A encíclica oculta de Francisco no Rio de Janeiro

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Por: André | 07 Agosto 2013

O Papa Francisco aproveitou a sua viagem ao Brasil para fazer dois discursos maiores aos bispos da América Latina, embora tenham chamado menos a atenção da mídia do que as mensagens aos jovens ou as visitas de cunho mais social. Dois textos fortes que não param de provocar ondas.

A reportagem é de Jean Mercier e publicada pela revista francesa La Vie, 30-07-2013. A tradução é de André Langer.

Oficialmente, a primeira encíclica do Papa Francisco intitula-se Lumen Fidei, e foi publicada no começo de julho passado. Mas ela foi escrita principalmente por Bento XVI; Francisco contentou-se em lhe acrescentar uma espécie de posfácio. Na realidade, o papa trabalhava em outros textos, aqueles que iria pronunciar na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e, especialmente, em dois discursos fundamentais, endereçados aos bispos, que ficaram um pouco perdidos no meio da massa de palavras endereçadas aos jovens durante a JMJ...

No sábado, 27 de julho, aos bispos brasileiros, o Papa Francisco abordou questões difíceis e exigentes do domínio da pastoral, em um texto muito forte. Na manhã seguinte, ele ampliou seu propósito através de uma alocução aos bispos vindos de toda a América Latina. O conjunto desses dois discursos constitui uma espécie de encíclica “oficiosa”, verdadeiro programa para o pontificado, cujo fio condutor é uma autocrítica severa e o apelo à conversão da instituição. O veredicto é claro, mesmo sob a forma de eufemismo: “Estamos um pouco atrasados no que se refere à Conversão Pastoral”.

1. Quebrar o tabu em relação às mulheres e o cisma silencioso dos decepcionados com a Igreja

Como nenhum Papa antes dele, Francisco se confronta com a dolorosa questão dos católicos que abandonaram a Igreja, fenômeno atestado na América Latina, mas que é conhecido de todos os países, especialmente os europeus, nos últimos 50 anos. Ele evoca assim “o mistério difícil das pessoas que abandonaram a Igreja” e se deixaram seduzir por outras propostas.

Esta questão, considerada tabu durante muito tempo, é a ocasião para uma severa autocrítica: “Talvez a Igreja lhes apareça demasiado frágil, talvez demasiado longe das suas necessidades, talvez demasiado pobre para dar resposta às suas inquietações, talvez demasiado fria para com elas, talvez demasiado auto-referencial, talvez prisioneira da própria linguagem rígida, talvez lhes pareça que o mundo fez da Igreja uma relíquia do passado, insuficiente para as novas questões; talvez a Igreja tenha respostas para a infância do homem, mas não para a sua idade adulta”.

O Papa acusa a Igreja de ser de tal maneira exigente em seus “padrões” que desencoraja o conjunto das pessoas: “muitos buscaram atalhos, porque se apresenta demasiado alta a ‘medida’ da Grande Igreja. Também existem aqueles que reconhecem o ideal do homem e de vida proposto pela Igreja, mas não têm a audácia de abraçá-lo. Pensam que este ideal seja grande demais para eles, esteja fora das suas possibilidades; a meta a alcançar é inatingível”.

Uma Igreja chata, rígida, fria, centrada no seu umbigo! Nunca Bento XVI e João Paulo II fizeram semelhante autocrítica. Bergoglio não tem medo de dizer a verdade ao pensar em todos esses que se afastaram dela: “Perante esta situação, o que fazer? Necessitamos de uma Igreja que não tenha medo de entrar na noite deles. Precisamos de uma Igreja capaz de encontrá-los no seu caminho. Precisamos de uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Precisamos de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que, fugindo de Jerusalém, vagam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido. (...) Hoje, precisamos de uma Igreja capaz de fazer companhia, de ir para além da simples escuta”.

O Papa não hesita em tocar em outro assunto tabu na instituição: o lugar das mulheres: “Não reduzamos o empenho das mulheres na Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o seu papel ativo na comunidade eclesial. Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão global e real, ela corre o risco da esterilidade”. Embora a menção seja lapidar, é a primeira vez que um Papa reconhece que a Igreja perdeu parte da sua credibilidade em relação às mulheres.

A solução passa, segundo o Papa, pelo exercício da maternidade da Igreja, isto é, pelo exercício da misericórdia. “Ela gera, amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão... Por isso, faz falta uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, temos hoje poucas possibilidades de nos inserir em um mundo de ‘feridos’, que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor”. Nesse campo, há progressos a realizar: “Num hospital de campanha a emergência é curar as feridas”.

A outra dimensão é a empatia afetiva e a proximidade: “Eu gostaria que hoje nos perguntássemos todos: Somos ainda uma Igreja capaz de aquecer o coração?”.

2. A reforma da Igreja a partir da missão, e não da burocracia ou da ideologia

Verdadeiramente, o Papa defende “toda uma dinâmica de reforma das estruturas eclesiais” que se tornaram obsoletas. Mas, cuidado! A reforma deve ser feita a partir de um critério específico: a missão, e não a sofisticação administrativa... A “mudança das estruturas” (das caducas para as novas) não é “fruto de um estudo de organização do sistema funcional eclesiástico. (...) O que derruba as estruturas caducas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a missionariedade”.

Encontramos aqui, na alocução do Papa Francisco aos bispos latino-americanos, uma reflexão de fundo que já é aquela de alguns bispos europeus, que apelam a uma verdadeira conversão pastoral, e que o Papa apresenta sob a forma de um verdadeiro exame de consciência. O Papa exorta a uma revolução pastoral mais que administrativa. O Papa denuncia o funcionalismo que “olha para a eficácia”, que se deixa fascinar pelas estatísticas e “reduz a realidade da Igreja à estrutura de uma Ong”.

A partir daí, o Papa Francisco define as “tentações do discípulo missionário”, situando, como bom jesuíta, o desafio sob a perspectiva do discernimento, e, portanto, do combate espiritual contra “o espírito mau” que leva à “ideologização” da mensagem evangélica. Ele lista quatro desvios, agrupando dois a dois os extremos, progressistas e conservadores:

A redução socialista, “uma pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais”. Ela recobre os campos mais variados: do liberalismo de mercado às categorias marxistas;

A ideologização psicológica. Trata-se de uma aproximação “elitista” que reduz o encontro com Cristo a uma dinâmica de autoconhecimento, sem transcendência;

A proposta gnóstica, dos reformistas inspirados no “Iluminismo”. O Papa explicou que ele recebia, desde o começo do pontificado, cartas de fiéis, pedindo pelo “casamento dos sacerdotes e a ordenação das boas irmãs”, mas que a reforma necessária da Igreja, segundo ele, não se situa neste nível.

A proposta pelagiana, aqueles católicos que procuram “uma restauração de condutas e formas superadas” ou uma “segurança” doutrinal e disciplinar.

3. Dar vida à colegialidade com os leigos e a descentralização em relação a Roma

Francisco recorda a importante valorização dos leigos na missão: “Nós, Pastores Bispos e Presbíteros, temos consciência e convicção da missão dos fiéis e lhes damos a liberdade para irem discernindo, de acordo com o seu caminho de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamo-los e acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevida submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca do bem da Igreja e pela sua Missão no mundo?”. O Papa também pediu aos bispos para confiar no “talento” de seu rebanho “para encontrar novas rotas”. Ao diabo a autocracia: “O bispo deve guiar, o que não é o mesmo que dominar”.

Ecoando o que vem dizendo desde a sua eleição, o Papa denuncia o clericalismo: “Na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade pecadora: o pároco clericaliza e o leigo lhe pede por favor que o clericalize, porque, no fundo, lhe resulta mais cômodo”.

Como solução, o Papa recorda a importância dos conselhos: “Tanto estes como os Conselhos paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastoral? O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos muito atrasados nisso”.

Ansiosamente aguardado sobre o tema da colegialidade entre bispos, Francisco reabilita a vitalidade local, em detrimento de uma abordagem centrada em Roma. Rompendo com a visão de seus predecessores, que desafiaram a autonomia das estruturas nacionais, o Papa Francisco valoriza as “Conferências Episcopais” como “um espaço vital”: “Faz falta, pois, uma progressiva valorização do elemento local e regional. Não é suficiente a burocracia central, mas é preciso fazer crescer a colegialidade e a solidariedade; será uma verdadeira riqueza para todos”.

Esta visão confirma a atitude de Francisco em sua vontade de realinhar o papado como serviço da unidade. Ele se considera primeiro como bispo, em vez de Papa, como ele lembrou várias vezes no Rio, seja aos jovens, seja aos bispos: “Eu gostaria de falar de bispo para bispo”, confidencia aos seus interlocutores do CELAM.

Não é mera coincidência se o Papa aborda, em sua “encíclica oculta”, questões de método de trabalho. Ele lembrou que o encontro dos bispos latino-americanos (CELAM), em Aparecida, em 2007, não foi construído a partir do método romano usado em outros encontros do CELAM, e em Sínodos Romanos, ou seja, o método do Instrumentum laboris. Com este jargão se denomina o documento que define o tom dos debates, cujo conteúdo tem a tendência de bloquear os debates subsequentes. O Papa implora por intercâmbios a partir de uma consulta às bases, sem esquemas pré-mastigados pela burocracia eclesial. Isto já foi uma exigência dos Padres do Concílio Vaticano II, em sua abertura.

4. Retomar o diálogo com o mundo atual

Sem rodeios, o Papa voltou aos fundamentos do Vaticano II, citando a famosa fórmula introdutória da Gaudium et Spes: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo".

Atento aos sinais dos tempos, o Papa evoca a questão da adaptação às “questões existenciais do homem de hoje, especialmente das novas gerações, prestando atenção à sua linguagem”, e leva em conta a existência de universos culturais extremamente diferentes; “Em uma mesma cidade, existem vários imaginários coletivos que configuram ‘diferentes cidades’”. O Papa insiste na consideração das “tribos”, que se reúnem por afinidades, das megalópoles: “Se continuarmos apenas com os parâmetros da ‘cultura de sempre’, fundamentalmente uma cultura de base rural, o resultado acabará anulando a força do Espírito Santo. Deus está em toda a parte: há que saber descobri-lo para poder anunciá-lo no idioma dessa cultura; e cada realidade, cada idioma tem um ritmo diferente”. Encontramos aqui a paixão jesuíta pela inculturação.

De acordo com o Papa Francisco, a missão é uma tensão permanente: “Não existe o discipulado missionário estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo; a sua imanência está em tensão para a transcendência do discipulado e para a transcendência da missão. Não admite a auto-referencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projetado para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o anúncio. (...) No anúncio evangélico, falar de ‘periferias existenciais’ descentraliza e, habitualmente, temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um ‘descentrado’: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais”.

Para além da sua crítica sobre o medo “de deixar o centro”, o Papa questiona uma visão centrada no umbigo da Igreja católica: “Quando a Igreja se erige em ‘centro’, se funcionaliza e, pouco a pouco, se transforma em uma ONG. Então, a Igreja pretende ter luz própria e deixa de ser aquele ‘mysterium lunae’ de que nos falavam os Santos Padres. Torna-se cada vez mais auto-referencial, e se enfraquece a sua necessidade de ser missionária. De ‘Instituição’ se transforma em ‘Obra’. Deixa de ser Esposa, para acabar sendo Administradora; de Servidora se transforma em ‘Controladora’. Aparecida quer uma Igreja Esposa, Mãe, Servidora, mais facilitadora da fé que controladora da fé”. A Igreja não é uma aduana, já disse em outra ocasião.

5. Aprender uma cultura da pobreza, da ternura e do encontro

Encontramos aqui as manias de Jorge Mario Bergoglio, que cutuca as “pastorais ‘distantes’, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais... obviamente sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se a ‘revolução da ternura’, que provocou a encarnação do Verbo. Há pastorais estruturadas com tal dose de distância que são incapazes de atingir o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos. Deste tipo de pastoral podemos, no máximo, esperar uma dimensão de proselitismo, mas nunca levam a alcançar a inserção nem a pertença eclesiais”.

Neste contexto, a conversão pastoral cabe ao próprio bispo, que deve ser um modelo: “Os Bispos devem ser Pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão: pacientes e misericordiosos. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham ‘psicologia de príncipes’. Homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja sem viver na expectativa de outra”. O Papa mencionou claramente o carreirismo daqueles que buscam uma “promoção” para dioceses de maior prestígio.

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