10 Novembro 2011
Eles repousam na capela de Dom Romero no pátio da Universidade Centro-Americana. Em memória: Celina e Elba Ramos, Ignacio Martin-Baró, Armando López, Juan Ramón Moreno, Segundo Montes, Ignacio Ellacuría, Joaquín López y López. Seis jesuítas, a cozinheira e sua filha de 16 anos.
A reportagem é de Francesco Strazzari, publicada na revista de atualidade pastoral Settimana, nº. 34, 25-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Era o dia 16 de novembro de 1989. O teólogo Jon Sobrino não estava em casa, mas na distante Tailândia para falar de Cristo e de El Salvador. Um outro jesuíta tinha ido dormir em outra comunidade. Dos oito, seis estavam presentes e foram assassinados. À noite, chegaram os soldados do presidente Cristiani, forçaram a porta de entrada da casa, fizeram-nos sair ao jardim e atiraram na cabeça. Os cérebros jorraram para fora. Enlouquecidos, os soldados jogaram no chão máquinas de escrever, computadores, registros, vídeos, e roubaram documentos e arquivos. Entraram na capela de Dom Romero, miraram na grande foto, atirando no coração.
O Evangelho inspirava as suas ações
Por que o poder de direita se enfureceu contra a universidade dos jesuítas? Certamente, eram pessoas que perturbavam. Os adversário diziam isso com todas as cores a respeito da universidade e dos jesuítas. Alguns os chamavam às vezes de comunistas e marxistas, e outras vezes de antipatriotas, até de ateus. Queriam reduzi-los ao silêncio, talvez afastando-os do país, desaparecidos ou mortos.
Outros moviam contra a universidade e os jesuítas acusações concretas: eles apoiavam a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), eram a sua "fachada" ideológica, responsáveis pela violência e pela guerra civil.
Sobrino conhecia muito bem os seus colegas e amigos. No dia seguinte ao cruel assassinato, ele disse que eram cristãos fiéis, convictos de seguir Jesus de Nazaré na luta de libertação da injustiça e de toda opressão. Certamente conheciam o marxismo para analisar a situação de opressão no Terceiro Mundo, mas levavam em conta os sérios limites da análise marxista. É preciso dizer enfaticamente que o marxismo jamais foi a sua principal fonte de inspiração. O reitor, Ignacio Ellacuría, era um eminente discípulo do filósofo espanhol Xavier Zubiri.
Era o evangelho de Jesus que inspirava as suas ações. Jon Sobrino confessa isso depois de muitos anos, com o qual eu percorro novamente aquela tristíssima hora das trevas. Eles sempre repetiam que não apoiavam um partido político ou um determinado governo, nem um determinado movimento popular, mas que submetiam as ações do poder ao crivo dos princípios evangélicos.
Eles foram fiéis às palavras de Dom Romero: "Os processos políticos devem ser julgados de acordo com o benefício ou não do povo". Por isso, apoiavam o que havia de positivo nos movimentos populares e também na FMLN, criticando, no entanto, o que havia de equivocado, sobretudo as ações terroristas e os assassinatos de civis.
O Padre Ellacuría estava convencido, ainda em 1981, depois da grande ofensiva fracassada da FMLN, que o único caminho a ser seguido era a negociação, o que soava como traição para a direita e inútil para a esquerda. Em maio do mesmo ano, a revista da universidade – ECA – dedicou um número monográfico ao diálogo e à negociação. No entanto, eles não eram nem pacifistas radicais, nem belicistas.
Ellacuría costumava dizer: "O caminho da guerra deu tudo o que podia dar de si. É preciso buscar o caminho da paz". Eles apoiaram decisivamente o diálogo-negociação. A universidade fez todo o possível para facilitar isso, conversando com ambas as partes em conflito. Os jesuítas também falaram a respeito com o presidente Cristiani, assim como com os dirigentes da FMLN, com alguns membros do governo, com todas as classes de políticos e diplomatas, incluindo alguns militares, permanecendo firmes na denúncia dos abusos e das violações dos direitos humanos por obra do Exército e dos esquadrões da morte, afirmando a responsabilidade do governo, denunciando a impunidade dos crimes.
É uma idiotice – defende Sobrino – dizer que os mortos eram a "fachada" da FMLN. "Eles não eram de nenhum grupo ou projeto político. Ao contrário, eram a "fachada" das maiorias populares, dos pobres e dos oprimidos do país. Esse é a tragédia e por isso os mataram".
Eram crentes e cristãos. Sobrino recorda: "Na comunidade, quando falávamos de coisas da fé, as palavras eram muito sóbrias, mas muito reais. Costumávamos falar do reino de Deus e do Deus do reino, da vida cristã como seguimento de Jesus, do Jesus histórico, o de Nazaré, porque não há outro. Na universidade – no ensino e nos escritos de teologia, certamente, mas também em momentos solenes e atos públicos – se lembrava a nossa inspiração cristã como algo central, como aquilo que dava vida, direção, ânimo e significado a todos os nossos trabalhos, e como algo que também explicava os riscos que a universidade continuamente corria.
"Falava-se com toda a clareza sobre reino de Deus e a opção pelos pobres, o pecado e o seguimento de Jesus. Esses jesuítas expunham essa inspiração cristã da universidade, sem qualquer repetição por costume, e as pessoas captavam que essa inspiração verdadeiramente era o que dava direção à universidade. Até mesmo alguns não explicitamente crentes captavam isso e apreciavam, porque, através da fé cristã vivida dessa forma, a universidade se fazia mais salvadorenha".
A cripta de Dom Romero
É ainda Sobrino, que escapou do massacre, que se pergunta em que tipo de Igreja os mártires viviam, enquanto trabalhavam por um outro tipo de Igreja. Sofriam quando a Igreja não estava à altura das circunstâncias; quando ela olhava mais a si mesma e à instituição do que à dor do povo; quando vários eclesiásticos da hierarquia mostravam incompreensão e indiferença diante do sofrimento do povo e rejeitavam as suas melhores aspirações; quando faziam Dom Romero calar.
Muitas eram as suspeitas com relação à chamada "Igreja popular", que era condenada muitas vezes sem conhecê-la bem e sem dialogar com os membros. É o que continua acontecendo hoje. "Sofremos – confessa Sobrino – especialmente porque não se reconhece nem se aceita com gratidão que essa Igreja dos pobres, com todos os seus limites e erros, está produzindo muita fé, muita esperança, muito amor e muito martírio".
Os jesuítas assassinados gozavam do apoio e da amizade de alguns bispos próximos de Dom Romero, como Dom Rivera Damas e Dom Casaldáliga. Bispos católicos e de outras confissões visitaram a universidade e jamais consideraram os jesuítas assassinados como membros e representantes de uma Igreja perigosa, pouco obediente.
Os mártires fazem a Igreja refletir. Basta visitar a capela onde Dom Romero foi morto. A cripta onde ele está sepultado, continuamente visitada por milhares e milhares de pobres; a capela da universidade com a foto do bispo mártir; os nichos dos jesuítas e o pequeno jardim onde foram massacrados; a "sala dos mártires", onde estão expostos seus pertences pessoais. Faz tremer. Há tensões e incompreensões em seu interior, como testemunham ainda hoje os fatos e acontecimentos na América Latina, mas é preciso que sejamos lúcidos, admitindo com sinceridade que amamos e servimos realmente a Igreja quando não a pomos no centro, que pertence ao reino de Deus; quando fazemos dela sinal do reino de Deus.
Ainda Sobrino: "A Igreja dos pobres é a Igreja mais ativa e criativa. É a mais comprometida com as justas causas populares. É a que mais fomenta a comunidade para superar o mal endêmico do individualismo, também religioso. É a que gera mais esperança para superar a resignação. É a que mais unifica o salvadorenho e o cristão. Certamente, é a que gera mais misericórdia, mais justiça, mais compromisso e mais amor pelo povo que sofre".
Sobrino observa ainda: "O El Salvador e toda a América Latina têm demonstrado uma fé incrível e um amor incrível. São muitos os mártires nos nossos países, e se esse amor grande não é critério para verificar a verdadeira Igreja, então podemos nos perguntar qual é, então, o verdadeiro critério. Aqueles que mais se assemelharam a Jesus foram perseguidos e como ele, optaram verdadeiramente pelos pobres. Por isso, a perseguição não conhece denominações: católicos, luteranos, episcopalianos, batistas, menonitas... todos sofreram perseguições quando se colocaram a serviço".
As rosas da libertação
No dia 22 de março de 1990, às sete da manhã, o bispo de São Félix (Brasil), Pedro Casaldáliga, dirigiu-se ao Centro de Pastoral "Dom Romero" para visitar o lugar do massacre. Encontrou-se casualmente com Obdulio, o marido de Elba, a cozinheira, e pai de Celina, ambos crivados de balas.
Obdulio estava ocupado com o seu trabalho. Estava plantando roseiras no lugar do martírio. Os dois se abraçaram.
O bispo queria doar algo para o marido e pai. Tinha um rosário e lhe deu. Ele o colocou no pescoço. No dia seguinte, Dom Pedro, poeta muito conhecido, escreveu estes versos dedicados à Universidade Centro-Americana e ao povo ferido:
Já sois a verdade em cruz
e a ciência em profecia,
e é total a companhia,
companheiros de Jesus.O juramento cumprido,
a UCA e o povo ferido
ditam a mesma lição
das cátedras fossas
e Obdulio cuida das rosas
da nossa libertação.
Os assassinos ainda estão impunes.
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Jon Sobrino: memória do martírio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU