12 Julho 2013
No fundo, o sonho dos jovens que arriscam a vida para ir à Europa é o mesmo dos nossos avós, e certamente o jovem Bergoglio ouviu seus avós cantarem o sonho da América.
A opinião é do chef italiano Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, em artigo para o jornal La Repubblica, 10-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Todos os observadores captaram a incisividade do magistério do Papa Francisco em dedicar a sua primeira saída do Vaticano aos migrantes, no gesto de jogar a coroa de flores no mar de Lampedusa, na denúncia da indiferença, em saber chorar com os que choram.
Seja-me permitido ler esse dia extraordinário através da simples história de vida desse homem, da sua família e da sua gente. Filho de migrantes do Piemonte na terra da Argentina e conhecedor, tenho certeza disso, de uma época que este nosso país já esqueceu. Milhões de desesperados fugiam da miséria dos nossos campos e que embarcavam em navios para viagens sem retorno. Cantavam os socialistas libertários no fim do século XIX: "Itália bela, mostra-te gentil e não abandona os filhos teus; aqui também é preciso trabalhar, sem ir para a América para emigrar".
Os dados são impressionantes: em um século, de 1876 a 1976, 24 milhões de emigrantes deixaram a Itália, e, destes, três milhões encontraram sua casa na Argentina.
Em janeiro de 1929, a família Bergoglio zarpou de Gênova no navio Giulio Cesare com destino a Buenos Aires. Não há dúvida de que, no ânimo dessa família e dos tantos italianos da Argentina, o pensamento voltado ao naufrágio do Mafalda estivesse vivo e presente. Menos de dois anos antes, no dia 25 de outubro de 1927, de fato, o Principessa Mafalda afundava não muito longe da costa brasileira, causando a morte de 314 migrantes italianos. Nas praças, essas histórias eram cantadas, os cantores de histórias as espalhavam pondo-as em versos, e as "folhas volantes" reconstruíam os fatos.
A sistematização musical desse trágico episódio é o mesmo de outro canto, o que narra o naufrágio do navio Sirio, ocorrido em 1906.
Lembro que na minha Langhe, no fim dos anos 1960, os velhos cantavam e misturaram as palavras do Sirio e do Mafalda, e certamente, na Buenos Aires do século recém-passado, o acordeão evocava essas notas.
Nos vales de Cuneo, nas colinas Berici, nos arrozais da Lomellina, assim como nos bairros italianos de Boca ou de Almagro em Buenos Aires, ou nos vinhedos de Mendoza e nas planícies de Rosario, ressoavam as mesmas árias.
“E da Genova il Sirio Partiva / per l’America varcare il confin / 4 agosto le 5 di sera / urta il Sirio terribile scoglio / di tanta gente la misera fin / Padri e madri bracciavan i suoi figli / che si sparivan tra le onde del mar”.
Eis as mães e os filhos evocados por Francisco, que hoje são negros da África, mas que há 100 anos eram piemonteses, lombardos, vênetos. Mortes no mesmo mar na indiferença e no desprezo de uma classe política que já então aplicava mecanicamente regras obtusas, sem levar em conta a vida humana.
Ouçam o relatório da Inspetoria para a Imigração do Congresso norte-americano a propósito dos migrantes italianos, que remonta a outubro de 1912: "Geralmente, são de pequena estatura, de pele escura, não gostam da água, e muitos deles fedem porque mantêm as mesmas roupas por muitas semanas; constroem barracos de madeira nas periferias da cidade onde vivem uns próximos dos outros. Quando conseguem se aproximar do centro alugam a um preço muito caro apartamentos em ruínas. Geralmente apresentam-se em dois e buscam um quarto com cozinha. Depois de poucos dias, tornam-se quatro, seis, dez. Entre eles, falam línguas incompreensíveis para nós, provavelmente antigos dialetos, fazem muitos filhos que custam a manter e são muito unidos entre si. Dizem que são viciados no furto e que, obstaculizados, se tornam violentos. Os nossos governantes abriram demais os ingressos nas fronteiras, mas principalmente não souberam selecionar aqueles que entram no nosso país para trabalhar e aqueles que pensam viver com expedientes ou até atividades criminosas" .
Se esse trecho não fosse contextualizado, poderia ser obra de algum politicante dos nossos dias... A última estrofe do Sirio recita: "E entre eles havia um bispo / dando a todos a sua bênção".
Na realidade, os bispos eram dois, como documenta o caderno Domenica do jornal Corriere do dia 19 de agosto de 1906: "Os dois bispos de São Paulo do Brasil e de Belém no Pará, tendo-se vistos perdidos, se ajoelharam um contra o outro no seu convés, e, depois de terem se dado reciprocamente a absolvição, desapareceram dentro da água no mar invasivo. O primeiro, Dom José Camargo de Barcos se afogou, enquanto o segundo foi resgatado".
Na segunda-feira, o primeiro entre os bispos, o bispo de Roma, deu testemunha "dando a todos a sua bênção".
Essas recordações surgem novamente indeléveis, e as pessoas certas sabem que os migrantes de ontem e de hoje são vítimas da injustiça. Como esta nossa Itália fez para permitir tanto cinismo? Onde está a esquerda europeia diante desse drama?
No fundo, o sonho desses jovens que arriscam a vida para vir para a Europa é o mesmo dos nossos avós, e certamente o jovem Bergoglio ouviu dos seus avós o canto: “Trenta giorni di nave a vapore / fino in America siamo arrivati / abbiam trovato né paglia né fieno / abbiam dormito sul nudo terreno / come le bestie abbiamo riposà”.
O Papa Francisco lembra muitas vezes a pedagógica sabedoria da sua avó Rosa. A memória dos humildes e a fé forte dos simples evocada por aquelas avós "anel forte" das famílias, reecoam nas recordações dos migrantes e deveriam atribuir àquela multidão de agricultores mandatos ao mundo para buscar trabalho ou para morrer nos montes do Carso ou do Adamello um papel primordial no Panteão da Itália.
Talvez seja a hora de voltar àquele senso de fraternidade com relação aos migrantes africanos, assim como os socialistas "verdadeiros cristãos" o interpretavam no alvorecer do século XX, conscientes do fato de que o destino desses nossos irmãos também é o nosso e o dos nossos filhos, pois todos pertencemos à única Terra Mãe.
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Quando o migrante era Bergoglio. Artigo de Carlo Petrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU