a famosa máxima do Papa Paulo VI, "nunca mais a guerra".
"Eu pertenço à geração que viveu a Segunda Guerra Mundial e, graças a Deus, eu sobreviveu a ela", disse João Paulo II no dia 16 de março. "Que esta Quaresma não seja recordada como um triste tempo de guerra, mas como um período de corajoso empenho pela conversão e pela paz."
Todos esses três passos foram repetidos por Francisco e pelo atual grupo de conselheiros diplomáticos de confiança do Vaticano:
• No último domingo, o Papa Francisco pediu que os católicos e também os não católicos marcassem o dia 7 de setembro como um dia de oração e de jejum pela paz na Síria.
• Na quinta-feira, embaixadores junto à Santa Sé, convocados para uma reunião sobre a Síria, foram informados pelo arcebispo marroquino Dominique Mamberti, o atual principal diplomata do Vaticano, que a escalada da violência corre o risco de "envolver não apenas os outros países da região, mas também consequências imprevisíveis em várias partes do mundo".
• Francisco também invocou o mantra do "nunca mais a guerra". (Refletindo a explosão das mídias sociais ao longo dos últimos 10 anos, desta vez, Francisco também tuitou o slogan.)
Dois outros ecos do passado parecem claros.
Primeiro, o Vaticano tem se esforçado para não permitir que a sua postura antiguerra seja confundida como um afago aos brutos. Em 2003, João Paulo II repetidamente chamou Saddam Hussein a cooperar com a comunidade internacional, especialmente os inspetores de armas da ONU. Desta vez, Francisco usou o Twitter para manifestar uma rejeição ao presidente sírio, Bashar Assad, dizendo na terça-feira: "Condeno com uma firmeza particular o uso das armas químicas!".
Em segundo lugar, o próprio papa está situado em um plano de apelos morais elevados, deixando que os seus assessores tirem as conclusões políticas específicas. Assim como João Paulo II em 2003 nunca disse diretamente que a guerra no Iraque seria ilegítima, mas deu a sua bênção aos subordinados como Tauran que o fizeram, desta vez Francisco está permitindo que outros façam a maior parte do levantamento retórico pesado.
O mais explícito que Francisco foi até agora foi em uma carta da quarta-feira para o presidente russo, Vladimir Putin, à frente da atual cúpula do G20, em que ele disse que uma solução militar seria "fútil". Seus assessores têm sido consideravelmente mais pontiagudos. No dia 31 de agosto, por exemplo, o bispo Mario Toso, do Pontifício Conselho Justiça e Paz, disse que uma ofensiva ocidental na Síria "conteria todos os ingredientes para explodir uma guerra de dimensões globais".
Agora, quatro pontos de interrogação sobre se esse roteiro vai continuar sendo uma fotocópia da saga do Iraque ou se, desta vez, as coisas vão se desenrolar de uma forma diferente.
Enviado papal
Se Francisco continuar seguindo a cartilha de João Paulo II, a sua próxima medida seria a de designar um emissário pessoal para a Casa Branca, para tentar persuadir o governo dos EUA a exercer a moderação.
Há uma década, João Paulo II voltou-se para o cardeal Pio Laghi, um diplomata veterano que atuou como embaixador papal em Washington de 1984 a 1990 e que tinha uma forte relação pessoal com a família Bush. (João Paulo II também despachou um emissário para Hussein, o cardeal francês Roger Etchegaray, em um esforço para persuadir o líder iraquiano a cooperar com os inspetores da ONU.)
No dia 5 de março de 2003, Laghi se encontrou com o presidente dos EUA, argumentando que a guerra no Iraque levaria ao "sofrimento do povo do Iraque e daqueles envolvidos na operação militar, a uma maior instabilidade na região e a um novo abismo entre o Islã e o cristianismo".
Se Francisco optar por ir por esse caminho, Tauran poderia ser o homem lógico a ser indicado novamente. (O último núncio imediato nos Estados Unidos, o arcebispo italiano Pietro Sambi, que era muito respeitado na Casa Branca de Obama, morreu em 2011). Dentre outras coisas, Tauran, agora presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, estaria em uma posição única para gentilmente lembrar a Obama que, olhando para trás, a maioria das advertências do Vaticano sobre o Iraque realmente tornaram-se realidade.
Dada a diferença em termos políticos hoje, a nacionalidade de Tauran não seria uma deficiência. Há dez anos, os franceses não estavam a bordo da guerra do Iraque, de modo que o envio de um francês para se encontrar Bush não era um bom começo. Hoje, os franceses estão entre as vozes mais agressivas a pedir uma ação militar na Síria, de modo que Obama e seus assessores os veem como aliados.
O ataque do embaixador
Durante o conflito no Iraque, o enviado do governo Bush ao Vaticano era Jim Nicholson, um graduado de West Point e veterano da Guerra do Vietnã (onde ele ganhou uma série de condecorações), assim como ex-presidente do Comitê Nacional Republicano.
Dado esse currículo, Nicholson tinha tanto a formação militar quanto o conteúdo político para ser um franco defensor das políticas do seu governo, muitas vezes fazendo retroceder aquilo que ele considerava como uma retórica piedosa, mas ingênua, do Vaticano, ou como objeções europeias automáticas à política norte-americana.
Nicholson nunca conseguiu persuadir o Vaticano sobre os méritos da guerra, mas ele certamente fez com que esse ponto fosse claramente ouvido tanto na própria Santa Sé, quanto na mídia global sediada em Roma.
Em fevereiro de 2003, por exemplo, Nicholson levou o intelectual católico norte-americano Michael Novak a Roma para uma rodada de discursos, entrevistas na mídia e reuniões com autoridades vaticanas, definindo a intervenção no Iraque como um ato legítimo de autodefesa conectado com a guerra contra o terrorismo.
Novak também sugeriu que alguns comentários vaticanos sobre a guerra tinham sido "emocionalmente um pouco anti-norte-americanos".
Como João Paulo II nunca disse explicitamente que a guerra no Iraque era imoral, Nicholson também teve um pouco de sorte ao jogar a carta do "juízo prudencial", enquadrando as advertências do Vaticano como precauções ao invés de condenações – em termos coloquiais, como uma luz amarela em vez de uma luz vermelha.
Durante o conflito e o seu rescaldo, Nicholson continuou pressionando essa tecla. O resultado foi que o embaixador dos EUA junto ao Vaticano tornou-se um ator significativo no drama.
Resta saber se o novo embaixador de Obama junto ao Vaticano, o ex-presidente da Catholic Relief Services, Ken Hackett, vai desempenhar o mesmo tipo de papel se o governo optasse por avançar sobre a Síria.
O Senado confirmou Hackett no dia 1º de agosto, mas ainda não apresentou formalmente as suas credenciais ao papa. (Contextualmente, aliás, essa deverá ser uma conversa terrivelmente interessante.)
Dada a sua experiência no CRS, Hackett conhece a paisagem internacional e também é um ativista articulado e contundente. Não está claro, no entanto, até que ponto ele vai replicar a visibilidade do Nicholson, em parte porque Hackett pode não ter exatamente a mesma liberdade de ação desfrutada por um amigo pessoal do presidente do país e ex-presidente do seu partido. Também não é dado por óbvio que Hackett sentiria o mesmo compromisso pessoal para defender esse conflito como Nicholson sentiu para a Guerra do Iraque.
Os bispos dos EUA
Da última vez, havia uma percepção em alguns setores de que os bispos norte-americanos não seguiram totalmente a liderança do papa e do Vaticano. Dom Robert Lynch, bispo de St. Petersburg, Flórida, foi mais longe, escrevendo em seu blog Sunday que "a Igreja Católica dos Estados Unidos infelizmente deu ao presidente George W. Bush, em grande parte, um passe livre" e que os bispos "nem sequer reagiram fortemente em defesa do Bem-Aventurado João Paulo II" em seus esforços para impedir a guerra.
Eles disseram as coisas certas, incluindo uma declaração de novembro de 2002 que afirmava tudo, menos que o conflito liderado pelos EUA no Iraque não iria responder às exigências de uma "guerra justa". No entanto, os críticos insistiam que os bispos não pressionaram essa posição com o mesmo vigor que eles aplicaram aos debates sobre o aborto e o casamento gay.
Em parte, isso se deve, talvez, ao fato de o furor sobre se se deve negar a Comunhão aos políticos católicos pro-choice estava começando a ferver antes das eleições de 2004. Em parte, também, os comentários dos bispos tinham que levar em conta a opinião pública norte-americana, especialmente naquela breve janela imediatamente após a guerra, quando ela parecia um sucesso militar.
Além disso, os bispos estavam um pouco chocados no fim de 2002 e início de 2003 por causa da explosão dos escândalos de abuso sexual de crianças, e alguns podem ter se sentido compreensivelmente hesitantes sobre o fato de se projetarem em debates nacionais como autoridades morais.
Quaisquer que sejam as razões e por mais que tenham sido injustas substancialmente, a sabedoria popular dizia que os bispos norte-americanos eram mais suaves do que o Vaticano. A questão agora é saber se eles vão fornecer elementos para os críticos para nivelar tal acusação desta vez.
Na terça-feira, o cardeal Timothy Dolan, de Nova York, presidente da Conferência dos Bispos dos EUA, e Dom Richard Pates, bispo de Des Moines, Iowa, presidente do Comitê de Justiça e Paz Internacionais, emitiram uma declaração unindo-se ao apelo do papa por um dia de oração pela paz, e muitas dioceses dos EUA organizaram celebrações.
Em Washington, o cardeal Donald Wuerl irá celebrar uma Missa pela Paz e Justiça no sábado, na Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição. O arcebispo Carlo Maria Viganò, embaixador do papa, estará lá, juntamente com Dom Ronny Jenkins, secretário-geral da Conferência dos Bispos.
Daqui para frente, três fatores podem induzir os bispos dos EUA a serem mais enérgicos desta vez.
Em primeiro lugar, a opinião pública é mais antiguerra do que há uma década, quando a raiva pós-11 de setembro ainda dirigia grande parte da discussão política externa. Uma pesquisa do Pew Forum divulgada na última quarta-feira constatou que apenas 29% dos norte-americanos são favoráveis a ataques militares na Síria. Uma pesquisa em separado do ABC/Washington Post constatou que seis em cada 10 norte-americanos se opõem a ataques unilaterais dos EUA, e 70% são contra o fornecimento de armamentos aos rebeldes sírios.
Em segundo lugar, os bispos já têm uma relação bastante ambivalente com o governo Obama, de modo que pode não haver a mesma preocupação em termos de esbanjar boa vontade. Alguns bispos frustrados com as acusações de partidarismo podem realmente aproveitar a oportunidade para demarcar uma distância do que pode ser percebido como a esquerda – isto é, contra a guerra – ao invés da direita.
Em terceiro lugar, e talvez o mais fundamental, os bispos cimentaram a liberdade religiosa como uma prioridade imponente de uma forma que estava apenas entrando em foco uma década atrás. Como parte dessa paisagem, eles se tornaram muito mais sensíveis à perseguição anticristã em todo o mundo, talvez especialmente no Oriente Médio.
Os bispos sabem que os cristãos estão entre as principais vítimas do caos que se seguiu à queda do regime de Saddam Hussein no Iraque e eles estão ouvindo advertências semelhantes hoje das lideranças cristãs da Síria.
O bispo católico caldeu Antoine Audo, de Aleppo, por exemplo, disse o seguinte em uma entrevista recente: "Nós ouvimos muito sobre democracia e liberdade dos Estados Unidos no Iraque e agora vemos os resultados – como o país foi destruído. Os primeiros a perder foram os cristãos do Iraque. Devemos dizer que não queremos que se repita na Síria o que os Estados Unidos fizeram no Iraque".
Essa é uma mensagem que deve assumir o seu peso junto aos seus colegas bispos dos EUA.
Resultados
Em última análise, o maior ponto de interrogação é saber se o atual governo dos EUA será mais sensível às advertências do papa, do Vaticano, dos bispos norte-americanos e dos cristãos in loco do que o seu antecessor.
Quando Laghi retornou da sua missão a Washington, em 2003, ele falou em off com alguns repórteres em Roma, dizendo, em essência, que tinha sido uma perda de tempo, porque Bush já estava comprometido com a guerra. Notoriamente, Laghi acusou o governo de ter uma visão calvinista do conflito no Iraque, em que os eleitos foram confrontados contra os réprobos.
Até agora, as chances não parecem muito boas no sentido de que Francisco e sua equipe terão mais sorte.
O governo Obama está conduzindo uma forte campanha de lobby em favor de uma intervenção militar, de modo que, politicamente, qualquer recuo agora corre o risco de parecer fraqueza.
Além disso, se alguma vez houve algum governo norte-americano que se poderia pensar que ouviria atentamente ao papa, esse era a Casa Branca de Bush. Em 2003, Bush já tinha visitado João Paulo II duas vezes em Roma e o faria novamente em junho de 2004 para presenteá-lo com a Medalha da Liberdade. Além da genuína admiração de Bush pelo pontífice, vencer o voto católico também era um elemento central da sua estratégia de reeleição.
Se um presidente que basicamente se enrolou na bandeira papal, no entanto, estava pronto para ir à guerra contra as objeções pontifícias, que base há para se pensar que um governo democrata, com uma relação notoriamente tensa com a Igreja, levará o papa mais a sério?
Por outro lado, existem duas cartas curingas que ainda podem entrar no jogo.
Primeiro, Francisco goza altos índices de aprovação e investiu uma grande quantidade de capital político. O aniversário de seis meses da sua eleição está chegando, e as organizações midiáticas provavelmente vão fazer uma cobertura significativa para marcar a ocasião. Esse foco pode lhe dar uma maior oportunidade para moldar o debate.
Da mesma forma, os principais meios de comunicação dos EUA, há uma década, já haviam se comprometido com a narrativa de João Paulo II como um ferrenho aliado conservador da Casa Branca de Bush, e levou algum tempo para que eles captassem a realidade de que, a esse respeito ao menos, esse roteiro não funcionou.
Em geral, a mídia ainda não se comprometeu com uma uma narrativa semelhante com relação a Francisco. A sua mensagem sobre a Síria, portanto, pode encontrar uma câmara de eco mais preparada.
Em segundo lugar, ao contrário de Bush em 2003, Obama em 2013 não tem um olho voltado para a campanha de reeleição. Pelo fato de esse conflito estar se desenrolando no seu segundo mandato, o seu cálculo, ao menos em teoria, pode ter mais a ver com o legado de longo prazo do que com a política de curto prazo.
Nesse contexto, talvez a voz da minoria cristã da Síria, amplificada pelo papa e pelo aparato diplomático do Vaticano, tem uma chance ligeiramente maior de fazer a diferença – se não na prevenção de uma primeira rodada de ataques, talvez para ajudar a moldar o rescaldo. Como os italianos diriam, vedremo – veremos.
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Pressão do Vaticano sobre a questão síria, uma lembrança de coisas passadas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU