O bolsonarismo, com sua receita de aniquilação da política e catalisação das desilusões, reverte queda de popularidade. Entrevista especial com Esther Solano

Pesquisadora analisa como o presidente e sua legião se movem para reconquistar a base que ruía e reúnem estratégia que melhora os índices de aprovação do governo

Foto: Palácio do Planalto

Por: João Vitor Santos | 28 Agosto 2020

As recentes pesquisas de avaliação do governo de Jair Bolsonaro demonstram que se houve um tempo em que o presidente esteve ameaçado, em muito pela reação diante da pandemia, o quadro parece ter se revertido. O DataFolha da primeira quinzena de agosto, por exemplo, apontou que a rejeição caiu de 52% para 35%, ainda com índices melhorando no Nordeste, onde Bolsonaro não tinha boa aprovação. Há quem diga que os números se explicam pelo auxílio emergencial concedido durante a pandemia e incursões pelo Nordeste, bem ao estilo do lulismo. Mas, para a socióloga Esther Solano, nem de perto o bolsonarismo se aproxima do lulismo. “Sou daquelas que pensam que é uma desonestidade intelectual, teórica e política falar que o bolsonarismo e o lulismo são próximos”, dispara. Para ela, enquanto o segundo prega a construção mais coletiva, o bolsonarismo defende “a destruição e aniquilação do adversário político, a negação da política, o discurso antissistêmico, antipartidarista”.

 

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Esther defende que é preciso olhar para outros fatores para compreender os índices de aprovação do atual governo. “Nós temos o auxílio emergencial, mas temos também alguns outros fatores importantes que sempre aparecem nas entrevistas com a base bolsonarista, que é o cansaço, a fadiga do estilo violento, agressivo, autoritário e indecoroso de Bolsonaro”, contextualiza. Assim, compreende que uma certa ‘domesticação’ do presidente, bem como a aproximação com o Centrão, foi importante para evitar ainda mais rachas nas camadas que vinham apoiando Bolsonaro. “A percepção bolsonarista é que Bolsonaro mudou, deixou a perspectiva agressiva, polêmica, para uma forma de agir que é mais moderada e que se aproxima da governabilidade, da cautela e da estabilidade”, observa.

 

No entanto, há mais um fator a ser considerado. Esther analisa como Bolsonaro foi capaz de catalisar as desilusões das camadas mais populares. Isso fez com que, mesmo no contexto de pandemia, essas camadas não o condenassem por subdimensionar a covid-19. “Ao mesmo tempo que vejo nas entrevistas como ele é considerado irresponsável, também vejo que essa estratégia de permitir que as pessoas saiam para trabalhar é colocada muito positivamente por pessoas que precisam da geração de renda”, avalia. Ou seja, para ela, mais um erro da esquerda, dos campos progressistas, em não ter sensibilidade para compreender o dilema de quem estava entre arrumar sustento para a família e enfrentar os riscos do novo coronavírus. “Essa ideia de que isolamento é um privilégio deveria ter sido muito mais atacada pelo nosso campo, trabalhar a ideia de que todos deveriam efetivamente ter direito ao isolamento. Para o campo progressista foi muito difícil atacar isso porque é bastante complexo”, reconhece.

 

Esther Solano (Foto: IEA | USP)

Esther Solano possui mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Universidad Complutense de Madrid, na Espanha. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, no curso de Relações Internacionais, e professora do Mestrado Interuniversitário Internacional de Estudos Contemporâneos de América Latina da Universidad Complutense de Madrid e, também, professora no Mestrado América Latina e a União Europeia: uma cooperação estratégica, no Instituto Universitario de Investigación em Estudios Latinoamericanos, da Universidade de Alcalá de Henares. Entre suas publicações, destacamos os livros Brasil em colapso (São Paulo: Unifesp, 2019), O ódio como política. A reinvenção das direitas no Brasil (São Paulo: Boitempo, 2018) e As direitas nas redes e nas ruas (São Paulo: Expressão Popular, 2019), de que é uma das organizadoras.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como a senhora analisa os movimentos do governo Bolsonaro em direção à concessão de benefícios para as populações mais pobres?

Esther Solano – Acredito que Bolsonaro entendeu que ele tem uma grande oportunidade de recuperar sua popularidade com o segmento populacional mais empobrecido. Uma coisa que nós avaliamos nas pesquisas é que a saída de Sérgio Moro do governo teve um impacto negativo fundamentalmente para a classe média, tradicionalmente mais lavajatista. Nas classes mais populares, que são muito mais objeto de nossas pesquisas, isso não teve um impacto tão negativo. Há um cálculo relativamente simples de que entre a classe média tradicional houve de fato uma queda de popularidade de Bolsonaro, muito pela saída de Moro.

Mas outra coisa que apareceu na pesquisa foi esse jeito indecoroso dele, meio agressivo, autoritário. E Bolsonaro pensou que nesse momento de crise sanitária e econômica ele poderia justamente recuperar a popularidade perdida com os segmentos populacionais mais empobrecidos e vulneráveis, apostando numa renda emergencial de R$ 600 porque, sabemos muito bem, essa parte da população é mais abandonada e vulnerável em termos econômicos.

É uma aposta, evidentemente, mas que entra em colisão com as propostas liberais de Paulo Guedes. É uma proposta assistencialista em busca justamente de manter uma aprovação e popularidade que estava caindo. E, infelizmente, o que os dados indicam é que o auxílio emergencial, junto com uma série de fatores, definitivamente está funcionando.

 

 

IHU On-Line – A partir desses movimentos do atual governo, de concessão de auxílio emergencial e incursões pelo Nordeste, podemos afirmar que o bolsonarismo está cada vez mais perto do lulismo? Por quê?

Esther Solano – Eu nunca diria que o bolsonarismo está perto do lulismo. Sou daquelas que pensam que é uma desonestidade intelectual, teórica e política falar que o bolsonarismo e o lulismo são próximos. É como aquela velha frase: são dois polos, dois extremos etc. O lulismo não é baseado simplesmente em políticas assistencialistas. É, na verdade, todo um corpo, um ethos político que tem a ver também com a participação popular nas estruturas do Estado, como uma concessão do Estado à população, que nada tem a ver com o bolsonarismo.

Eu defino o bolsonarismo como uma política construída sobre algumas questões muito diferenciadas; por exemplo, a destruição e aniquilação do adversário político, a negação da política, o discurso antissistêmico, antipartidarista são muito presentes e fortes. Essas questões não estavam presentes no discurso do lulismo. E, obviamente, faz parte do bolsonarismo uma política muito agressiva, uma militarização da esfera pública, uma política que move muitos afetos e sentimentos negativos, potências afetivas que têm muito a ver com a punição, com a vingança, com o linchamento, com a política de classe e obviamente com políticas misóginas, racistas, LGBTfóbicas, coisas que a gente nunca pode comparar com o lulismo.

O fato de Bolsonaro estar se aproximando de uma política assistencialista, que muitos comparam com o Bolsa Família, em termos de formato, não pode ser comparado com o lulismo, porque são duas vertentes políticas. Aliás, que, no fundo, se diferenciam nos princípios, nos valores, na filosofia e na sua essência.

 

 

IHU On-Line – No que consiste o bolsonarismo? Gostaria que detalhasse mais como vê esse conceito.

Esther Solano – Gosto de usar o termo bolsonarismo porque acho sempre mais pedagógico, muito mais interessante em termos sociopolíticos, e muito mais explicativo do que usar o próprio Bolsonaro. Com o bolsonarismo, referimos a um campo, uma série de elementos, vetores que foram confluentes em toda a vitória de Jair Bolsonaro. E são vários elementos. O primeiro é esse que citei, a política do ódio, de combate ao inimigo. Como todo representante da extrema direita, Bolsonaro entende o ethos político como o ethos guerreiro, como ethos de negação, de inimizade.

Depois, há um casamento complexo, mas que pode estar dando certo, entre políticas neoliberais e neoconservadoras. É essa representatividade entre Paulo Guedes e Damares Alves, essa convergência entre as políticas neo ou ultraliberais justificadas ética e moralmente pelas políticas conservadoras. E, ainda, uma série de outros elementos como o antipartidarismo, o discurso antissistêmico, porque é uma negação das estruturas de políticas tradicionais, partidos políticos, imprensa, academia, Justiça, com os ataques ao STF. Ele nega, ataca e menospreza as estruturas políticas clássicas da democracia. E sempre motivado pela lógica da militância anticorrupção que veria a política per se como naturalmente corrupta. Também há, evidentemente, o antipetismo, que na verdade eleva-se para o antiesquerdismo, em que se pode ter os partidos de esquerda, mas também os movimentos feministas, movimentos de protestos, manifestações, sindicatos etc. No bolsonarismo, é muito importante a luta contra as pautas identitárias, o que, no caso do antifeminismo, é absolutamente brutal.

Bolsonaro no Nordeste (Foto: Portal Aracagi)

 

E, depois, temos mais dois elementos muito fortes também: um é a militarização da esfera pública, em que temos o governo mais militarizado da história. É todo um ethos, uma filosofia militar imposta naquela ideia de que a democracia, na verdade, promove o caos e a desordem e que nós teríamos de recuperar a velha ordem. É uma mistificação, uma romantização de um passado glorioso, ordeiro e isso é feito pelos valores militares, pela autoridade, hierarquia, disciplina, controle etc. O outro elemento é uma cristianização da política, uma moralização da esfera pública na ideia de que os valores da família tradicional cristã devem ser os valores que também ordenem a vida nacional e pública. Assim, os conceitos de nação, família e ordem são absolutamente fundamentais.

 

IHU On-Line – O que mais mudou na estratégia de Bolsonaro além desses movimentos em direção aos mais pobres? Como compreender esses movimentos?

Esther Solano – Isso é algo que aparece muito claro quando nós entrevistamos a base bolsonarista mais desiludida, mais crítica. Surgem críticas muito nítidas na base e me parece que Bolsonaro e sua equipe entenderam muito bem algumas das críticas, e assim se dão esses movimentos sobre os quais você está me perguntando. Nós temos o auxílio emergencial, mas temos também alguns outros fatores importantes que sempre aparecem nas entrevistas com a base bolsonarista, que é o cansaço, a fadiga do estilo violento, agressivo, autoritário e indecoroso de Bolsonaro, que não estaria respeitando o cargo que ocupa.

 

 

Aí, vemos um movimento de Bolsonaro que é de uma certa domesticação, de moderação do discurso, e isso é interessante porque é avaliado como muito importante na própria visão de sua base. Outro fato também tem a ver com a invisibilidade muito maior dos filhos agora. Vemos que eles passaram para um segundo plano e estão tendo muito menos protagonismo na esfera pública do que tinham antes. Eles, inclusive, são muito mal avaliados por uma base bolsonarista um pouco mais radicalizada. São tidos como moleques, irresponsáveis, violentos, despreparados, por isso acho que esse recado também foi entendido.

Uma outra questão que aparece como muito importante nos nossos dados é toda ‘gestão da covid-19’. A postura negacionista de Bolsonaro cria muita confusão, muitas pessoas não sabem avaliar direito o que está acontecendo. E mesmo que muitos considerem o comportamento de Bolsonaro irresponsável, ele conseguiu que essa aparente dicotomia com a equação sem solução de cuidar da vida e cuidar da economia reverberasse muito na população. Essa ideia de que o isolamento social é impraticável porque ele é um privilégio de países ricos, da classe média e alta, e que o povo não pode fazer isolamento social, o povo não tem direito a isso e tem que sair para trabalhar, apareceu de forma muito potente como discurso na população. Assim, ao mesmo tempo que vejo nas entrevistas como ele é considerado irresponsável, também vejo que essa estratégia de permitir que as pessoas saiam para trabalhar é colocada muito positivamente por pessoas que precisam da geração de renda.

 

Repassando a culpa e jogando com o Centrão

Também teve um efeito bastante plausível o fato de Bolsonaro culpabilizar governadores e prefeitos pelos maiores índices de contágios. Outro elemento não menos fundamental são as negociações que começaram com o Centrão, com Rodrigo Maia, que afastaram muito a possibilidade de impeachment. Num determinado momento, a base bolsonarista mais desiludida e frustrada falava inclusive de impeachment; nós captamos isso nas entrevistas que realizo com Camila Rocha. Mas, agora, parece que essa possibilidade se afastou totalmente.

 

Domesticação

O que aparece no imaginário bolsonarista? Bolsonaro está mais domesticado, mais moderado, os filhos não aparecem, ele está negociando mais, está muito mais estável, a governabilidade dele está muito mais garantida. Então, há um sentimento de estabilidade, de moderação, de que tudo está entrando nos eixos, e fundamentalmente por estas duas características: a moderação e a negociação com o Centrão e com Rodrigo Maia. Assim, a percepção bolsonarista é que Bolsonaro mudou, deixou a perspectiva agressiva, polêmica, para uma forma de agir que é mais moderada e que se aproxima da governabilidade, da cautela e da estabilidade.

 

 

IHU On-Line – Quais os desafios para compreendermos as lógicas eleitorais das populações mais pobres?

Esther Solano – Para nós professores, ou sociólogos, pesquisadores, o desafio fundamental para compreender o perfil, as possibilidades e escolhas eleitorais dos mais pobres tem muito a ver com uma questão que no Brasil é crucial e absolutamente delicada para entender as relações sociais: a questão da classe. Vivemos num país extremamente desigual e essa desigualdade permeia tudo. Nós professores pertencemos, normalmente, a uma classe média tradicional, confortável, estabilizada e muitas vezes – e eu me incluso absolutamente nisso – para nós é complexo entender como age um setor mais empobrecido, mais vulnerável, cuja realidade é totalmente centralizada pela experiência da pobreza.

Eu nunca sofri essa pobreza, nem de longe, mas pesquiso essa população vulnerável há algum tempo e o que posso concluir é que essa experiência da pobreza é muito totalizante, é muito impactante na biografia, no cotidiano. E isso na parte material, mas também tem a questão psicológica e afetiva. Às vezes, as pessoas da classe média tradicional têm dificuldade para entender como essa experiência define muitas coisas que, do nosso lado, são classificadas como incompreensíveis, absurdas, surreais, mas que de dentro da experiência da pobreza tem um sentido muito forte.

Quando fazemos pesquisa com a população mais vulnerável, e as pesquisas que Camila Rocha e eu fazemos são, basicamente, sentar com as populações e falar durante horas – agora, falar online durante horas –, conseguimos captar e entender algumas posturas, alguns raciocínios que, de fora, pareciam incompreensíveis. É quando você conversa e entende a experiência cotidiana de abandono, descartabilidade, pobreza, desigualdade, solidão de classe e esse uberismo que vivemos agora, que você consegue entender algumas decisões – repito – mesmo que de fora.

 

IHU On-Line – Como a senhora compreende o conceito de populismo? Existe populismo de direita e populismo de esquerda?

Esther Solano – O conceito de populismo é bastante complexo, mas gosto muito de utilizar [Ernesto] Laclau como figura teórica central. Ele tem a grande proposta teórica dos significantes vazios, como uma apelação que não é simplesmente teórica mas também afetiva, emocional. Esses grandes significantes vazios são chamados de cadeia de significantes, que podem significar muitas coisas e têm um apelo emocional, mas que em si mesmos estão vazios justamente por ter uma polissemia intrínseca. Eles podem dizer muito, mas, muitas vezes, não dizem nada e têm sempre uma provocação emocional. Evidentemente que o populismo é uma estratégia, uma estratégia política, diria até que psicopolítica e que pode ser utilizada por diferentes perspectivas ideológicas.

 

À esquerda e à direita

O populismo de esquerda usa categorias como povo – vimos essas tentativas políticas na Espanha com o Podemos, talvez um dos últimos movimentos contemporâneos que se utilizam da categoria populismo de uma forma mais ferrenha. Nessa categoria do povo, ou da casta, o populismo de esquerda é fundamentalmente apoiado numa luta por mais democracia, mais inclusão, mais participação social. Ou seja, a estratégia populista é voltada para conseguir esses objetivos.

O populismo de direita, e nesse caso não diria de direita, mas o populismo bolsonarista – que é muito difícil de comparar –, é destrutivo. Alguns significantes vazios aparecem como, por exemplo, corrupção, que virou quase um mantra desse governo. O conceito de corrupção nesse governo foi utilizado em termos destrutivos, de destruição da esfera pública e da esfera política. São grandes conceitos, como o da política, empregados de forma destrutiva e que foram utilizados por Bolsonaro em termos negativos, de aniquilação da esfera pública.

Assim, a diferença entre o populismo mais à extrema direita – podemos pensar em alguns momentos em Donald Trump – e o populismo de esquerda é que o primeiro é negador e destruidor da esfera pública e, evidentemente, da esfera democrática.

 

 

IHU On-Line – Ao longo da história do Brasil, populações mais pobres são usadas em manobras eleitoreiras e que não buscam efetivamente resolver esse problema crônico do país. Como romper com essas lógicas?

Esther Solano – É evidente que se um país está estruturado historicamente numa base e num sistema absolutamente classista, racista, excludente e genocida, se milhões de pessoas são excluídas da cidadania e jogadas nas trevas do sistema representativo e da subcidadania, as pessoas vão ficar muito mais vulneráveis a uma política de manipulação eleitoral.

O que pode ser feito para se combater isso? Bom, eu sou das que pensam que são sempre soluções a longo prazo, soluções que passam pela reestruturação do campo político, por um sistema muito mais democrático. E quando falo em democrático me refiro a uma democracia nos seus termos mais profundos, do ponto de vista de que uma democracia no Brasil é absolutamente impossível se não atacarmos a estrutura racista, classista e misógina do país. E, ainda, se não atacarmos as profundas desigualdades históricas que fazem com que o país seja refém, sem nunca conseguir implantar uma democracia que seja completa.

Por isso, para mim, a primeira questão é atacar as estruturas históricas extremamente violentas, e fundamentalmente coloco duas: o racismo e a desigualdade. Essa sociabilidade violenta do Brasil é plenamente compatível com o regime democrático que se coloca. E, por outro lado, o que me parece evidente, é apostar numa educação de qualidade, universal pública e gratuita. Quando falo de qualidade, não me refiro a uma educação formal de qualidade em termos produtivos, mercadológicos, e sim a uma educação crítica, cidadã, do pensamento livre que pode ser realmente acessível para toda a população. É preciso uma democracia que tenha no seu centro a luta contra a desigualdade, a luta contra o racismo, contra as formas de exclusão, de violência intrínseca e histórica no Brasil.

 

 

IHU On-Line – Para de fato resolver o problema da pobreza e da miséria no Brasil, é preciso fazer enlaces com as elites?

Esther Solano – Essa é a grande pergunta do lulismo: como romper com a miséria, excluindo as elites ou compactuando com elas? O lulismo responde que é compactuando com elas e vimos que isso realmente foi muito importante, porque tirou milhões de pessoas da miséria, possibilitou a entrada de milhões de brasileiros no mercado formal numa dinâmica do consumo, que se sabe que é muito problemática mas que também ofereceu dignidade para milhões de famílias.

Agora, qual o problema disso? Ao não romper com as estruturas da desigualdade não se consegue romper com o padrão que vai se revigorando e se reproduzindo ao longo da história e que no final das contas sempre acaba enfraquecendo os mais pobres. Até se consegue ter políticas públicas que realmente dão alguma dignidade durante um tempo, mas como a estrutura permanece intocável, ela permanece rígida e se acaba, no fim das contas, permitindo que essa desigualdade volte. E volta insistentemente, porque se atacou apenas um ponto no que diz respeito à temporalidade, mas não se atacou o problema, a estrutura, o sistema.

De fato, isso tem que ser atacado. Contudo exige uma mudança radical de perspectiva, uma mudança radical de cultura política e exige muita coragem, porque é preciso mudar o sistema no seu conjunto e vemos como no Brasil o próprio sistema é cruel, violento e profundamente autoritário quando as estruturas tentam se mexer. Eu, sinceramente, fico muito sem esperança quando vejo como o sistema agiu e reagiu durante o golpe contra Dilma, de uma forma tão violenta. E aí percebo como esse sistema está tão bem arquitetado, formatado e pensado para que uma proposta que venha para rever esse sistema seja aniquilada. As elites brasileiras conseguiram formatar um sistema tão sofisticado, de um autoritarismo, mas também de uma potência tão forte que o implodir, ou pelo menos atacar ou desafiá-lo, é realmente muito complicado. Eu quero pensar que isso é possível, mas a realidade dos últimos anos tem nos mostrado que, se é possível, é realmente complexo.

 

 

IHU On-Line – Por que é importante romper com a ideia de que ‘pobre de direita é burro’?

Esther Solano – Não me sinto nada confortável com essa expressão. Eu tive um debate bem interessante sobre essa expressão com o Luis Felipe Miguel e inclusive entramos em questões terminológicas sobre a burrice no argumento dele, que são potentes, mas não me sinto confortável porque não me parece que se penetra na realidade da pobreza, ficando como um observador distante, e muitas coisas não fariam sentido de fora da experiência da pobreza. O termo ‘burrice’ é uma estigmatização, uma expressão muito forte e, por mais que apelemos para significados filosóficos, ele já está preenchido com significado social tão forte, tão poderoso como um rótulo, que é difícil se distanciar daquela apelação que se faz de estigmatização e de negação da humanidade.

 

A experiência do desespero

E, ainda, nega algo que vejo muito nas minhas entrevistas no Brasil, que é a centralidade da experiência do desespero. Uma das coisas que estou vendo nas minhas entrevistas de agora é que as pessoas estão desesperadas e com muito medo da pobreza, do desemprego. A experiência do desespero econômico é tão brutal e totalizante que nos faz não entender muitas coisas desde o conforto material. São coisas que só podem ser entendidas quando se entra nesse desespero material.

Por outro lado, também em termos estratégicos, devemos pensar que, se queremos construir pontes com essa base popular que já votou no Lula, que agora votou no Bolsonaro, que está desiludida, perdida e órfã em termos de alternativas políticas – e que é uma massa de milhões de brasileiros –, não podemos a considerar fascista. Nada disso, pois estão com um sentimento de abandono muito grande. Se realmente queremos erguer essas pontes, utilizar termos tão rotulados, como esse da ‘burrice’, só afasta as populações que a gente quer compreender e com quem quer dialogar. Eu já entrevistei várias pessoas que falavam: ‘professora, da esquerda, pensam que a gente é burro, não é?’. E isso é falado com tanta mágoa e ressentimento que para mim foi muito impactante. Isso afasta muito, justamente no momento em que se precisa entender para aproximar.

 

 

IHU On-Line – Em muitas análises, ouve-se que a esquerda está perdendo contato com a base. A senhora concorda? Mas, especificamente, como compreender esse processo de perda de contato?

Esther Solano – Quando falo que a esquerda está perdendo a base, me refiro à esquerda institucional partidária, porque não podemos esquecer inúmeros movimentos de esquerda que estão na base e que nunca saíram dessa base. Mas, falando dessa estrutura político-partidária, não tenho dúvidas de que está perdendo essa base.

Algo que Camila Rocha e eu perguntamos nas entrevistas, porque entrevistamos eleitores das classes C e D, eleitores de Bolsonaro considerados moderados e que também já votaram no Lula e no PT, é qual o sentimento atual dessas pessoas. Por que deixaram de votar na esquerda e, fundamentalmente, no PT? Obviamente que aparece o sentimento anticorrupção, o antipetismo é justamente baseado nesse movimento anticorrupção, lavajatista. Mas aparece outro sentimento que é o de abandono, de traição e isso como uma coisa muito poderosa.

 

O abandono e a dupla traição

Primeiro, traição numa questão muito ligada à corrupção; o rótulo do partido mais corrupto do Brasil como sendo o PT é brutal. Mas depois aparecem duas traições – e falamos fundamentalmente do PT, mas podemos alargar isso para uma esquerda partidária de forma geral porque muitos não conseguem fazer uma diferenciação –, pois as pessoas colocam que se sentem abandonadas em duas perspectivas. Um abandono é simbólico, falam que a esquerda, o PT, cuidavam do trabalhador antes e agora não cuidam mais. Dizem: ‘onde está o PT agora? Quando Lula estava no governo se preocupava com o trabalhador, mas e agora?’. É interessante porque é um reconhecimento de que é o partido mais perto do trabalho e, portanto, uma crítica e ressentimento de que deveria ainda estar cuidando do trabalhador e não está.

O outro é um abandono territorial. Há questionamento de onde está a esquerda nos espaços mais periféricos e vulneráveis. E ouvimos isso muito em comparativo a outra instituição, a qual está presente cotidianamente nos territórios mais periféricos, que é a igreja evangélica, fundamentalmente na sua dimensão pentecostal e neopentecostal. As pessoas, direta ou indiretamente, comparam essas duas realidades do abandono das instituições partidárias, especialmente de partidos do campo mais popular e a entrada brutal das igrejas evangélicas justamente organizando a sociabilidade e o material afetivo, simbólico no território.

 

 

IHU On-Line – Como as pessoas com as quais a senhora tem contato nas regiões de periferia têm visto e vivido a pandemia causada pela covid-19?

Esther Solano – As pessoas que entrevistamos, das classes C e D, fundamentalmente, apontam duas questões. Todos que entrevistamos discordam da afirmação de Bolsonaro de que seria uma gripezinha, as pessoas têm uma certa consciência dos riscos da pandemia. Agora, qual o problema? As pessoas têm esse medo da pandemia, mas têm igual medo, ou talvez até maior, do desemprego, da pauperização e precariedade econômica. É como tratávamos antes, essa dicotomia vida x economia ecoou muito entre as populações mais pobres, as pessoas falavam que confinamento é privilégio de classe média e alta e que não podem fazer isso porque os ‘boletos continuam chegando’. Ainda dizem: ‘os meus filhos têm que comer e eu preciso sair para trabalhar’.

É uma população desesperada porque ela não consegue agir. Afinal, pensa que o vírus é perigoso, mas que, talvez, a fome seja mais perigosa ainda. Essa ideia de que isolamento é um privilégio deveria ter sido muito mais atacada pelo nosso campo, trabalhar a ideia de que todos deveriam efetivamente ter direito ao isolamento. Para o campo progressista foi muito difícil atacar isso porque é bastante complexo. Essa experiência de que é negada a possibilidade do confinamento pela condição da pobreza, aparece muito forte nas entrevistas. É um duplo desespero de ter que sair para trabalhar e enfrentar o vírus, mas se não sai para enfrentar o vírus vai ter que enfrentar a fome.

Isso pode explicar o fato de as pessoas não culpabilizarem totalmente Bolsonaro pelos mortos. Se por um lado, todo mundo que entrevistamos é bolsonarista mais moderado e o classificou de irresponsável pelo negacionismo da pandemia, por sair nas manifestações, por ter um comportamento que não defende o uso da máscara, da higiene pessoal, por outro lado, o fato de ele permitir que as pessoas saíssem para trabalhar, e agora com a ajuda do auxílio emergencial, faz com que ele seja avaliado positivamente. É um paradoxo aparentemente. Mas quando se pensa na vida cotidiana, na experiência biográfica dessas pessoas, faz sentido. Acho que é interessante vencermos esse aparente paradoxo.

 

 

IHU On-Line – Como a senhora interpreta o que fez Bolsonaro levar votos das populações mais pobres na última eleição? E esse fenômeno pode se repetir nas próximas eleições presidenciais?

Esther Solano – O que vimos nas várias pesquisas da época eleitoral é que dentro das populações mais pobres há vários elementos e fatores. Tem um elemento fundamental, que foi antissistêmico, outsider, anti-hegemônico – e esse foi brutal. Foi uma eleição muito disruptiva. Bolsonaro conseguiu manipular muito bem a raiva e o cansaço das pessoas na figura do antipartidarismo, sobretudo o antipetismo, e tudo isso fundamentado particularmente no lavajatismo.

Mas tem outro elemento que foi fundamental e que não aparece de forma tão consistente e muito menos na classe média tradicional, que é a questão dos valores religiosos. Essa ideia de que Bolsonaro estaria exemplificando o candidato da família, dos bons costumes, o candidato da fé e da religião. A politização do campo evangélico, especialmente pentecostal e neopentecostal, foi imprescindível para vencer a eleição e conquistar a popularidade dos setores mais empobrecidos. Entrevistamos muita gente periférica do campo evangélico e durante a eleição duas ideias foram muito fortes e convergentes: a ideia de que Bolsonaro seria o único candidato, o homem de fé que iria cuidar da família tradicional, dos valores e costumes tradicionais cristãos, e a ideia de que o PT seria um partido antifamília e antirreligião.

Então, houve uma demonização muito intensa do PT dentro das próprias igrejas pentecostais e neopentecostais. Lembro de termos entrevistado uma mulher que tinha medo, mas um medo real mesmo, de que se o PT ganhasse a eleição, o ‘kit gay’ e a ‘mamadeira de piroca’ iam se espalhar pelas escolas, pela sociedade. E aí acho que a esquerda, e nosso campo progressista, de forma geral, cometeu o grande erro de caricaturar e cair no folclore, na risada e na gargalhada quando escutava essas coisas, sem pensar nem ter uma inteligência social para entender que, do outro lado, no campo evangélico conservador cultural estava se criando uma coesão social com todas essas questões e um medo das questões progressistas e, assim, uma fidelidade a Bolsonaro que depois nos custaria muito caro.

 

Evangélicos também católicos

Falamos especificamente desse fenômeno evangélico, mas ele também é católico. Podemos considerar como um fundamentalismo religioso, mas focamos mais nos evangélicos porque nesse caso houve uma diferenciação muito grande de votos. O campo evangélico foi muito mais majoritário na adesão a Bolsonaro do que o católico.

 

Risco para 2022

E esse fenômeno pode se repetir em 2022. Se em 2018 o afeto fundamental foi a raiva, o ódio na forma do antipetismo, antiesquerdismo, antipolítica, me parece que em 2022 a questão econômica vai ser um elemento centralizador, nevrálgico das eleições. O que venho dizendo há muito tempo é que a questão econômica já não é mais suficiente para capturar os votos dos mais pobres. O papel político das igrejas é absolutamente fundamental e está crescendo em termos quantitativos simbólicos de uma forma muito potente. Seu papel centralizador da vida cotidiana periférica também é absolutamente fundamental e o que Bolsonaro fez foi levar a dimensão mais importante, a questão da moralização da vida pública e da cristianização da vida pública, às últimas instâncias da vida político-partidária; tanto é que esses são elementos centralizadores no governo.

Então, a luta por valores, por visões do mundo, a luta moral como luta política parecem ser elementos que Bolsonaro colocou como nevrálgico na sua campanha e que continua colocando. E qual é meu apelo sempre para o campo da esquerda? Evidente que a urgência nesse momento é a luta no plano econômico, e claro sanitário também, mas por uma dignidade de renda e de emprego. Mas essa luta deve vir acompanhada de uma luta por valores, uma luta no campo simbólico e ético também, porque as duas coisas estão em jogo. As duas coisas são importantes quando se pensa na opção eleitoral e também na opção cotidiana, no dia a dia de uma população que está excluída, que está vulnerável e que muitas vezes encontra pouca dignidade dentro das igrejas.

 

 

IHU On-Line – Em entrevista que a senhora no concedeu em 2018, avaliava que Jair Bolsonaro era politicamente muito isolado. Houve mudança de lá para cá? Quais e por quê?

Esther Solano – Bolsonaro realmente foi se isolando ao longo dos seus primeiros meses de governo. Primeiro porque ele chegou ao poder por um partido muito pequeno e inexpressivo e depois, no governo, ele saiu do partido e implodiu esse partido por dentro. Muitos partidários, pessoas muito importantes durante a campanha, brigaram frontalmente com ele e foram transformados em inimigos, por isso nesse primeiro momento parecia que ele ia se isolando cada vez mais. Era um presidente sem partido e muitos aliados tinham migrado e enfrentado publicamente Bolsonaro.

O que consigo ver agora é justamente a dinâmica oposta. Ele está com essa nova postura mais moderada, domesticada, e está tentando reagrupar um pouco sua base, está tentando negociar justamente com o Centrão em prol de uma maior estabilidade para ele. Partimos de um Bolsonaro mais radical, violento e isolado para um Bolsonaro que quer recuperar um pouco a sua base, sua estabilidade no governo. O que temos de ver é até onde vai tudo isso. Porque sabemos que o Bolsonaro raiz, o autêntico, é um sujeito agressivo e que apela para essa violência político-institucional, um sujeito que enxerga o outro como inimigo político.

Vamos ver se ele consegue manter essa faceta, essa nova estratégia, ou se ele apela de novo para a agressividade. É uma coisa que não podemos profetizar. O que a gente vê, pelo menos nas pesquisas, é que esse elemento da moderação é muito importante para a aprovação na base dele que estava desiludida, desencantada e isso pode significar de fato que essa base volte a se reaproximar dele.

 

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