04 Abril 2011
A socióloga alemã Saskia Sassen explica por que a história dos centros urbanos pode nos ajudar a construir um novo modelo de comunidade. Todas as vezes que os "excluídos" conquistaram direitos, a liberdade de todos saiu reforçada, afirma. Paradoxalmente, das dificuldades de hoje pode nascer a riqueza das nossas diferenças.
O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 04-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Desde sempre, as cidades são lugares de conflitos, da guerra ao racismo, passando pelo ódio religioso. Porém, enquanto a resposta dos Estados nacionais foi, ao longo da história, a militarização do conflito, as cidades tenderam a administrar os conflitos com os comércios e com a atividade cívica. A guerra faz parte do DNA dos Estados nacionais, mas não do das cidades, salvo naturalmente que sejam fortalezas militares ou cidades-Estado, como Gênova em 1500.
Estudando as histórias das cidades, surge uma dialética interessante, que contém uma importante lição para os nossos tempos. Frequentemente, a superação de conflitos urbanos levou a uma ampliação dos direitos dos cidadãos. Um dos sujeitos específicos dessa dialética é o grupo dos excluídos: minorias de imigrantes, cidadãos que professam a religião "errada", deficientes físicos e psíquicos. Quando estes (e aqueles que trabalham com eles) pediram e obtiveram direitos de inclusão, o efeito foi que os direitos dos já incluídos – os cidadãos – foram reforçados.
O fato de que nós, incluídos, tenhamos visto os nossos direitos serem reforçados quando os excluídos conseguir obter alguns está em claro contraste com a opinião da sociedade em geral, seja na Itália, seja nos Estados Unidos ou no resto da Europa.
A ideia mais difundida, alimentada pelo medo e pela insegurança, é que aquilo que o imigrante ou o "outro" ganha constitui para nós, incluídos, uma "perda". Mas não há nada de mais equivocado: a exclusão e a discriminação são um câncer no sistema social geral.
É interessante notar como, em mais de uma pesquisa realizada em diversos países do mundo (por exemplo a Pews Global Value Survey) surge que esses mesmos cidadãos que "odeiam" os imigrantes, à pergunta sobre como são os imigrantes vizinhos de casa ou residentes no mesmo bairro, respondem em geral: "Oh, não, eles são ótimas pessoas". Enfim, se chegamos a conhecer o "outro", conseguimos vê-lo como ser humano.
As cidades são espaços de intensas proximidades. O lotado centro da cidade é um espaço com as suas regras invisíveis: independentemente de quantas vezes você se choque com outros transeuntes na multidão apressada, não se percebe nem perigo nem ofensa, continua-se no seu próprio caminho. Mas se alguém vem sobre você no seu bairro tranquilo, esse golpe assume o significado de violência. Essas regras invisíveis que valem no centro das cidades são uma importante "cola" da sociedade civil, que devemos mobilizar para fazer da cidade uma cidade aberta.
Hoje, as cidades estão perdendo a capacidade de tornar a sociedade civil e estão se tornando o campo de diversos novos tipos de conflitos extremos, como a guerra assimétrica e a limpeza étnica e social. Além disso, os espaços lotados e conflituais de cidades esmagadas pela desigualdade e pela injustiça também podem tornar mais agudos e confusos vários tipos de conflitos secundários: das lutas pelo comércio de drogas às catástrofes ambientais que incumbem sobre o nosso futuro.
Tudo isso coloca em risco as tradicionais capacidades comerciais e cívicas que fizeram com que as cidades evitassem cair em guerra quando tiveram que enfrentar conflitos e, além disso, conseguissem incorporar as diversidades de classe social, de cultura, de religião e de etnia.
A subversão da ordem urbana faz parte de uma subversão mais ampla das lógicas organizativas do nosso presente. Isso, por sua vez, desestabiliza a lógica que uniu território, autoridade e direitos na estrutura organizativa proeminente dos nossos tempos, isto é, o Estado nacional, argumento que abordei no meu livro Territorio, autorità, diritti (Ed. Bruno Mondadori, 2009). Esse tipo de ordem urbana que nos presenteou na Europa com a Cidade Aberta, com as suas magníficas praças e edifícios públicos ainda existe, mas sempre mais como ordem visual e sempre menos como ordem social.
O que temos, portanto, diante de nós? Ironicamente, o que mais pode nos ajudar a ir em frente é o fato de que este é também um momento em que as dificuldades são maiores do que as nossas diferenças (guerra assimétrica, catástrofes ambientais, graves desigualdades) e estão começando a tornar o nosso atual modo de viver não mais sustentável.
Nós, agora, sabemos que esse agudo senso de justiça, de vida insustentável, é uma das principais razões daquilo que vimos em Túnis, no Cairo e em Alexandria e depois ainda em outras cidades: a coragem de se opor ao poder militar só com o próprio corpo e com a própria voz.
A gravidade da injustiça e a insustentabilidade da ordem econômica, política e ambiental é que podem representar o impulso para reinventar aquela capacidade das cidades de transformar o conflito em abertura ao invés de guerra. Mas não será a ordem que conhecemos da Cidade Aberta e da sociedade civil como estamos acostumados a representá-la, principalmente na tradição europeia. Será preciso mudar os fundamentos, incluindo uma espécie de desnacionalização do nosso sentido de segurança e uma cidadania cosmopolita como a examinada em um importante projeto de longo prazo, o "Educação ao cosmopolitismo", organizado pela Fundação Intercultura Onlus e dirigido aos jovens.
É nas metrópoles que esse tipo de projeto tem uma possibilidade de êxito: e quanto mais diversificada e complexa é a cidade, maiores são as probabilidades de sucesso.
Nesse sentido, a cidade global é o terreno adaptado para esse tipo de trabalho: internacionalizou a economia, e agora chegou o momento de internacionalizar as pessoas e as culturas.
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O mundo, salvo pelas metrópoles do futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU