O que resta do padre? Um pároco responde

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01 Julho 2017

Como os leitores sabem, o Pe. Armando Matteo escreveu três artigos intitulados “O que resta do padre?”. Título e conteúdos têm uma boa dose de provocação. Um pároco – o Pe. Maurizio Fileni –, depois da leitura do primeiro artigo, reagiu de modo enérgico. Depois de ler também os outros dois artigos, escreveu uma carta ao Pe. Armando, para mostrar que, se houver um pouco de paixão pastoral, algo resta do padre, apesar da mudança das situações e das sensibilidades.

Publicado por Settimana News, 28-06-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a carta.

Castelbellino Stazione, 24 de junho de 2017

Caro Pe. Armando,

Quanta carne no fogo! Quase a ponto de se perder no meio dela.

Sabe o que eu fiz, então? Corri até o meu padre espiritual (eu sou antigo demais e tenho um padre espiritual): um grande pároco de pele grossa e muitas manchas de óleo na frente da sua túnica; um grande pároco que me coloca sob sujeição e, no fim, sempre me diz que eu faço bem o que eu faço, e eu continuo...

Corri até ele e lhe levei as folhas (sim, ele não tem computador). Eles as leu. Depois, olhou-me e me disse: “Problema seu: agora o que você vai lhe responder?”.

Eu, calado.

“Como? Você não sabe!? Então, não deveria ter lhe escrito, macaco (é um eufemismo).” Ele não tem palavras muito bonitas em relação a mim. Desde sempre.

“Sim, mas e agora?”, digo eu.

E ele: “Com calma – disse-me –, com calma. Você deve refletir bem: muito bem”.

Eu, calado.

“Como você leu muito poucos livros de teologia (você só leu romances e contos) e ele, ao contrário, sim – enfureceu-se –, você pode e deve colocar no prato da balança o fruto dos seus anos de presbiterado. Só isso. O que você entendeu disso?”

“Eu não sei!”

“Como não sabe?! Vá para casa e repense nos seus anos de padre: faça um resumo e, depois, envie-me.”

Caro Pe. Armando,

Eu obedeço ao meu padre espiritual, caso contrário, o que devo fazer?

E, esta noite, pus-me a pensar; mas, mais do que a pensar, vieram-me à mente episódios, fatos que marcaram minha vida e que a orientaram.

Fui me encontrar com o meu padre espiritual nesta manhã: ele é pároco de uma paroquiazinha a quatro quilômetros de distância daqui. Ele estava tomando café da manhã e me convidou. Eu aceitei, assim não tinha que preparar o meu sozinho! Enquanto tomávamos o café, eu lhe disse aquilo que a noite me fez amadurecer.

Ele ficou calado, bebeu aquilo que restava do café com leite na xícara e me disse: “Escreve isso”.

E assim faço.

Caro Pe. Armando,

Ok.

Todas as dificuldades que o padre hoje encontra entre os seus pés, o senhor listou todas. Acho que não falta nenhuma.

O pobre padre, na minha opinião, diante do que você listou, faria bem em apresentar a renúncia (irrevogável, certamente), depois fazer uma trouxinha e ir se retirar (com a permissão do Isis) à Tebaida.

Ele sofreria um pouco de fome e um pouco de sede, mas, no fim das contas, saberia o que fazer e teria certezas, enquanto aqui, diante do despojamento do seu papel (não desejada por ele, mas real), não: estaria psicologicamente pior.

Enquanto eu lia os seus três capítulos, veio-me à mente a figura do profeta Jeremias: ele também é o “profeta da falta”.

Ele viveu em um contexto semelhante ao que você descreve e que todos vivemos. Ele é profeta em um momento em que entram em colapso todos os pontos de referência, os valores fundamentais do povo judeu: não há mais a terra prometida, eles vivem em uma terra estrangeira que fala uma língua diferente, erradicados da própria tradição, sem templo, sem a Lei, sem a Torá, sem a instituição sacerdotal, sem o culto, os sacrifícios.

O povo judeu que, para se salvar e para dar um tiro no próprio pé, torna-se como os outros povos (homologação): alia-se com os poderosos, inventa políticas de compromisso, confia mais nos homens do que em Deus.

Jeremias e Ezequiel vão por aí com um jugo sobre as costas, amarram-se e, por seis meses, ficam mudos. Denunciam apenas uma coisa: a falta da fé-confiança em Deus por parte dos judeus. Denunciam a ausência de Deus nos seus corações.

Diante de toda essa confusão, sou levado a não fazer “jeremiadas”, embora não esteja disposto a fechar os olhos e, por isso, agradeço-lhe pelas intuições que me ofereceu.

Até porque, na minha vida de padre (40 anos de exercício presbiteral e sempre em contato com as pessoas), eu descobri que há, pelo menos, algumas coisinhas que podem ser molas de retomada ou picaretas para derrubar esse muro de pessimismo-realismo que você construiu tão bem.

a) O primeiro é o exercício da acolhida.

É uma enorme potencialidade que nós, padres-párocos, temos nas mãos. Hoje, além disso, mais eficaz e necessária do que nunca. De verdade.

Acolhida não como a do vendedor que está interessado em lhe acolher bem para que você compre mais. Não: estou falando da acolhida fundada sobre a fé que o padre tem e, portanto, naquele momento, acolhe em nome de Jesus, em nome de Deus.

Não vou ficar aqui listando casos ou contando fatos e episódios, até porque você deve ter outros e até mais.

Porém, todas as vezes que eu acolhi cordialmente e de braços escancarados e com o coração aberto uma pessoa ou um casal, passou tanto daquela graça de Deus que é impensável quantificá-la.

É um clássico e acontece com todos; indistintamente a todos os padres deste mundo. E isso lhe parece pouco? Não, não: é decisivamente muito.

Ontem de manhã, por exemplo, eu estava na igreja (eu vivo em um bairro periférico de constituição muito moderna; anonimato imperante. Um bairro como os da terceira ou quarta faixa de Roma ou de Milão, apenas para nos entendermos): sozinho, pensando e fazendo companhia ao Senhor. Entra uma mulher: da minha idade, mais ou menos.

“Pode me marcar uma missa?”

E eu: “Sente-se, aqui, perto de mim” – e, depois, as clássicas perguntas: “Onde você mora? Está aposentada? Filhos? Saúde? Casa?...”

Ela me conta coisas incríveis, ou incríveis para mim. Dois irmãos falecidos no arco de seis meses. Um filho acompanhado por uma garçonete holandesa que começou a beber... Uma hora entre olhos lúcidos e lenços de papel embebidos em lágrimas e muco.

“Vá se colocar lá, na frente daquela lá – no fim, eu lhe indiquei a estátua de Nossa Senhora – e reze para ela.”

Ela foi: o que elas se disseram, eu não sei, mas os soluços podiam ser ouvidos por toda a igreja.

Depois, ela foi embora (ambos nos esquecemos da missa!!!).

“Obrigada”, ela me disse no arco da porta. “De quê?”. Ela fez uma careta, e eu entendi tudo.

A acolhida!

É uma potencialidade enorme que temos entre as mãos, nós, padres (assim me parece), que usamos muito pouco.

Todos correm, todos têm a vida esticada ao máximo: nós temos a capacidade de parar o tempo a essa corrida infinita e inútil.

Não é nada? Não podemos dizer e dar nada?

Eles estão sob o machado da produção; devem produzir: nós, não. Para eles, o tempo é dinheiro: para nós, não.

Com esta atitude, não temos nada a dizer?

Enlouquecidos com tudo aquilo que têm de fazer, devem se refugiar nos psicólogos, mas obtêm pouco com isso, porque há o caruncho do dinheiro (os psicólogos querem dinheiro: não trabalham (é um trabalho!!!) de graça; não fazem performances (performances!!! Como as putas!) grátis.

Bem, em suma: todas as vezes que eu acolhi não bem, mas muito bem uma pessoa, eu sempre obtive os benefícios. Multiplicados por não sei quanto.

Contaram-me, agora que me lembro, que Albert Einstein (declaradamente não crente), todas as vezes que estava em Florença, fazia-se acompanhar em Fiesole no mosteiro dos capuchinhos.

Sabe por quê? Porque ele queria ver e rever de novo aquele fradezinho que estava no arco da porta e que presenteava um belíssimo sorriso a todos os visitantes!!!

Esses somos nós! Não temos nada a dizer para as pessoas? Nada de nada? E quem disse? Nós temos muitíssimo para dar; de decisivo; de preciosíssimo: somente se quiséssemos.

Você me fala de mudança de linguagem: eu sei disso, porque eu experimento isso em mim mesmo, mas eu também sei que possuo alguma coisa e que posso comunicá-la com a única linguagem que funciona agora: a linguagem do amor.

b) A segunda arma que temos nas mãos é o tocar com as mãos.

Em outras palavras, devemos envolver a nossa pessoa com a das pessoas. Como, aliás, Jesus fez naqueles três anos durante os quais mudou o mundo.

Você já deve ter notado que Jesus, quando passou fazendo o bem a todos, teve um estilo totalmente particular: o de tocar as pessoas e de se fazer tocar.

Àquela pessoa da mão atrofiada, ele lhe disse: “Dê-me a sua mão” e a colocou entre as suas.

A outro... “fez uma pasta com a saliva e o pó e depois a espalhou sobre os olhos...”.

Ao cego, “tomou-o pelo braço e levou-o para fora do povoado...”.

A outro “soprou-lhe na boca”.

Ao jovem morto... “pegou-lhe a mão e o levantou e, depois, deu-o à sua mãe...”.

E o Talita Kum? “E a tomou pela mão e a fez se sentar no leito.”

Bem, em suma: Jesus, no seu estilo, tocava as pessoas: não se mantinha à distância delas. Só os funcionários se mantêm à distância. Você já viu quando você vai aos correios ou aos escritórios das ferrovias do Estado? Até mesmo nas prisões, dizem-me. Há vidro e, para se entender melhor, há um microfone.

Quando nós, padres, mantemo-nos à distância das pessoas, é como se interpuséssemos um vidro e falássemos através do microfone. E isso não faz passar a graça de Deus. Não.

Eu lhe digo: a graça, se não houver o contato humano (físico), não passa.

Toda as vezes que eu envolvi a minha vida com a das pessoas, eu favoreci o Senhor e a sua Igreja (e também eu!).

Você não vai querer que, agora, eu me ponha a contar os vários episódios e os efeitos que produziram; não: você mesmo deve ter tantos quantos eu tenho e certamente até mais.

Concluo.

Concordo com o exame (detalhado, detalhadíssimo) que você fez: agradeço-lhe.

Eu quis salientar a você (se fosse necessário) que nós temos pontos fortes a ponto de levantar o mundo. Somente se quiséssemos.

Pe. Maurizio

P.S.: Pe. Armando, você revelou muitas outras problemáticas que eu não levei em consideração: como é possível se relacionar com a estrutura da Igreja que você dá a entender que deve ser deixada para trás; ser capaz de fazer rupturas que não só de ordem pastoral, organizacional, mas também de ordem existencial, teológica. Uma maneira diferente de estar dentro da sociedade outra em que vivemos... Eu sei, eu sei, mas quis responder quase apenas para me sentir vivo.

E, além disso, na próxima semana (de 26 a 30), vou fazer os exercícios espirituais e então...

Você tocou também a questão econômica e os tempos de vacas magras que nos serão reservados. Não levo em consideração esse assunto, porque concordo com você que será um maná mandado a nós pelo Espírito Santo: vai nos fazer atribular, porque vai nos fazer crescer.

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