“Falar da classe média é discutir a desigualdade”. Entrevista com Sergio Visacovsky

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02 Novembro 2017

“Um dia estava lendo em um café de Palermo (Buenos Aires, Argentina). Lá dentro, estávamos com ar condicionado porque fazia um calor tremendo e fora alguns pedreiros trabalhavam em pleno sol. Então, decidi tirar uma foto da situação, daquele vidro que separava e que servia como fronteira entre aqueles que gozavam do acesso aos bens de consumo e aqueles que jamais acessariam”, aponta o doutor Sergio Visacovsky, uma das principais referências que a Argentina possui no estudo da classe média. O que aconteceu foi que aquele instante de iluminação, rapto criativo, teve a virtude de condensar boa parte de todas as explicações vigentes acerca de seu objeto-sujeito de estudo.

Embora o conceito de “classe” comece a circular no século XVIII, a terminologia (de acordo com estudos ingleses e franceses) se consolida em 1820. E mesmo que 200 anos depois ainda não fique muito claro qual será a melhor maneira de definir a classe média, é possível estar seguros de algo: os discursos que são tecidos quando se apela a sua entidade são utilizados pelos sucessivos governos para justificar a necessidade de políticas públicas orientadas ao setor. Deste modo, a linguagem se faz carne, as palavras se materializam e produzem efeitos, porque como destaca Visacovsky, na atualidade, “falar da classe média é uma maneira de discutir a desigualdade”.

Deste modo, as questões se acumulam e fazem fila: em 2017, é possível falar de uma sociedade de classes? Com base em quais critérios poderia ser definida a classe média na Argentina? Basta contemplar os ingressos econômicos ou também é necessário incorporar outras variáveis como as trajetórias socioeducativas, os espaços de sociabilidade, as possibilidades de progresso? Sergio Visacovsky responde e discute a esse respeito.

Visacovsky é doutor em Antropologia Cultural pela Universidade de Utrecht, Países Baixos, graduado em Ciências Antropológicas pela Universidade de Buenos Aires. Além disso, atua como pesquisador principal no Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET).

A entrevista é de Pablo Esteban, publicada por Página/12, 01-11-2017. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Como foi cursar antropologia durante a última etapa da ditadura?

Eram tempos em que nós, estudantes, recebíamos uma formação pobre, enviesada e obtusa. Por isso, dificultava pensar no desenvolvimento de uma vocação quando cursávamos uma carreira na qual certos autores e linhas de pesquisa eram proibidas. Existia uma enorme desconexão com os grandes centros mundiais de pensamento (Estados Unidos, Europa e inclusive Brasil), tanto que tive que esperar o encerramento da graduação para ler textos de Claude Lévi-Strauss. Será mais tarde, quando a antropologia começa a se enriquecer com a habilitação e a chegada de novas leituras e escolas de pensamento. Naquele momento, já me interessava por um tipo de pesquisa antropológica mais ligada aos contextos urbanos, próximos e cotidianos.

E quando chega a preocupação pelo estudo da classe média?

É uma preocupação que emerge após o doutorado, que surge entre a necessidade de encontrar uma temática de pesquisa nova e meu interesse em localizar um recorte de um objeto que se relacionasse ao contexto da realidade argentina. Comecei a pensar no estudo da classe média, interpelado pelos panelaços, a violência e a repressão de dezembro de 2001. A primeira coisa que me dei conta é que se pretendia estudar a classe média como um “grande sujeito” que desenvolvia comportamentos, valores e formas de pensamento identificáveis – e que respondia de uma maneira determinada frente a certas condições –, teria sérios problemas de ordem empírica.

Como quais?

O que acontece é que tendemos a definir a classe média unicamente a partir de indicadores quantitativamente significativos, como os bens de ingresso. Muitas vezes, esta abordagem é utilizada por organismos mundiais para medir o crescimento econômico ou, então, para calcular qual a porcentagem de pessoas de uma nação se encontra abaixo da linha da pobreza. O problema, então, é seu emprego acrítico em estudos históricos e sociológicos. Existe uma variabilidade muito alta de fatores que ficam relegados ao interior de uma só categoria que as compreende. De modo inevitável, sempre haverá uma inadequação entre a categoria e a heterogeneidade que busca representar.

Qual é a opção então?

Assumir com seriedade que aqueles aspectos que na definição corrente de classe média não são explicáveis, na verdade são decisivos. Devemos avaliar por que as pessoas se comportam sob certas condições, por que agem como agem, por que pensam de um modo e não de outro, como constroem suas crenças, seus juízos, suas ideias.

Neste sentido, se a categoria de “classe média” é tão heterogênea e escorregadia, por que possui tanta vigência?

Penso que embora do ponto de vista conceitual a classe média não defina algo específico, possui uma importância significativa que a torna suscetível de ser estudada. É uma noção utilizada por populações inteiras, que faz parte do senso comum e do mundo globalizado. O que resulta significativo – e em algum ponto devemos procurar entender – é seu caráter social: uma categoria que é utilizada por determinados grupos sociais para se identificar e se diferenciar. Permite construir limites, tanto de maneira explícita como de forma implícita, porque muitas vezes atuamos de modo inconsciente quando estabelecemos fronteiras. O objetivo é passar de um uso instrumental a outro capaz de desentranhar e exibir em que medida o apelo à “classe média” produz ações e transformações nas realidades palpáveis e materiais dos humanos.

Trata-se de ações que as pessoas fazem em nome da classe média, apesar de não compreender muito bem a que refere o conceito.

Exato. Por isso, preocupamo-nos pelo modo como a noção se constrói na história e também pelas maneiras em que adquire um lugar no espaço público. Trata-se de uma construção que não pode ser pensada só como algo inevitável do desenvolvimento do capitalismo, mas que em cada contexto nacional adquire particularidades.

Custa-me compreender de que maneira falar de “sociedade de classes” continua sendo operativo em um contexto como o atual. Sua conceitualização, outra vez, se torna inevitável.

Há duas maneiras de pensar as classes sociais: por um lado, como estruturas objetivas que condicionam as ações dos seres humanos e, por outro, como discursos que configuram um modo de falar sobre a desigualdade. Esta última conceitualização me resulta interessante porque convida a pensar a classe média como uma forma de linguagem, como um modo de classificar.

Uma forma de linguagem que tem seu correlato em ações concretas.

É claro. O problema contido nesta última perspectiva é que não é possível se desentender das condições que favorecem certas formas de classificação e não outras. Então, torna-se necessário abrir o leque, pois se poderia suprimir o conceito de classe social, mas não a desigualdade. Nesta linha, o propósito é correr o eixo da classe social entendida a partir de uma visão universal e objetivista, para outro enfoque que resgate sua existência social e valorize as peculiaridades de cada contexto como fatores substantivos. É necessário analisar o modo como o estado (ou os estados de diversos países), a partir de suas políticas públicas, compreende seu significado. É o poder público que enche de conteúdos esse espaço e que decide, com base em discursos e formas de linguagem, ações que regulam aspectos centrais da vida social como o matrimônio, a descendência e a circulação de bens.

E, neste marco, o que é a mobilidade social? Que vigência o conceito possui? Em princípio, pressupõe que as populações sempre apontam ao progresso.

Quando comecei com minhas pesquisas, reunia-me de maneira periódica com diferentes grupos sociais que se identificavam como parte da classe média e que, após a crise de 2001, sentiam-se despontados. Manifestavam que “tinham feito tudo certo”, que “tinham cumprido com seus deveres cidadãos”, mas que naquele momento “passavam mal” porque os governos atendiam e privilegiavam “aqueles setores que pretendiam viver do Estado” e conquistar objetivos sem esforço, porque eram “preguiçosos” e “cabecinhas pretas”. Seus discursos permitiam entrever com facilidade que seu fracasso não tinha a ver com suas próprias responsabilidades, porque sentiam que tinham realizado tudo corretamente e que tinham procedido moralmente bem.

O mérito.

Exato. O que acontecia era que esses grupos não conseguiam cumprir com o sonho da mobilidade social ascendente, que rememorava a velha cultura do trabalho e o esforço. Aqui, também é discutível a relação (quase) casual entre imigração europeia, mobilidade social ascendente e classe média. Um relato de origem que se atualiza de maneira constante e promove uma dimensão moral que tende ao estigma, porque apesar de fazer parte do discurso, tem seus efeitos. Sem ir muito longe, quando Mauricio Macri apelava durante a campanha à “necessidade de voltar a ser um país de classe média”, recorria de forma precisa a tal tipo de sentido.

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