“O país da 'ordem e progresso' é um país essencialmente aporofóbico”. Entrevista especial com Flavio Comim

A partir do conceito de aporofobia, professor analisa como a nação nega as práticas de inclusão e justiça social, invisibilizando e estigmatizando socialmente a figura do pobre

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 15 Abril 2021

 

Nos idos dos anos 1980, Chico Anysio cria o personagem Justo Veríssimo, o político corrupto que não tem nenhum decoro ao afirmar que tem “horror a pobre”. Parece piada, mas não é. Essa ojeriza de Veríssimo ao pobre – e não à pobreza – parece sempre muito vívida na história do Brasil. O problema, como aponta o professor e economista Flavio Comim, é que isso, embora sempre encarado como piada, não é tomado com a franqueza que o assunto demanda. É por isso que ele usa o conceito de aporofobia para nomear essa marca social que condiciona os mais pobres. “O país da 'ordem e progresso' é um país essencialmente aporofóbico, onde ideais de inclusão e justiça social são diariamente negados pelas práticas de seus representantes políticos e instituições”, dispara, embora reconheça que há exceções.

 

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Comim detalha o conceito e traz à nossa realidade que, segundo diz, é de um Brasil que “foi (e continua sendo) um país que nunca funcionou para os mais pobres”. “De nosso passado histórico extremamente violento, marcado pela escravidão e pelo desprezo às populações indígenas, nunca houve muita consideração com os mais pobres. Tivemos momentos civilizatórios, como a nossa Constituição de 1988, e benefícios provenientes de algumas políticas sociais recentes, como as transferências de renda condicionada, mas via de regra tratamos de um país no qual os 10% mais ricos ficam com 50% da renda declarada”, analisa.

 

E perceber a aporofobia não é tarefa fácil pois, além de se apresentar em diferentes níveis, se incrusta até mesmo em lógicas que concebem marcadores e indicadores acerca da pobreza. “No Brasil, as linhas de pobreza são peças de ficção. São valores monetários que mesmo estando acima deles significam pouco ou muito pouco para tirar as pessoas da pobreza”, observa. Isso porque, seguindo com esses dados, é possível encontrar pessoas acima da linha da pobreza, mas que ainda sofrem com a insegurança alimentar. “Em outras palavras, estar acima da linha da pobreza no Brasil não quer dizer que você deixou de ser pobre”, completa.

 

Partindo das instituições e olhando para a sociedade diretamente, percebemos que o quadro aporofóbico não é diferente. “No Brasil, ser pobre é uma questão de hierarquia social. Isso quer dizer que há gente pobre que pensa que não é pobre, pois tem uma atitude aporofóbica em relação aos ainda mais pobres. Em uma sociedade tão polarizada quanto a nossa, sinalizar que você e os seus fazem parte dos grupos dos 'que têm' é uma questão de dignidade”, analisa Comim.

 

Aliás, o professor compreende as reações aos governos petistas diretamente a movimentos que se propunham, embora ainda tímidos, na visão dele, enfrentar não só a pobreza mas também a aporofobia da sociedade como um todo. “A reação das elites e classes médias brasileiras a políticas inclusivas petistas foi extremamente aporofóbica. Elas poderiam ter ficado contentes com essas oportunidades de inclusão de parcelas significativas da população brasileira que sempre tiveram as portas fechadas a uma educação universitária e a uma sociedade de consumo. Mas não foi o que vimos”, diz. “Não importa se o tamanho do bolo é menor. Elas querem uma fatia ainda maior do bolo para elas, pois isso entrega a elas o que desejam: distinção”, resume.

 

Flavio Vasconcellos Comim (Foto: Corecon RS)

Flavio Comim possui graduação em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo - USP e pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e doutorado em Economia pela Universidade de Cambridge. Também realizou pós-doutorado na Universidade de Cambridge e na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Atualmente é professor titular da Universidade Ramon Llull, do IQS School of Management em Barcelona. Já trabalhou para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (2008-2010) e foi consultor da Unesco, FAO, Pnuma e OMS.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em que consiste o conceito de aporofobia? Por que é importante uma palavra para representar esse conceito?

Flavio Comim – A aporofobia é a rejeição ao pobre. É um conceito cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina, consolidado no seu livro do mesmo nome [Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia] em 2017, publicado recentemente no Brasil pela editora Contracorrente. A aporofobia é um conceito mais amplo do que o conceito de 'valores públicos em relação aos pobres' ou o conceito de 'estigma', pois envolve 17 categorias nas quais pessoas não pobres rejeitam os pobres.

Isso quer dizer que não é necessário ser 'elite' para rejeitar os pobres e que mesmo pessoas pobres podem rejeitar outras mais pobres que elas. Algumas dessas categorias fazem referência a como imaginamos os pobres ou como formamos nossas crenças sobre seus hábitos ou suas motivações. Outras, no entanto, estão por trás de nossas atitudes e ações em relação aos pobres, podendo, no extremo, chegar a crimes de ódio contra essas pessoas.

Dessa forma, o conceito sugerido pela professora Cortina possui uma estrutura analítica mais robusta do que o detectado em simples pesquisas de opinião. Considerar a aporofobia nos permite entender por que muitos esforços de redução da pobreza fracassam e como algumas sociedades evoluíram para um Estado de bem-estar social enquanto outras continuam tratando seus pobres com desprezo.

 

 

IHU On-Line – Como a aporofobia se revela em nosso tempo?

Flavio Comim – No trabalho que tenho feito com os meus colegas do IQS School of Management em Barcelona, temos dividido os impactos da aporofobia em três classes: micro, meso e macro. Em termos micro, a aporofobia se revela nas nossas conversas cotidianas em que as pessoas mostram seus preconceitos (factuais ou éticos) sobre os mais pobres, no modo pelo qual tratam como invisíveis ou mesmo desprezam aqueles mais humildes. A aporofobia micro se traduz nas crenças que expressamos sobre assuntos que envolvem os mais pobres e nas ações que tomamos (de ir e vir, evitando lugares com pessoas mais pobres etc.).

A aporofobia meso é aquela das instituições. É aquela aporofobia que exclui os mais pobres nas escolas, nas empresas e nos demais lugares onde existam regras ou protocolos que beneficiem os não pobres. Se pensarmos em uma empresa de comunicação podemos dizer que ela é um exemplo de aporofobia meso se sempre retrata os pobres negativamente, com características negativas.

A aporofobia macro se dá principalmente através das nossas decisões coletivas, como sociedade, refletidas naquilo que escolhemos como povo, tal como o grau de progressividade de impostos, o perfil (mais ou menos pró-pobre) do gasto público e das prioridades traçadas pelos governos que privilegiam os mais ricos.

 

 

IHU On-Line – Em que medida o conceito de aporofobia também pode iluminar a realidade brasileira desses tempos pandêmicos?

Flavio Comim – A melhor forma de responder a essa pergunta é com outra pergunta: as políticas de combate à Covid no Brasil se preocuparam (ou se preocupam atualmente) com a vida dos mais pobres? No início, devido à mobilização de muitas forças políticas, foi criado um consenso em torno de uma ajuda de R$ 600 para muitas famílias, mas que não foi sustentada durante a pandemia, fazendo com que muitas famílias ficassem expostas a um grau muito elevado de fome e insegurança alimentar. Os atuais valores da ajuda não pagam a gorjeta de uma refeição feita pelos congressistas que os definiram, mostrando que existe pouca vontade e pouca preocupação com a vida dos mais pobres no Brasil.

O negacionismo que empurra os pobres para lutarem desprotegidos nas ruas para sobreviver é um sinal inequívoco de uma sociedade aporofóbica. Enquanto as classes médias e os ricos se isolam, muitos teletrabalhando, os mais pobres são jogados ao azar. Se pensarmos na aporofobia como um critério de desempenho social, ficamos muito a dever nessa pandemia.

 

 

IHU On-Line – Como os racismos e a aporofobia se conectam? Podemos pensar exemplos dentro da realidade brasileira?

Flavio Comim – O caso paradigmático sobre racismo e aporofobia é dado pelo excelente livro de 2004 de Alesina e Glaeser sobre a pobreza nos Estados Unidos e na Europa [Fighting Poverty in the US and Europe: A World of Difference (OUP Oxford, 2005)]. Eles mostram como a aporofobia dos americanos (“se você é pobre é porque é vagabundo”) leva a um Estado de bem-estar social bem mais enxuto do que o da Europa, onde as pessoas reconhecem que a pessoa pode ser pobre por questões estruturais independentemente de sua vontade.

No Brasil há sem dúvida um overlap [no sentido de sobreposição] muito grande entre racismo e aporofobia, pois parte da rejeição aos pobres vem do fato de muitos serem pretos. Outras formas de discriminação se somam à aporofobia, pois sabemos que a discriminação de gênero e a discriminação sexual também se somam à aporofobia. A pesquisadora Christina Fong mostrou, usando alguns instrumentos de economia experimental, que o racismo influencia na menor percepção de merecimento que os ricos têm dos pobres. Em outras palavras, quando um rico (ou uma pessoa que não é pobre) olha para uma pessoa preta, acha que se é pobre é porque ele ou ela é vagabundo ou tem alguma falha moral. Os elos entre aporofobia e racismo são de fato muito fortes.

Na Europa, a xenofobia é um fator também importante. Infelizmente não temos muitos estudos separando esses fatores de discriminação. O que sabemos é que existe uma discussão na história econômica que separa os pobres entre 'os que merecem' e os 'que não merecem'. Na primeira categoria estão os que não podem trabalhar. Na segunda, aqueles que poderiam trabalhar, mas não trabalham porque não querem trabalhar. Esse é um debate cercado de muito moralismo e preconceito contra os mais pobres.



IHU On-Line – O senhor tem projetos e estudos que relacionam testes neurais que podem revelar aporofobia. Em que consistem esses testes e como eles podem contribuir para trabalhos que visam diminuir as desigualdades e formas de preconceitos?

Flavio Comim – Estamos trabalhando junto com um instituto de pesquisa nos Estados Unidos para desenvolver um teste implícito para a aporofobia. Ganhamos um financiamento para desenvolver esse teste cuja ideia é ver como as pessoas associam características positivas às pessoas ricas e características negativas às pessoas pobres. O teste depende da velocidade relativa das respostas e está baseado no conceito de que nossos preconceitos são ideias com caminhos neurais trilhados, que faz com que essas associações sejam mais rápidas, diferente de ideias que não temos e nas quais demoramos mais para associá-las.

Temos um outro projeto no qual estamos mapeando, usando machine learning, a aporofobia nas notícias. É fato que as notícias aumentam a percepção negativa que temos da pobreza, embora isso não aconteça independentemente do regime político no qual a aporofobia acontece. Tem um estudo superinteressante de Christian Larsen e Thomas Dejgaard no Journal of European Social Policy que mostra como regimes liberais como o da Inglaterra e dos EUA geram políticas que estimulam mais a aporofobia em comparação com regimes social-democratas como o sueco e o danês.

Bom, para resumir posso dizer que o primeiro projeto vai gerar um teste que inicialmente será em inglês mas que poderá ser feito por qualquer pessoa no mundo. Na sequência, vamos desenvolver o mesmo teste em espanhol e espero que consigamos financiamento adicional para poder desenvolvê-lo em português também.

 

 

IHU On-Line – Em que medida podemos dizer que há fatores genéticos que incidem sobre as formulações aporofóbicas? E onde entram fatores como a cultura, e toda a ideia cultural de marcos civilizatórios?

Flavio Comim – Para a professora Cortina, todos nós temos o potencial de ser aporofóbicos como uma característica evolucionária. A cooperação dentro de grupos pequenos visando o interesse mútuo é a base das reações que excluem os outros (os mais pobres) que nada poderiam (em tese) aportar às nossas vidas. Essas reações primitivas aporofóbicas não justificam, no entanto, segundo ela, que nos deixemos levar pelas mesmas, pois como sujeitos de razão devemos impor nossa vontade sobre nossas ações.

Nesse sentido, fatores culturais e sociais são fundamentais para contrabalançar essas tendências mais primitivas. Ela separa então aquilo que tem potencial genético do que tem um potencial civilizatório. Os humanos têm diversos potenciais, podendo conter alguns e estimular outros. Esse é o ponto central do debate ético e com a aporofobia não é diferente. A discussão sobre aporofobia reorienta o debate antigo sobre estigma. Estudos clássicos como o de Besley e Coate no Journal of Public Economics de 1992 tomavam a discriminação aos pobres como natural. Falavam até de um ‘ressentimento’ das pessoas que pagam impostos em financiar programas de pessoas que ‘não merecem’. Por outro lado, a aporofobia localiza o problema naquele que discrimina uma pessoa por ser pobre. O debate deixa de culpar os pobres pela sua pobreza e passa a olhar as atitudes dos não pobres e sua responsabilidade na resolução da pobreza.

 

 

IHU On-Line – Ainda dentro dessa perspectiva de aporofobia como resultado de práticas culturais, podemos dizer que mesmo o pobre pode nutrir lógicas aporofóbicas?

Flavio Comim – Sim, todos podem ser aporofóbicos em seus julgamentos e em suas ações. Mais do que isso. Um pobre pode desprezar alguém ainda mais pobre como uma maneira de se sentir menos pobre. A aporofobia pode ser assim funcional (assim como Herbert Gans nos mostrou que a pobreza pode ser funcional), fazendo com que os pobres acreditem que não estão tão mal como realmente estão (um problema clássico dentro da literatura de desenvolvimento humano, chamado preferências adaptativas).

Mas a aporofobia pode levar também à naturalização da pobreza e a uma certa hipocrisia social na qual as classes médias desenvolvem práticas de 'dois pesos, duas medidas'. Enquanto R$ 150 parece uma medida justa de auxílio a uma pessoa mais pobre ("porque é isso que o Estado pode pagar"), seria um insulto se a mesma ajuda fosse dada a uma pessoa de classe média no Brasil.

Podemos encontrar várias lógicas aporofóbicas naqueles três níveis que mencionei anteriormente. O país que paga o seu Legislativo e o seu Judiciário como pagamos e que dá um salário de fome para os funcionários mais baixos do Executivo, exatamente aqueles que poderiam fazer uma maior diferença para as pessoas mais pobres no seu dia a dia, é sem dúvida um país com uma lógica intrinsecamente aporofóbica.



IHU On-Line – Como a política pode incidir, tanto para cessar como para alimentar, sobre a aporofobia? Há regimes políticos que permitem mais ou menos lógicas aporofóbicas?

Flavio Comim – Sim, regimes com políticas focalizadas tendem mais a estimular notícias de escândalos com pessoas pobres (em geral pretas) abusando de serviços públicos e sistemas de proteção social. Regimes de políticas universais não estimulam histórias de comportamentos antissociais dos pobres.

O que está na base desses regimes é a distinção entre os 'pobres que merecem' e os 'pobres que não merecem' que é muito forte em regimes políticos liberais que optam por políticas focalizadas. Não digo que políticas focalizadas não tenham um papel em estratégias de redução de pobreza, mas a evidência mostra como existem esses impactos diferenciados. Em ambientes de alta desigualdade como o Brasil, podem levar a um aumento da aporofobia, causando sofrimento psíquico e social aos mais pobres.



IHU On-Line – No Brasil, há um bordão de que políticos podem ‘roubar’, contanto que ‘façam para os pobres’. Podemos considerar que essa é uma manifestação de lógicas aporofóbicas brasileiras?

Flavio Comim – O Brasil foi (e continua sendo) um país que nunca funcionou para os mais pobres. De nosso passado histórico extremamente violento, marcado pela escravidão e pelo desprezo às populações indígenas, nunca houve muita consideração com os mais pobres. Tivemos momentos civilizatórios, como a nossa Constituição de 1988, e benefícios provenientes de algumas políticas sociais recentes, como as transferências de renda condicionada (o nosso Bolsa Família), mas via de regra tratamos de um país no qual os 10% mais ricos ficam com 50% da renda declarada. Claro, porque à medida que subimos aos escalões mais altos de renda sabemos que existe uma grande subnotificação de rendas mais altas nas nossas pesquisas amostrais como as Pnads [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio].

O país da 'ordem e progresso' é um país essencialmente aporofóbico, onde ideais de inclusão e justiça social são diariamente negados pelas práticas de seus representantes políticos e instituições. Existem, claro, exceções. Acho que a Justiça do Trabalho brasileira é uma exceção louvável. Existem outras como as defensorias públicas, muitas de nossas escolas públicas e hospitais, onde funcionários públicos dedicados trabalham com um empenho que não se explica pelos seus salários, principalmente em tempos de pandemia.

 

 

IHU On-Line – Quem é o pobre para a sociedade do Brasil de hoje? Como podemos compreender a construção dessa ideia de pobre?

Flavio Comim – A pobreza pode ser absoluta, pode ser relativa, pode ser monetária, pode ser multidimensional, pode ser urbana, pode ser rural, pode ser crônica, pode ser temporária, pode ser 'normal', pode ser extrema, pode ser infantil, pode ser feminizada, pode ser entre idosos, pode ser racializada, pode ser caracterizada pela sua incidência, pela sua intensidade, pela distribuição da pobreza entre os pobres etc. Mas nada disso importa. No Brasil, as linhas de pobreza são peças de ficção. São valores monetários que mesmo estando acima deles significam pouco ou muito pouco para tirar as pessoas da pobreza.

É comum encontrarmos pessoas acima da linha da pobreza que passam insegurança alimentar (já pesquisei sobre isso com colegas em Porto Alegre). Em outras palavras, estar acima da linha da pobreza no Brasil não quer dizer que você deixou de ser pobre (eu nem entro mais para discutir isso no Twitter, se a pobreza aumentou, diminuiu etc., como disse me parece tudo uma peça de ficção).

No Brasil, ser pobre é uma questão de hierarquia social. Isso quer dizer que há gente pobre que pensa que não é pobre, pois tem uma atitude aporofóbica em relação aos ainda mais pobres. Em uma sociedade tão polarizada quanto a nossa, sinalizar que você e os seus fazem parte dos grupos dos 'que têm' é uma questão de dignidade. A pobreza depende de questões sociais em um contexto onde os mais ricos não querem apenas ter mais, mas buscam a distinção (no sentido definido por Pierre Bourdieu). A construção da ideia de pobre no Brasil é antes de tudo uma questão sociológica.

 

 

IHU On-Line – As reações a políticas mais inclusivas, exercidas especialmente nos governos petistas, podem ser explicadas desde a aporofobia?

Flavio Comim – Sim, eu não tenho dúvida. A reação das elites e classes médias brasileiras a políticas inclusivas petistas foi extremamente aporofóbica. Elas poderiam ter ficado contentes com essas oportunidades de inclusão de parcelas significativas da população brasileira que sempre tiveram as portas fechadas a uma educação universitária e a uma sociedade de consumo. Mas não foi o que vimos.

Ao contrário, vimos muita raiva, muito ódio a políticas que foram – eu diria – até mesmo um pouco tímidas. Mas esses pequenos avanços foram vistos como uma quebra da ordem, do status quo, do absoluto controle que as elites têm sobre os trabalhadores mais vulneráveis. "O que é isso de empregadas domésticas com direitos trabalhistas?" e "além disso, que dólar pode ser esse que até empregadas domésticas podem ir para a Disney?", como disse Paulo Guedes.

O mais triste de toda essa história é que o antipetismo não parece ser uma reação à questão da corrupção do PT. Pois se assim o fosse as pessoas teriam saído à rua quando Bolsonaro declarou o fim da Lava Jato ou teriam muito mais ódio de personalidades políticas com décadas dedicadas à corrupção no país. A minha hipótese é que a hostilidade ao PT vem da sua tentativa de quebra ao modelo aporofóbico de exclusão dos pobres no país. As elites brasileiras querem continuar sendo elites. Não importa se o tamanho do bolo é menor. Elas querem uma fatia ainda maior do bolo para elas, pois isso entrega a elas o que desejam: distinção.

 

 

IHU On-Line – Ainda sobre essas políticas desenvolvidas nos governos petistas, quais foram seus limites especialmente para romper com a aporofobia e efetivamente atacar as desigualdades no Brasil?

Flavio Comim – As políticas sociais petistas foram na direção certa, mas foram tímidas. Por exemplo, baixar a linha de pobreza pela metade em 2011 (acho que era R$ 140 e passou a R$ 70) para configurar o US$ 1 por dia e incluir mais gente foi uma política equivocada, que tratou a transferência de renda como um mero incentivo e não como uma referência de um mínimo de dignidade aos mais pobres.

Vou ser bem claro aqui. Acho que o governo foi mal-aconselhado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea nesse assunto. O Texto para Discussão 1619 do Ipea, que lança as bases dessa política, está cheio de equívocos que por anos animaram debates em algumas de minhas aulas de "Economia da Pobreza". Mas hoje, dez anos depois, olho para esse pilar da política de desenvolvimento petista e acho que foi um grande erro histórico.

 

 

Esse é um documento aporofóbico, que trata as pessoas pobres como merecedoras de quaisquer migalhas, com finalidades claramente políticas. Por outro lado, o PT fortaleceu muito o SUS, desenvolveu políticas de humanização que na prática procuraram acolher melhor as pessoas mais pobres e muitas outras políticas inclusivas. Infelizmente, voltamos, com o atual governo, a um país de políticas públicas de 50 anos atrás.

 

IHU On-Line – Por que as elites brasileiras, ao longo da história, não fizeram as transformações que elites de outros países fizeram, reconfigurando lógicas e sistemas de produção e de inclusão? É por pura aporofobia?

Flavio Comim – Acemoglu e Robinson no seu livro Por que as nações fracassam (editora Elsevier, 2012) analisam segundo as peculiaridades históricas de cada país as razões para terem elites inclusivas ou extrativas. No Brasil, as elites seguem com uma mentalidade colonialista ("o Brazil não conhece o Brasil") e tratam o país como se dele não fizessem parte. Mas isso não é o pior.

Na realidade eu escrevi um livro, intitulado Amor, Ordem e Progresso, para responder a essa pergunta... (risos), que espero publicar ao longo deste ano, pois acho que a aporofobia é parte dessa explicação, mas não é o único fator que importa. Existem elementos históricos marcantes junto com uma característica moral que faz parte das estruturas institucionais e políticas nacionais, assim como de grande parte de nosso dia a dia: falta amor no país.

A aporofobia é parte dessa questão quando o cidadão comum olha para os demais com rejeição pelo fato de ele ter menos. A pessoa pobre é destituída de qualquer valor humano pelo fato de não ter acesso a valores materiais. Isso é falta de amor institucional, como diria Axel Honneth, falta de reconhecimento ao indivíduo concreto que sofre e que precisa de ajuda. Melhor não me alongar aqui, pois como disse fiz um livro para responder a essa questão, da qual, sim, a aporofobia faz parte da resposta.

 

 

IHU On-Line – Num rápido atravessamento, podemos considerar que a vitória da extrema direita no Brasil se explica como uma reação aporofóbica aos movimentos de inclusão de governos mais progressistas. O senhor concorda? E como explicar, por exemplo, a adesão dos mais pobres a lógicas defendidas pela extrema direita nacional?

Flavio Comim – O problema da extrema direita no Brasil não é que ela é conservadora. Ela diz ser conservadora na economia, mas pouco ou nada fez em termos de uma agenda mínima de reformas conservadoras. Do mesmo modo, ela diz ser conservadora de costumes, mas não tem uma política conservadora digna do nome, deixando-se levar por intervenções espasmódicas que são mais anticivilizatórias do que conservadoras.

É verdade que a extrema direita ignora completamente a questão da pobreza assim como de modo geral as questões sociais no Brasil e fundamenta suas estratégias em questões ideológicas para as quais desenvolve peças publicitárias via redes sociais, cujo principal objetivo é polemizar e motivar setores da população à defesa dessas estratégias. Nesse sentido, continuamos ainda em 2018. Muito pouco mudou nas pautas da extrema direita. E a minha previsão é que ficaremos presos em 2018 ainda por outro um ano até as eleições do final do ano que vem.

 

 

Perspectiva dos mais pobres

As pessoas mais pobres infelizmente não percebem que tem muito pouco para elas nessas políticas de extrema direita. Que diferença vai fazer para elas se puderem ter até 60 armas? Que diferença vai existir se os produtores rurais conseguirem ocupar uma área ainda maior da Amazônia? Mais ainda, como estarão as pessoas mais pobres protegidas da pandemia quando a política de extrema direita foca somente na economia, sem a devida preocupação com o isolamento social dos mais pobres e sua sobrevivência?



IHU On-Line – Como compreende a forma que a aporofobia se revela na experiência do Brasil da pandemia, do Auxílio Emergencial e da volta do país ao Mapa da Fome?

Flavio Comim – O descaso com a concessão e o valor do Auxílio Emergencial mostrou que o país continua indiferente aos seus pobres. O auxílio virou mais uma moeda política do que um meio de diminuir o sofrimento da população e promover um isolamento social necessário para conter, pelo menos um pouco, a pandemia. Mas a volta ao Mapa da Fome apenas mostra que cálculos de pobreza baseados em linhas monetárias frágeis, como as que temos, estão sujeitos a muita volatilidade, tanto para cima quanto para baixo.

O nosso problema é que a linha de pobreza, além de tudo, é muito baixa e estar acima dela não significa que uma pessoa deixou de ser pobre. Essa linha autorreferencial, quase administrativa, que serve 'para brasileiro ver', é um aspecto da nossa aporofobia. Outro aspecto importante é que a pobreza é um problema ‘normal’, com o qual as pessoas já não se espantam e tampouco se indignam no Brasil.

 

 

IHU On-Line – Qual sua avaliação acerca de políticas de redistribuição de renda como forma de enfrentar a pobreza no Brasil? Nesse sentido, a concepção de uma renda básica pode ser um caminho?

Flavio Comim – Uma renda mínima básica universal será uma condição indispensável para sociedades civilizadas em um futuro não muito longínquo devido à intensificação de processos de automação e inteligência artificial que devem destruir muitos trabalhos, principalmente para as pessoas menos qualificadas. Se os países não fizerem nada, a pobreza vai aumentar muito, a ponto de abalar a ordem social.

Países desenvolvidos sabem disso e já começaram a fazer os cálculos de quanto poderá ser essa renda básica. Infelizmente, acredito que sua implementação será difícil no Brasil, em parte pela nossa aporofobia e miopia social. Somos um dos países mais desiguais do mundo, que menos dedicamos importância às pessoas mais pobres. E não estamos muito preocupados com isso, pois já naturalizamos a pobreza no país, com seus padrões duplos e hipocrisias. Nesse contexto, precisamos falar de aporofobia. Precisamos deixar o ‘mundo de faz de conta’ da política pública no qual todos ‘queremos’ diminuir a pobreza e a desigualdade para começar a examinar os fatores de nossa patologia social que é a aporofobia.



IHU On-Line – Para erradicar a pobreza no Brasil, precisamos primeiro erradicar a aporofobia? Ou com o fim da pobreza a aporofobia desaparece?

Flavio Comim – Em estudos estatísticos preliminares que fizemos constatamos que países mais desiguais e com nível de desenvolvimento mais baixo são mais aporofóbicos. Mas não conseguimos estabelecer a relação de causalidade devido a claras relações de endogeneidade existentes. Sabemos, contudo, que na maioria dos países desenvolvidos, as políticas de bem-estar social vieram primeiro e que a redução da pobreza seguiu depois.

Estudos sobre a mudança de clima social entre guerras e logo após a segunda guerra mundial mostram como um choque profundo nas crenças das pessoas e um aumento da coesão nacional fizeram com que as elites dos países apoiassem grandes projetos de reconstrução nacional mais inclusivos. Nesse sentido, a redução da aporofobia parece anteceder a redução da pobreza.

O maior problema reside, no entanto, não no estabelecimento dessa relação, pois mesmo sendo simultâneas podem ser colhidos bons resultados modificando uma ou outra, mas sim em enfrentar de frente o problema da aporofobia bem como o de estabelecer linhas de pobreza que sejam dignas e que não tratem as pessoas como instrumentos para que estatísticas mostrem situações favoráveis. Esse não é um desafio menor.

A abordagem da aporofobia permite também que cada pessoa, dentro das suas atividades e dentro do seu mundo, possa tratar melhor as pessoas pobres, começando por fazê-las visíveis e olhando para o sofrimento humano que existe por trás das estatísticas. A recomposição das relações humanas é a chave para que possamos superar a barreira da aporofobia e da pobreza no Brasil.

Saiba mais sobre aporofobia segundo o professor Comim:

 

 

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