O declínio da Teologia da Libertação: uma releitura de 'O novo rosto do clero' de Agenor Brighenti

Imagem: 15ª Estação da Cruz da América Latina, de Adolfo Pérez Esquivel

27 Outubro 2021

 

"Se quisermos entender adequadamente a relação Igreja Católica/catolicismos precisamos levar em consideração a lógica organizacional da igreja católica enquanto corporação e de seus quadros dirigentes, pois ainda que permeáveis às suas tendências internas e a catolicismo vivido na prática, esta estrutura detém seu próprio grau de autonomia e sua própria lógica de funcionamento", escreve Carlos Eduardo Sell, doutor em Sociologia Política e professor da UFSC, ao comentar o livro O novo rosto do clero: perfil dos padres novos no Brasil (Vozes, 2021, 304 p.), de autoria de Agenor Brighenti e coautoria de Alzirinha Rocha de Souza, Andrea Damacena Martins, Antônio José de Almeida, Antônio Manzatto, Brenda Carranza, Fernando Altemeyer Junior, João Décio Passos e Manoel José de Godoy.

 

Eis o artigo. 


Um excelente livro e que vem em muito boa hora. Afinal, como os cientistas sociais, com raras exceções, praticamente deixaram a pesquisa do catolicismo estagnada, concentrando quase todas as suas energias na interrelação entre o pentecostalismo e política, o estudo coordenado por Agenor Brigenthi oferece preciosas pistas para entender como é para onde caminha a Igreja Católica - enquanto instituição - no Brasil.

 

Capa do livro "O novo rosto do clero:
perfil dos padres novos no Brasil", de
Agenor Brighenti (Foto: Editora Vozes)

 

E pela pesquisa não resta dúvida que se trata de uma igreja que vive um intenso processo de mudança e que caminha para um acentuado processo de pluralização interna. O livro aponta para algo que muitos já intuíam, mas ninguém tinha demonstrado objetivamente: a Igreja Católica do Brasil (pós-Vaticano II) já não é mais a mesma de algumas décadas atrás. É um grande achado, mas a grande questão é: quanto, como e por quê?


Pena que a orientação marcadamente prática/pastoral das interpretações dos dados do livro e, principalmente, a opção teológica com os quais eles foram avaliados, tenha inibido uma compreensão mais acurada da complexidade das transformações em curso. Mas meu propósito aqui não é realizar uma crítica ou resenha de seu conteúdo (já muito bem feita por Eliseu Wisniewski aqui no IHU). Busco apenas sugerir algumas pistas para avançar na interpretação sociológica da pesquisa sobre o perfil do clero brasileiro. Além de apontar o potencial teórico do livro para superar alguns obstáculos teóricos da pesquisa sobre a Igreja Católica, também esboço uma hipótese interpretativa sobre uma de suas principais conclusões empíricas: o “declínio” da teologia da libertação.

 


1. A igreja de volta ao foco

 

É praticamente consenso entre os cientistas sociais da religião que é necessário diferenciar entre Igreja Católica e catolicismo, ou seja, entre o aparato estrutural-eclesiástico desta organização religiosa e os diferentes modos através dos quais ele é vivido efetivamente pelos seus membros. Tal distinção permite afirmar, a meu ver corretamente, que a Igreja Católica vai bem, mas o catolicismo, na medida em que seus membros e suas práticas declinam, vai mal. Mas, contribuições à parte, esta dicotomia esconde algumas armadilhas.


Isso porque frente a ela os cientistas sociais strictu sensu tendem a privilegiar o polo sociocultural e, a partir daí, desembocam em uma teoria dos catolicismos: popular, da libertação, carismático, tradicionalista, etc.. Enquanto esta tendência praticamente suprime o peso da Igreja Católica enquanto organização social da análise, os intelectuais orgânicos da Igreja Católica, como seria de se esperar, dão grande ênfase ao polo institucional, lançando-se na elaboração de diferentes “modelos” de igreja.


O problema é que tais modelos, além de idealizados, são utilizados muito mais em função de suas disputas intramuros do que da compreensão empírica da correlação de forças internas que moldam o perfil da igreja. Nesta segunda tendência se enquadra o presente livro que acabou reduzindo quatro “cenários” de igreja propostos na obra de João Batista Libânio a dois polos assimétricos, denominados, respectivamente, de modelo institucional/carismático x evangelização/libertação[1] . Trata-se de aporte dicotômico que reproduz inadvertidamente o maniqueísmo da divisão direita/esquerda.


Meu ponto é que em, ambas as tendências analíticas acima, o papel da “igreja oficial” como variável causal-explicativa independente fica obscurecido: ele é um ponto cego ou um peso morto da análise.


No primeiro caso porque os diferentes tipos de expressões de catolicismo (popular, carismático, libertação, tradicionalista, etc.) são pensados sem considerar consistentemente seus fluxos e entrelaçamentos com a estrutura institucional católica. E no segundo porque os assim chamados modelos de igreja são colocados lado a lado com a estrutura institucional realmente vigente, como se estivéssemos tratando de realidades idênticas: convenhamos, não faz sentido situar a igreja instituição (todo) ao lado da tendência carismática (parte) e separar ambas do catolicismo da libertação (parte).


Conclusão, se quisermos entender adequadamente a relação igreja católica/catolicismos precisamos levar em consideração a lógica organizacional da igreja católica enquanto corporação e de seus quadros dirigentes, pois ainda que permeáveis às suas tendências internas e ao catolicismo vivido na prática, esta estrutura detém seu próprio grau de autonomia e sua própria lógica de funcionamento.


2. O declínio da teologia da libertação


Além de suas intuições teóricas, o livro de Brigenthi e seus colaboradores também contém muito material empírico à espera de análises mais detidas, pois aborda também a percepção de leigos, jovens, seminaristas e religiosas sobre a sociedade, a igreja e os presbíteros [2]. Mas não resta dúvida que seu principal tesourou empírico é a rica amostra de padres pesquisados, pois eles conseguiram abordar 157 (cerca de 0.6%) dos presbíteros brasileiros (cujo total é de cerca de 27,3 mil), o que, dadas as dificuldades deste tipo de pesquisa, não deixa de ser significativo.

 

Comparando diferentes gerações, a pesquisa constatou que 59 % dos padres entrevistados - e, dentre eles, 64% dos padres mais jovens - acham que o Concílio Vaticano II está avançando. Este índice chega a 59% dos padres em geral (74% entre os padres mais jovens) quando se trata do avanço da Tradição latino-americana (Conferências de Medellín/Puebla/Santo Domingo/Aparecida). Ocorre que, surpreendentemente, apenas 36% dos padres em geral explicitaram uma visão claramente positiva da teologia da libertação e, quando se trata dos padres mais jovens, este índice cai para o minguado número de 16%. Não resta dúvida: a teologia da libertação está em crise.

 

Ao interpretar estes dados, os organizadores do livro, perplexos, aferraram-se a visão rígida e linear pela qual (1) o Vaticano II, (2) e os documentos das Conferências episcopais latino-americanas e a (3) Teologia da libertação fazem parte de uma cadeia dedutiva na qual cada elemento da tríade, reclama, necessariamente, o outro. Por este viés, sem a teologia da libertação, nem a tradição latino-americana e nem o Vaticano II são considerados válidos. O veredicto final: extra theologia liberationis nulla salus.

 

Com este julgamento teológico peremptório perdeu-se a chance de entender, para além do mero lamento do “retrocesso”, da “involução”, “volta à disciplina” e etc; porque os entrevistados desconectam a teologia da libertação do restante do conjunto, principalmente dos documentos da tradição latino-americana. Falar em declínio ou perda de hegemonia não deixa de estar correto, mas estas são apenas descrições e não explicações causais. O mais importante me parece perceber a mudança de status do catolicismo da libertação no seio da Igreja Católica brasileira. Minha hipótese é que estamos frente a dois processos inter-relacionados que, dado o limite de espaço, posso apenas esboçar: trata-se simultaneamente de um processo de 1) institucionalização seletiva, ao mesmo tempo em que representa a 2) periferização do catolicismo da libertação. Explico:

 

1. A hipótese da institucionalização diz respeito à oficialização de parte do repertório da teologia da libertação no âmbito do magistério universal e da igreja latino-americana e suas conferências episcopais. Esta institucionalização seletiva não deixa de ser, a seu modo, uma burocratização. É basicamente esta versão oficial/moderada do repertório da teologia da libertação que a maioria dos jovens padres reconhece como legítima.

 

2. A hipótese da periferização da catolicismo da libertação sugere que, para a maioria dos padres mais jovens, a teologia da libertação é percebida como uma corrente de pensamento e, principalmente, como tendência interna da igreja. Por não possuir caráter oficial vinculante, ela representa tão somente uma opção entre outras. Ela é não mais percebida como “outro modo de ser igreja”, mas apenas como “mais um modo de ser na igreja”. Nesta acepção, o catolicismo da libertação vem perdendo cada vez mais atratividade.


Nos termos do sociólogo Max Weber, vale dizer: o catolicismo da libertação passou da fase do “carisma” para a fase da “burocracia”. O novo clero católico tende a aceitar como legítimo aquilo que está sancionado oficialmente, aí incluídos os elementos da teologia da libertação incorporados nos documentos da igreja. Mas há pouca aderência à pretensão de que o modelo eclesiológico e sócio-pastoral da teologia da libertação defina a igreja em sua totalidade. Quando está integrada no todo, os elementos da teologia da libertação são sancionados positivamente; mas percebida como parte que se opõe ou pretenda absorver o todo, ela é sancionada negativamente.


A explicação da dissociação constatada passa, portanto, pelas dobras do oficial/inoficial, do todo/parte, do que é magistério e do que é teologia. O paradoxo é que a vitória parcial da teologia da libertação é, ao mesmo tempo, sua derrota enquanto movimento. Por isso, quanto mais a teologia da libertação apela para sua lógica identitária antissistema, mais isolada ela parece ficar. Tem razão, portanto, os teólogos da libertação quando enxergam no papa Francisco sua tábua de salvação: extra eclesia nula salus.

 

3. O caminho continua



Com disseram os autores do livro, a pesquisa traz dados que inquietam e eles mesmo prometem, em futuras publicações, explorar ainda mais os seus achados. De fato, se quisermos entender porque o clero católico e, junto com ele, o perfil da Igreja Católica enquanto instituição social está se tornando internamente mais oficialista e, ao mesmo tempo, mais plural, precisamos ir além de explicações macro-externalistas que vão em busca de culpados, seja ele o individualismo hiper-moderno ou mesmo uma caricatura simplista dos papados de João Paulo II e Bento XVI, sem falar da sempre malvada cúria romana. Para além dessa superfície, é preciso mergulhar mais detidamente nos âmbitos da socialização do clero e, principalmente, pensar a organização sócio-religiosa católica no âmbito do campo religioso brasileiro, isso para não falar do próprio campo de poder na Igreja Católica e suas disputas internas. Em suma, as explicações devem ser buscadas no contexto da lógica religiosa propriamente dita. O segredo não está lá fora, mas bem próximo de nós.

 

Notas: 

 

[1] O modelo da “evangelização”, por sinal, não parece se distinguir do modelo da “libertação” e não vejo correspondência para ele no plano real/empírico.

[2] Embora não fique claro, nas suas explicações metodológicas se os jovens entrevistados pertencem ao conjunto dos leigos ou foram considerados de forma separada. O livro também não discute a representatividade estatística destes segmentos.

 

Leia mais