O último monge da Itália

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22 Novembro 2012

O padre Francis Darbellay, 77 anos, cônego de Gran San Bernardo, Itália, ama as palavras francas e diretas. "No outro dia, quando deixamos para sempre a casa religiosa Chateau Verdun, houve uma festa. Estavam o bispo de Aosta, o presidente da junta regional, o nosso prepósito. Não me parecia que eu estava em uma festa, mas sim em um funeral. Depois de mil anos, nós, padres da Congregação dos Cônegos Regulares de Gran San Bernardo, deixamos o Valle d'Aosta e a Itália. Para nós, foi a morte na alma. Deixamos a terra onde nascemos, porque São Bernardo de Menton, nosso fundador, era arquidiácono em Aosta, quando lá em Mont-Joix ele construiu a hospedaria que depois assumiu o seu nome. Tínhamos quatro paróquias, o colégio Gervasone, a Ecole Pratique d’Agricolture d’Aoste, que ensinou a produzir queijo e vinho a milhares de jovens do vale. A casa religiosa Chateau Verdun era a nossa última defesa. Somos como o exército de Napoleão, que chegou até Moscou e depois foi obrigado a retroceder".

A reportagem é de Jenner Meletti, publicada no jornal La Repubblica, 18-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto

O velho cônego não tem esperança. "O nosso prepósito, Mons. Jean Marie Lovey, líder da congregação, disse: 'Se Deus quiser, voltaremos para o Vallée e para a Itália'. Eu não acredito. Não há mais vocações. Quando entrei eu, os cônegos eram cem. Agora, somos 30, e muitos estão em repouso na casa-mãe de Martigny, na Suíça".

O padre Francis Darbellay também está em repouso. Foi o último prior de Chateau Verdun. "Eu tinha que partir para a casa-mãe de Martigny, mas eu pedi para ficar na Itália. Nasci na Suíça, mas sou valdostano [quem nasce em Valle d'Aosta] há 50 anos. Eu vivo na Prepositura de St. Pierre, juntamente com outros sete padres diocesanos em repouso, mas me sinto em casa. Ela também, que era uma casa-fortaleza, foi construída pelos cônegos de San Bernardo".

Assim termina a história dos cônegos de San Bernardo, na Itália, e a hospedaria construída a 2.473 metros de altura – 200 passos depois da fronteira com a Suíça – também corre o risco de ser abandonada nos próximos anos. "Quando eu me tornei noviço", conta Francis Darbellay, "havia comigo outros cinco rapazes que haviam se apaixonado por Cristo e pela montanha. Entre noviços e cônegos lá em San Bernardo, éramos cerca de 30. Dois anos de noviciado sem nunca descer ao vale. Era muito lindo. Acordávamos às 5h30, orações, café da manhã... Também fazíamos esportes, obviamente o esqui. Eu vivi os últimos anos em que a hospedagem ainda era aquela desejada por São Bernardo. Hic Christus adoratur et pascitur (Aqui, Cristo é adorado e alimentado), esse é o lema gravado nas nossas pedras. Aprendíamos a esquiar para poder socorrer os peregrinos na tempestade, levá-los ao convento e alimentá-los. O esqui não era o de agora. Para ganhar experiência, subíamos por uma hora e meia com as peles de foca e depois, em dez minutos, voltávamos à base. Sempre sobre a neve fresca, nunca em uma pista. Depois de cada tempestade, descia-se tanto rumo à Itália quanto rumo à Suíça para encontrar peregrinos ou viajantes perdidos na nevasca. Havia também os contrabandistas e em grande parte eram pessoas boas. Da Suíça, traziam sapatos, café, açúcar, cigarros e chocolate. Eram pais de família que, com esse trabalho, haviam criado seus filhos e construído casas. Isso até meados dos anos 1970. Depois, tudo mudou. Chegaram os novos contrabandistas que não pensavam em construir uma família, mas apenas em ganhar dinheiro rápido".

Até o fim da Segunda Guerra Mundial, a hospitalidade era totalmente gratuita. "Na casa de Chateau Verdun, tínhamos uma verdadeira fazenda. Vacas, galinhas, porcos... Assim, podíamos abastecer a hospedaria de Gran San Bernardo e dar de comer aos cônegos e aos peregrinos. Na fazenda, também fazíamos roupas, porque lá não podíamos secar lençóis, hábitos e cobertores: o gelo e o vento os teriam despedaçado".

Muitas coisas mudaram na colina de Gran San Bernardo. Em 1964, desde que foi aberto o túnel que une a Itália e a Suíça, não é mais necessário subir aos quase 2.500 metros de passagem. "Quem chega aqui", conta o cônego Raffaele Duchoud, 52 anos, "não o faz mais por necessidade. Viajantes e peregrinos param para buscar uma cama ou um caldo, mas principalmente para viver dentro de um lugar do espírito".

Os dias são marcados por momentos de oração. Matinas e Laudes às 7h15, Hora Média às 11h50, Missa e Vésperas às 18h15, Completas às 21h. "Eu não sei por quanto tempo conseguiremos resistir. O último noviço entrou há três ano. Desde então, o noviciado está deserto. Nós, religiosos, somos cinco ao todo: dois cônegos, um diácono permanente, uma oblata e uma aspirante oblata. Depois, há os empregados, que cuidam da cozinha e da hospitalidade, que chega a 140 pessoas".

A passagem fecha no dia 15 de outubro de cada ano e reabre em junho. Conta o cônego Duchoud: "Sobe-se apenas com a força da panturrilha", com as raquetes de neve. "No inverno, caem até 20 metros de neve, e se entra no convento só a partir do primeiro andar. Do lado italiano, caem muitas avalanches, mas o perigo também vem da neblina. Branca é a neve debaixo dos pés, branco é tudo ao redor, você não vê nada e é tomado pelo pânico. Essa é a 'morte branca', que tem afetado muitos viajantes. Há cerca de 20 anos, dois deles foram encontrados aqui perto. Estavam a 80 metros do convento e da salvação, e não se deram conta disso".

Há também o necrotério, atrás da grande hospedaria. "Aqui em cima não se podia enterrar os mortos, porque debaixo de 30 centímetros de terra está a rocha. Então, fazia-se o funeral na igreja, usando um único caixão, e depois o corpo era retirado do féretro, amarrado a uma tábua e posto de pé, apoiado ao muro atrás do necrotério. Os corpos aqui em cima não se decompõem, mas são mumificados. Assim, algum parente, meses ou anos depois, podia reconhecê-los. Havia uma pequena janela que permitiu ver esses corpos à espera da eternidade, que depois de décadas se tornavam pó e caíam no chão. Agora, muramos esse lugar".

Os cães de San Bernardo – ainda há 11 – também acabaram em um museu. Com oito euros, é possível entrar nas salas que contam a história milenar da hospedaria e depois se passa para o canil. "Eu vou fazer um deles sair da casinha, assim você pode acariciá-lo". Cabras, águias, lebres brancas e marmotas embalsamadas, quadros e estampas que contam os séculos heroicos, com os cônegos com a túnica preta que enfrentam as tempestades para salvar os perdidos, e os cães que encontram mulheres, homens e crianças debaixo das avalanches.

A História passou por este lugar. Breno com os seus bárbaros, em 390 a.C., depois Aníbal com os elefantes em 218 a.C. Napoleão – assim contam os painéis do museu – atravessou a passagem em maio de 1800 com 40 mil soldados. Os cônegos lhe forneceram 21.724 garrafas de vinho, 3.498 libras de queijo, 749 de sal, 400 de pão, 1.758 de carne, 500 lençóis... Tudo por um valor de 40 mil francos. Receberam apenas 18 mil e somente cinco anos depois.

"Uma vez", conta o cônego Raffaele Duchoud, "aqui em cima também havia uma pequena estrebaria, com porcos e vacas. Se o inverno era muito longo, o nosso açougueiro punha-se a trabalhar". Agora, existem os congeladores, e, acima de tudo, o refeitório dos religiosos precisa servir apenas cinco pessoas. Mesmo os cães de San Bernardo são enviados para invernar em Martigny. "O inverno não nos assusta mais. Temos lenha e energia elétrica. O que nos fazer sofrer é apenas a absoluta falta de vocações".

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