60% da Caatinga já foi modificada por atividades humanas. Entrevista especial com Cristina Baldauf

A restauração do bioma depende da solidificação de dois pilares: a convivência com o semiárido e o envolvimento das populações tradicionais na conservação da Caatinga

Estação Ecológica Federal Raso da Catarina (Foto: Ministério do Meio Ambiente)

Por: Por João Vitor Santos | Edição Patricia Fachin | 05 Março 2020

Associar a Caatinga à seca não é incorreto, mas “é insuficiente” para compreender o bioma que ocupa aproximadamente 10% do território brasileiro e perpassa alguns estados do Nordeste e uma pequena parte do Sudeste, diz a bióloga Cristina Baldauf à IHU On-Line. Segundo ela, a associação do bioma à seca e à improdutividade “emerge de uma tendência imagético-discursiva historicamente construída de representar a Caatinga/Sertão como um espaço pobre em todos os sentidos, inclusive em termos de biodiversidade”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Cristina chama atenção para o risco de desertificação da Caatinga, que está classificado entre alto e moderado. “Hoje considera-se que cerca de 13% das áreas do semiárido brasileiro podem ser classificadas como semidesérticas”, informa. Um dos principais fatores da degradação, exemplifica, “é a exploração comercial de lenha para alimentar os polos de produção de gesso e cerâmica, bem como para a produção de carvão”. A agricultura comercial voltada para a exportação e a pecuária em grande escala também contribuem para o agravamento deste cenário e geram violações de direitos humanos onde há grandes empreendimentos. “A pecuária em grande escala também causa impactos ao bioma através da conversão de extensas áreas naturais em pastagens. Estas pastagens são implementadas com uso de agrotóxicos que, por sua vez, contaminam o solo, os recursos hídricos, a biodiversidade, além de afetar consideravelmente a saúde humana”.

Cristina Baldauf (Foto: Arquivo Pessoal)

Cristina Baldauf é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestra em Biologia Vegetal pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e doutora em Biologia Vegetal pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente leciona na Universidade Federal Rural do Semiárido - Ufersa e coordena o Laboratório de Etnoecologia e Biodiversidade da universidade.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Por que a Caatinga é considerada o único bioma exclusivamente brasileiro?

Cristina Baldauf - Existem diversas definições de bioma, mas geralmente entende-se que cada bioma seja representado por um tipo relativamente uniforme de ambiente, classificado de acordo com o clima e tipo de vegetação (fitofisionomia) dominante. Na Caatinga predomina a Floresta Tropical Sazonalmente Seca - FTSS, um bioma global caracterizado por florestas que ocorrem em regiões tropicais e possuem uma estação seca com baixíssima ou nenhuma precipitação. As florestas secas ocorrem na América do Sul e nos outros continentes. Nesse contexto, a Caatinga não é um bioma exclusivamente brasileiro. Por outro lado, a Caatinga é muito rica em espécies que só ocorrem nela (endêmicas), além de representar a maior área de FTSS na América do Sul. Mas então por que tanta gente diz que ela é “exclusivamente brasileira”? Eu imagino que essa ideia tenha se espraiado a partir de um livro seminal sobre a Caatinga publicado pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE em 2003. Neste livro, os organizadores afirmam: “A Caatinga é o único bioma restrito ao território brasileiro”. Isso quer dizer que a Caatinga não atravessa as fronteiras de nenhum país, ao contrário da Mata Atlântica ou dos Campos Sulinos, cujas distribuições chegam na Argentina. No meu entendimento, esse fato não transforma a Caatinga no “único bioma exclusivamente brasileiro”. Como diz o jornalista Leonardo Sakamoto, “falta amor no mundo, mas falta interpretação de texto”.

Mapa da Caatinga (Ilustração: Conservação Internacional)

IHU On-Line - A Caatinga é frequentemente associada com a seca e baixa biodiversidade. Quais são os equívocos quando se pensa no bioma Caatinga?

Cristina Baldauf - A associação com a seca não é incorreta, porém é insuficiente. Ela emerge de uma tendência imagético-discursiva historicamente construída de representar a Caatinga/Sertão como um espaço pobre em todos os sentidos, inclusive em termos de biodiversidade. Entretanto, como revela o nome do bioma, a Caatinga é “sazonalmente seca”, já que existe uma alternância entre estações secas e chuvosas, ainda que possam ocorrer sequências de anos sem chuva. É justamente essa sazonalidade que permite a existência de um grande número de espécies, muitas endêmicas como já mencionado. Além disso, a associação entre Caatinga e baixa biodiversidade pode ser parcialmente atribuída ao desconhecimento científico do bioma, já que existem muito mais oportunidades de financiamento para pesquisa em florestas tropicais úmidas como a Amazônica. Na última década, esse cenário começou a mudar e o aumento do número de projetos de pesquisa e publicações acerca da biodiversidade da Caatinga permitiu ressignificá-la como um bioma não só de grande biodiversidade, mas também de alta diversidade cultural.

IHU On-Line - Em que condições se encontra a Caatinga brasileira? Existe a ameaça de desertificação? Quais são os principais vetores de sua degradação?

Cristina Baldauf - Estudos recentes revelaram que cerca de 60% da Caatinga já foi modificada pelas atividades humanas e que sua vegetação se encontra muito fragmentada. Metade da vegetação remanescente está conservada em fragmentos grandes, o que é ótimo, entretanto, todos esses fragmentos sofrem perturbações, como retirada de lenha e pastejo animal. No que tange à desertificação, a maior parte da Caatinga pode ser classificada entre risco moderado e alto de desertificação, o que é bastante preocupante. Existem áreas que já sofreram esse processo, os chamados núcleos de desertificação. Hoje considera-se que cerca de 13% das áreas do semiárido brasileiro podem ser classificadas como semidesérticas.

Um dos principais vetores de degradação da Caatinga é a exploração comercial de lenha para alimentar os polos de produção de gesso e cerâmica, bem como para a produção de carvão. Outra atividade econômica que causa impactos significativos, ao converter grandes áreas de Caatinga em plantações, é a agricultura comercial voltada para a exportação. Esse tipo de agricultura é baseado em um modelo insustentável tanto do ponto de vista ecológico quanto social, já que além de degradar a Caatinga, vem gerando um grande número de violações de direitos humanos, especialmente nas regiões dos perímetros irrigados e grandes empreendimentos. A pecuária em grande escala também causa impactos ao bioma através da conversão de extensas áreas naturais em pastagens. Estas pastagens são implementadas com uso de agrotóxicos que, por sua vez, contaminam o solo, os recursos hídricos, a biodiversidade, além de afetar consideravelmente a saúde humana.

IHU On-Line - Um projeto inovador na preservação da Caatinga é o recaatingamento. Como se desenvolve esse projeto? Ele já está em curso?

Cristina Baldauf - Esse projeto é desenvolvido por uma ONG de Juazeiro da Bahia (Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada - IRPAA) e visa recompor a cobertura florestal da Caatinga a partir dos saberes ecológicos e experiências de manejo das comunidades de Fundo de Pasto. Essas comunidades tradicionais se caracterizam pela posse e uso comunitário da terra, onde praticam atividades agropastoris e resistem de forma organizada às ameaças do agronegócio e de grileiros, inclusive da chamada “grilagem verde” (apropriação de terras e posterior expulsão de seus moradores visando a conservação ambiental). Apesar de não conhecer o projeto em profundidade, acredito que ele está baseado em dois pilares fundamentais, que são a convivência com o semiárido e o envolvimento das populações tradicionais na conservação da Caatinga.

IHU On-Line - Além do recaatingamento, existem outros projetos de preservação do bioma?

Cristina Baldauf - Existe um grande número de iniciativas visando a conservação, o manejo sustentável de recursos (ou bens naturais comuns) e a restauração da Caatinga, tanto por parte das universidades da região Nordeste, quanto de ONGs, sindicatos rurais, populações tradicionais e outros atores sociais. Muitas destas experiências, como por exemplo, o manejo agroecológico da Caatinga realizado em assentamentos rurais do Rio Grande do Norte, são fundamentadas no conhecimento ecológico das comunidades tradicionais e locais. No entanto, grande parte dessas iniciativas encontra dificuldades de continuidade em função da ausência de políticas públicas para se tornarem perenes, além de enfrentarem as ameaças associadas à expansão da fronteira agropecuária na Caatinga.

IHU On-Line - Os estados do Nordeste majoritariamente são governados por lideranças identificadas com a esquerda ou com o progressismo. Há uma sensibilidade desses governos para os problemas ecológicos?

Cristina Baldauf - Sem dúvida existem iniciativas importantes em áreas como gestão de resíduos sólidos e educação ambiental, por exemplo. Por outro lado, o licenciamento e a fiscalização ambiental ainda são muito frágeis, favorecendo o modelo desenvolvimentista, que nunca foi abandonado nestes estados. Um exemplo emblemático é o estado do Ceará que, se por um lado implementou o ICMS socioambiental e outros programas/projetos na área ambiental, por outro, permanece isentando 100% do imposto sobre os agrotóxicos. Infelizmente, esse cenário reflete uma realidade mais ampla, já que nenhum governo progressista da América Latina rompeu com o (neo)desenvolvimento, nem mesmo os que incorporaram os direitos da Terra e o “Buen Vivir” em suas constituições.

Parque Nacional Cavernas do Peruaçu (Foto: Ministério do Meio Ambiente))


IHU On-Line - Quais são as políticas públicas importantes para a preservação da Caatinga?

Cristina Baldauf - São necessárias políticas públicas que apoiem e fortaleçam a restauração da Caatinga, o manejo sustentável florestal de produtos madeireiros e não madeireiros, o manejo ecológico do solo e recursos hídricos, bem como a agricultura e pecuária de base agroecológica, pois a conservação da Caatinga não pode prescindir da soberania alimentar de suas populações. Neste contexto, políticas públicas que revertam a concentração fundiária do semiárido também são imprescindíveis. Além disso, os programas de transferência de renda também cumprem um papel importante na conservação da Caatinga. Estudos ainda não publicados da Universidade Federal do Piauí sugerem que ocorreu redução significativa da caça de animais silvestres devido ao Bolsa Família. No entanto, ainda que as atividades de subsistência (caça, uso de lenha e agricultura de pequena escala) gerem impactos ecológicos, é preciso desmistificar que a pobreza seja a principal causa da degradação da Caatinga e focar no combate ao desmatamento em grande escala causado pelo agronegócio e pelas indústrias de gesso, cerâmica e carvão. Finalmente, é importante aumentar o número de áreas protegidas, especialmente de uso sustentável, já que as de proteção integral podem aprofundar a pobreza nas áreas de alta biodiversidade da Caatinga.

IHU On-Line - O que tem sido feito em termos de políticas públicas para preservar o bioma?

Cristina Baldauf - O Brasil é signatário da convenção da ONU de combate à desertificação e, em decorrência desse compromisso, elaborou a Política Nacional de Combate e Prevenção à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca. Neste contexto, surgiram a Articulação do Semiárido Brasileiro - ASA e os programas de captação de água da chuva, os quais possibilitaram que o Brasil saísse do Mapa da Fome da FAO. Por outro lado, o Brasil não conseguiu cumprir a maioria dos objetivos desta convenção, visto que estes dependem de um ambiente político favorável às questões socioambientais para sua implementação.

Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4.623/19 que trata da conservação, restauração e do uso sustentável do bioma Caatinga e retoma muitos dos objetivos da convenção de combate à desertificação. Ele ainda abriga propostas muito interessantes para conservar a Caatinga sem criminalizar as populações de baixa renda. Entretanto, acho pouco provável sua aprovação e execução, pelo menos nos próximos anos. Mas quero muito estar errada. Aliás, acredito que a sazonalidade da Caatinga também sirva para não nos deixar esquecer que é possível passar por períodos difíceis e voltar a florescer.

 

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