“Devemos avançar de uma sociedade do ‘não tenho tempo’ para uma sociedade do tempo garantido”. Entrevista com Jorge Moruno

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

26 Agosto 2018

Jorge Moruno (Madri, 1982) pensa rápido e escreve rápido. Ao menos essa é a sensação que transmite seu último livro, No tengo tiempo. Geografías de la precariedad (Akal, 2018), um vertiginoso percurso pela sociedade do emprego precário e a pressa permanente. O sociólogo, que também foi responsável pelo Discurso do Podemos entre 2014 e 2017, continua nesta obra sua reflexão sobre a precariedade e o trabalho contemporâneo, iniciada com La fábrica del emprendedor: trabajo y política en la empresa-mundo (Akal, 2015).

Em pouco mais de cem páginas, Moruno traça um retrato preciso e inquietante das sociedades contemporâneas, nas quais a lógica capitalista invadiu quase todos os âmbitos da vida com uma intensidade sem precedentes, como demonstram a onipresença das redes sociais e o desenvolvimento da chamada economia colaborativa. Moruno combina as referências a autores clássicos como Marx, Spinoza e Robespierre com uma torrente de exemplos da vida cotidiana, desde os aplicativos para “alugar” amigos para enfrentar a crescente epidemia de solidão à extensão do coaching como forma de dominação emocional da classe trabalhadora.

Conversamos com Jorge Moruno para desentranhar algumas das numerosas questões que trata em No tengo tiempo, que saltaram à atualidade através de notícias como a greve de taxistas ou as tentativas de alguns municípios em regular a atividade de empresas como Airbnb.

A entrevista é de Pablo Castaño, publicada por Cuarto Poder, 18-08-2018. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Por que decide observar a sociedade contemporânea a partir da perspectiva do tempo?

O tempo é a substância que define por igual a economia e a política, ou seja, o modo sob o qual experimentamos o tempo e a maneira como se distribui, delineia os contornos e as bases de um tipo de convivência. Isto era assim com os gregos, onde o acesso ao tempo definia o acesso à política e aqueles que não dispunham de tempo, como os artesãos, porque dependiam de um terceiro, ficavam invalidados para a participação pública.

Com a modernidade, impõe-se o tempo abstrato, isto é, o tempo que mede por igual qualquer tipo de atividade, em lugar de ser as atividades as que ofereçam a medida temporal (como o tempo que se demora para rezar um Pai-nosso). Antes da modernidade, existiram a mercadoria, o dinheiro e as medidas temporais para compreender o que se produz, mas só com o nascimento da sociedade de trabalhadores se tornaram a mediação de toda a sociedade. Somente na modernidade o tempo social humano investido em produzir se torna a medida social da riqueza: “a riqueza nas sociedades em que domina o modo de produção capitalista se apresenta como um enorme acúmulo de mercadorias”, assim começa Marx O Capital. Daí que considero pertinente analisar a nossa sociedade a partir das contradições e os conflitos que são gerados em torno ao modo como se experimenta o tempo e como seu uso e distribuição define as relações de poder.

No livro, você afirma que “toda revolução passa por reordenar a distribuição e o sentido do tempo” e apresenta o exemplo do calendário criado pela Revolução francesa de 1789. Que forma de distribuição do tempo deveríamos defender hoje?

O tempo é uma experiência social que ordena nossa forma de vida, sendo assim, qualquer mudança de ordem social requer uma nova forma de experimentar e de viver o tempo. Acredito que devemos avançar de uma sociedade do “não tenho tempo” para uma sociedade do tempo garantido. Uma sociedade capaz de oferecer segurança, garantias e liberdade por vias diferentes da via trabalhista implica aceitar que o ser social pode ser algo a mais que o ser trabalhista e que, portanto, o acesso à esfera pública, assim como o reconhecimento social e o sentido de pertença, possam ter lugar para além da figura e a identidade de trabalhador. Esta terceira dimensão é bem expressa por La Polla Records, quando Evaristo canta isso de “não desfrutamos no desemprego, nem desfrutamos trabalhando”.

Uma sociedade de tempo garantido é uma sociedade que, para poder viver, reduz sua dependência (temporal) em relação ao trabalho, o que permite liberar tempo para realizar muitas outras atividades não mediadas pelo circuito do dinheiro e o trabalho. Um tempo garantido requer implantar o que Robespierre chamava o “direito à existência” como a primeira lei social; direito a existir para além da condição proletária, para além de ser trabalhador, direito ao tempo seguro. Esta situação pode ajudar a ordenar de outra maneira as relações de interdependência e a distribuição – e perspectiva – do tempo entre gêneros. A liberação do tempo é condição necessária – ainda que não suficiente – para a emancipação das mulheres e, por conseguinte, para construir outra convivência coletiva. A democracia, como recorda Aristóteles, é o tempo livre dos pobres.

No tengo tiempo” parte da ideia de que a época do emprego acabou, não porque o emprego assalariado tenha desaparecido, mas porque já não é capaz de reger a sociedade como antes. Poderia desenvolver esta ideia?

Dizíamos antes que a modernidade inaugura o que se pode chamar como a “sociedade de trabalhadores”, precisamente porque o trabalho se torna a principal mediação social. Contudo, o trabalho tal e como o entendemos é uma noção histórica, uma invenção moderna, não é algo de toda a vida. O próprio conceito “trabalho” que descreve e junta sob o mesmo nome tarefas que nada tem a ver entre elas, é algo moderno: que o teleoperador e a ‘kelly’ sejam em sua diferença o mesmo, isto é “trabalho”, se deve a essa qualidade abstrata de conceber como igual elementos diferentes sob uma medida compartilhada.

Além disso, trabalho não é sinônimo de atividade, o trabalho é apenas uma relação social que incorpora a atividade, mas que não se define por esta, mas pela relação social. O trabalho só se considera trabalho, se pagam você por isso, independentemente que consideremos que uma atividade, como os cuidados, resulte fundamental para o desenvolvimento e reprodução da sociedade, também a capitalista. A partir das categorias do capital e, portanto, as categorias do trabalho, toda atividade precisa ser incluída na relação social do trabalho para que possa ser valorizada, isto é, como trabalho que produz mercadorias.

O emprego é uma modalidade que tem lugar dentro da sociedade de trabalhadores no século XX. O emprego não é sinônimo de trabalho remunerado, é isso, mas é muito mais, pois implica toda uma regulação mais ampla e uma série de características, tais como a estabilidade, a confiança, os ingressos suficientes, o acesso aos direitos vinculados ao emprego, acesso ao consumo onde a condição de cidadania se vincula diretamente a ter um emprego.

O que a chamada economia colaborativa tem a ver com a crise do emprego?

Da decomposição da sociedade do emprego surge a economia colaborativa, que faz de todo o tempo de vida, tempo disponível para trabalhar, tempo para valorizar, tempo do capital. O paradoxo é o seguinte: nunca antes na Europa tanta gente havia trabalhado como agora, ou seja, a relação de dependência para com o trabalho e o dinheiro é mais forte que nunca, mas ao mesmo tempo resulta impossível voltar a produzir a “sociedade do emprego”. O desafio que temos adiante não tem a ver somente com normativas trabalhistas ou com a proliferação de figuras trabalhistas precárias: esses são os efeitos de transformações mais profundas. Porque não se trata de “trabalhos atípicos”, mas de destruição das sociedades que vinculam emprego à cidadania e inclusão social, para passar a outra onde é o trabalho que se torna a fonte de insegurança, incerteza e incapacita para desenvolver uma vida digna: o trabalho se torna uma arapuca.

Que papel a mudança tecnológica ocupa nas mudanças na distribuição do tempo?

Há um amplo discurso aplicado hoje para colocar a fronteira entre aqueles que querem avançar, - a luz elétrica – e aqueles que resistem a isso - os fabricantes de velas -; modernidade e atraso. O certo é que a esta espécie de teologia da tecnologia realmente nunca importou muito os benefícios sociais que a introdução de maquinaria pudesse acarretar, que, recordemos, em si mesma poupa trabalho, mas nas mãos dos capitalistas é utilizada para intensificar a extração de mais-valia. A máquina é pertinente apenas se permite fazer mais com menos, razão pela qual os salários baixos impedem a introdução de maquinaria, porque não compensa para substituir trabalhadores.

Só quando a lei fabril limita os turnos e os pais não querem vender seus filhos a uma jornada parcial, em lugar da completa, se introduz a maquinaria, apenas quando se proibiu que baixassem crianças menores de 10 anos e mulheres jovens desnudas à mina, se introduziu a maquinaria, e inclusive em meados do século XIX ainda se utilizava mulheres no lugar de cavalos para puxar nos canais. Por quê? Manter um cavalo era mais custoso. Portanto, necessitamos renovar o projeto de emancipação que pratique uma espécie de ludismo invertido: tempo para todas as pessoas, não só para os ricos. Não é avanço contra o atraso, mas democracia contra a servidão, o tempo livre dos pobres ou o tempo escravizado.

Que lugar devem ocupar propostas como a renda básica universal e o emprego garantido nesta época de pós-emprego?

Isto tem a ver com a primeira pergunta que me fez: de que maneira ordenamos o tempo? Que modalidade de liberdade se defende? Não me interessa tanto fetichizar medidas como compreendê-las dentro de um sentido e orientação mais amplo. O neoliberalismo estendeu a liberdade entendida como não interferência, ou seja, que nada se interponha entre o meu desejo e a ação, caso se disponha de dinheiro para isso: é livre porque você pode vendê-lo. A liberdade do dinheiro para fazer o que se quer implica que muita gente tenha que fazer coisas que não deseja para conseguir algo de dinheiro: é a liberdade de comprar o tempo de outros porque não dispomos de tempo. Deste modo, somos mercadorias que tem cada vez mais difícil se vender o suficiente, o que torna obsoleta uma parte crescente da população. Nesta liberdade, você consegue ser visto e sentido, caso disponha dos meios que permitem.

Não é necessário outro imaginário que consiga articular horizontes compartilhados de acordo com as realidades vividas: necessitamos caminhar para os direitos de existência desvinculados da relação trabalhista, que ofereçam a segurança para toda pessoa viver com dignidade, para que possa exercer a liberdade em igualdade de condições. É preciso romper com o imaginário do pleno emprego próprio da socialdemocracia e com a glorificação do trabalho e o trabalhador da III Internacional, assim como “o ser sua própria empresa” neoliberal. Passar de uma sociedade baseada no direito ao trabalho para uma sociedade baseada no direito ao bem-estar. Avançar para uma forma de ser em sociedade que não venha definida pelo ser trabalhista. Nisso o feminismo pode ser uma potente crítica à economia política.

No livro, você destaca que coisas como fazer a compra no mercado, que necessita de certo tempo, ou inclusive dormir, se tornaram tarefas que é preciso ser realizadas o mais rápido possível, porque estamos obcecados em “aproveitar” o tempo ao máximo. Que papel pode cumprir o chamado “movimento slow” para combater esta tendência?

Não o conheço em profundidade, mas a priori sou cético, não porque me pareça ruim abrandar os tempos, mas porque intuo que se apresenta como uma “filosofia de vida” que aparece nas revistas dos domingos que vem com os jornais. Uma “escolha” a mais dentro de um leque onde todos somos livres para escolher o que queremos sempre omite as condições que permitem poder escolher quem decide, o que se escolhe e por qual via se satisfaz. Uma mãe solteira que tem uma hora de ida ao trabalho e outra de volta e depois precisa preparar o jantar, como se soma ao ‘movimento slow’? No entanto, que as coisas sejam assim, não retira o impulso das projeções imaginárias sustentadas sobre o direito de escolher.

O “direito de escolher” que o Uber reclama é um mote em sintonia com o sentido comum da época neoliberal: o que no âmbito do mercado se apresenta como uma livre escolha, na esfera da produção se faz como um inferno. É o ciclo da precariedade: gerar precariedade para oferecer serviços aos precários. É necessário modificar a imagem sobre qual direito prevalece e melhorar as condições de vida para evitar que a precariedade seja um nicho de mercado.

Aqui, o aspecto somático que destaca a comodidade e a experiência busca oferecer a cada cliente uma sensação de monarca absoluto, que é soberano porque paga e porque pode pagar, pode escolher. Esse “ensimesmamento” não deixa de ser uma consciência coletiva e uma experiência compartilhada, assentada sobre uma modalidade concreta e histórica de indivíduo. No inadvertido se apresenta a ideologia concentrada. A experiência neoliberal do “ensimesmamento” é uma perseguição para buscar frear a passagem do tempo, ao mesmo tempo que busca que tudo passe o mais rápido possível.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

“Devemos avançar de uma sociedade do ‘não tenho tempo’ para uma sociedade do tempo garantido”. Entrevista com Jorge Moruno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU