Elogio (não retórico) da teologia. Artigo de Michele Giulio Masciarelli

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

19 Novembro 2017

“A teologia, no tempo do efêmero e do pensamento fraco e desencantado, é desafiada hoje, porque o eixo do Evangelho é o lenho do Crucificado cravado na terra dos homens, até ferir nas carnes a alma mundi.”

A opinião é do teólogo italiano Michele Giulio Masciarelli, professor da Pontifícia Faculdade Marianum, em Roma, e do Istituto Teologico Abruzzese-Molisano, em Chieti, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 11-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Harmonizar os “serviços da Palavra”

A teologia não precisa de retórica, mas de verdade; ela também não precisa de vaidade, porque, falando da teologia cristã, não devemos esquecer que ela é sempre theologia crucis.

Mas ela também não precisa ser eclipsada, ou obliterada, ou marginalizada, porque é um ineliminável “serviço da Palavra”, em nada e nunca substituível.

Isso significa que a homilia não é suficiente, que o querigma não é suficiente, que a catequese não é suficiente, que o magistério não é suficiente, que a exegese bíblica não é suficiente, que a teologia bíblica não é suficiente, que a lectio divina não é suficiente. Então, é suficiente a teologia? Ah, não... E quem poderia dizer isso?

É que nenhum serviço da Palavra, sozinho, é suficiente para a completa e… dinâmica vida da Igreja. Os serviços da Palavra, por isso, devem ser conjugados harmonicamente, sem saltos perigosos, sem esquecimentos (sempre culpados), sem simplificações que estão entre as causas das arrogâncias pastorais dentro da vida eclesial.

A teologia serve à missão

Às vezes, de modo não perspicaz, reivindica-se uma pastoralidade sem teologia, quase como elas estivessem em antítese ou fosse realmente capazes de estar e agir sozinhas, cada uma no seu ortus conclusus, um tipo de espaço que, aliás, nunca está previsto na Igreja.

A pastoral, quando perde a matriz teológica, torna-se, no início, fraca, depois também arriscada. Paga-se a ausência da teologia na pastoral com o aparecimento de ervas daninhas irritantes e sufocantes: espontaneísmo no dizer e no fazer, desproporção na dosagem dos tempos e das ênfases nos temas e, principalmente, os caprichos pessoais que se tornam a matriz predominante na obra de missão...

Nesse sentido, é necessário o elogio da teologia, que exige o seu justo papel e a propõe como “sabedoria crente”. Em particular, a teologia coloca-se a serviço do “povo de Deus” em dois níveis opostos: por um lado, ela busca motivar, indicar e promover a beleza espiritual em seu interior; por outro, ela não desconhece as “cruzes da hora” e ajuda a entrar nas “inversões da história”, a enfrentá-las e, na medida do possível, também a sair delas.

- A teologia, “via pulchritudinis”. A teologia é um saber crente que traz na sua carne e no seu espírito o estigma da beleza que a torna audaz e humilde: audaz, porque se aventura a escavar os abismos da Palavra (cf. 2Tm 3, 16-17), porque sobe na lápide do mistério, porque tenta a obra de se colocar como arte e ciência de Deus de modo organizado, compreensível e dizível em público; humilde, porque sabe que o silêncio de Deus supera a sua voz e jamais compreenderá completamente a Deus e os seus caminhos: de fato, ele é infinita e eternamente mais alto do que o ser humano, e qualquer tentativa de descrevê-lo sempre será carente (cf. Rm 11, 33-36), porque se arrisca a dizer Aquele que deu nome a outros seres, que respondeu a Moisés que é “o Eu sou” (Ex 3, 14), que não é uma força etérea ou cósmica, mas o Pai dos pais, do qual devemos dizer: “Nemo tam Pater = Ninguém é tão Pai quanto Ele” (Tertuliano).

- “O mais belo ofício do mundo...” Ficou gravada por longos anos na minha alma uma expressão do cardeal Jerome Hamer, o teólogo que marcou a história do século XX teológico com um pequeno livro, muito amado por Paulo VI, L’église est une communion (Paris, 1962). Tendo estado com ele por acaso em L’Aquila, durante uma edição da Perdonanza, representando o arcebispo Antonio Valentini, de repente, ele me perguntou: “Que cargo pastoral você tem?”. Eu lhe respondi: “Ensino teologia dogmática em um instituto teológico”. Ele me respondeu: “É o mais belo ofício do mundo”.

Eu posso testemunhar isso: sem dúvida, é o mais belo ofício do mundo. Eu me perguntei várias vezes por que a teologia era para mim uma paixão invencível, total. Eu encontrei a resposta ao longo do tempo, especialmente penetrando, nos últimos dez anos, no mistério da beleza: a teologia está imbuída da beleza de Deus, do mistério intrigante do ser humano, da luz vívida da Palavra de Deus, da meia luz do pensamento, das linhas de sombra da nossa pobre vida de seres humanos e de Igreja.

- Agora, a beleza é dizível com seriedade. Já estamos na boa condição de falar da beleza em termos sérios e rigorosos, até entender que “este mundo em que vivemos precisa de beleza para não afundar no desespero” (Concílio Vaticano II, Mensagem aos Artistas, 08-12-1965).

A beleza também é necessária para a teologia: esta precisa dela porque a beleza, necessariamente, “adere à fé”, objeto e alma da “ciência sagrada”: de fato, “ninguém adere profundamente a uma figura qualquer do sentido último senão por uma espécie de fascínio da sua beleza antecipável” (P. Sequeri, L’estro di Dio, Milão: Glossa, 2000, p. 23).

- A teologia fala do “lado belo de Deus”. A teologia medita sobre toda a história da salvação como tempo da presença permanente do Deus trinitário, que é “Beleza infinita” (São Francisco de Assis). A beleza é a forma da teologia. Esta se esforça para buscar nos sinais que ela manifesta na criação e na história: trata-se de uma tessitura de sinais decifrável à luz da Palavra e da fé, mas sobre a qual é possível meditar crendo e contemplando.

A beleza é um verdadeiro “lugar teológico”: “As obras humanas da beleza abrem a brecha insubstituível de uma satisfação para a qual elas não são suficientes: e convidam a se projetar mais audazmente à beleza do mistério de Deus que indica ao homem espiritual o verdadeiro destino da sua atratividade. Decorre daí, por fim, para todos os crentes, um forte impulso a redescobrir e a fazer redescobrir o lado belo de Deus” (P. Sequeri, L’estro di Dio, p. 460).

A infinita beleza de Deus se mostra de forma trinitária: como beleza do Pai expressada no sinal da humanidade de Cristo, humanidade que o Filho assumiu por virtude do Espírito. De modo mais particular, ela se manifesta e aparece.

A teologia e a “tragicidade” da história

A teologia, porém, não negligencia o outro lado da história e do mundo: conhece o desencontro com o feio, que não é a ausência do encontro, mas ao esfacelamento que lhe ocorre diante do feio. É a dimensão trágica da beleza.

A tragicidade, tormento do pensar, segundo o bispo Bruno Forte, deve ser conjugada com a cotidianidade da vida, com a seriedade da reflexão, com a vida e a alegria, com a experiência agônica do crente: o pensar não pode desertar a vida e a história, especialmente nos seus lados mais obscuros e enigmáticos.

Isso pede que se elabore uma “teoria crítica da práxis cristã e eclesial” [1], que seja capaz de se colocar, acima de tudo, em estado de humildade diante do mistério, que assuma a justa coragem para entrar em diálogo com os homens do seu tempo e tenha tenacidade e inspiração para motivar a credibilidade do cristianismo na curva histórica do pós-moderno e do pensamento fraco.

A beleza não pode desertar o encontro com o lado decadente e degradado do humano, até mesmo para não se equivocar à fé, que é um “consentimento que se faz busca” [2], uma esperança inquieta que persevera, inexausta, na fadiga da interrogação das dores do ser humano e da misteriosa relação de Deus com o ser humano, seja as formas fracas da quenose, seja com a denúncia do aviltamento da razão ao perscrutar predominantemente a terra breve do presente.

O saber crente cultiva os “pensamentos duplos”

A teologia desempenha o seu exercício de “pensar a fé” entre duas margens, entre o “escândalo da cruz” e a surpresa da glorificação: se elas fossem separadas, a teologia se desviaria, ou batendo contra o polo de um pessimismo funerário, ou contra a embriaguez de um otimismo galhardo sem qualquer justificativa plausível.

A teologia, no tempo do efêmero e do pensamento fraco e desencantado, é desafiada hoje, porque o eixo do Evangelho é o lenho do Crucificado cravado na terra dos homens, até ferir nas carnes a alma mundi.

Para encorajar a teologia a se comprometer com esse esforço martirial, serve de estímulo a herança, bem viva, do Pe. Italo Mancini, uma das inteligências teológicas e filosóficas mais belas do fim do século XX italiano: colocando-se como exemplo de uma teologia rigorosa (não carrancuda, porque serve ao evangelho de Jesus), ele evoca com seriedade o fato de que o cristianismo é, sempre por inteiro, um oxímoro, o que impõe de falar sobre ele com um prolongado entrelaçamento de “pensamentos duplos” [3], uma expressão que ele tomou de Pascal e Dostoiévski, que falavam de “Deus nos pensamentos duplos”: de fato, Deus põe a teologia (e a filosofia) diante de “pensamentos abissais” [4].

Para aqueles que se dedicam à scientia Dei, decorre daí a necessidade de falar do “totalmente Outro” como de um Objeto-não-Objeto, que nunca pode ser capturado, menos ainda dominado, também considerando-se o fato de que a verdade, em geral, é – como advertia Simone Weil – uma fugitiva que nunca pode ser pega e presa para sempre.

Pois bem, o oxímoro – Mancini fala justamente de “oxímoro teológico” [5] – garante a credibilidade da teologia, credenciando-a como saber não frívolo, quando esta o busca, o aborda com corajosa tenacidade, não se deixando intimidar por ele de modo algum. Esse difícil empreendimento teológico é realizado por nenhum outro motivo além de fazer um obséquio ao mistério ou ao “último deus” – como ele se expressa [6] – que, se poderia dizer, necessariamente se manifesta apenas nos becos do oxímoro, isto é, na incandescência do ferro que se encontra no martírio da forja: tal teologia sabe muito bem que queimaduras, ardências e até incêndios são o destino de um “pensar a fé” com alta seriedade.

O objeto “sintético” da teologia é o amor-misericórdia

Os dois elementos – cruz e glória – estão incrustados um no outro ou, melhor, enxertados um ao outro. O Pe. Mancini diz isso mantendo um ouvido perto da voz de João (cf. 13, 31) e o outro da de Paulo (cf. 1Cor 1, 18-23), e assim se expressa: “A hora da glorificação é a da cruz, a indicada pelo grão de trigo que morre. [...] Certamente não existe – explicita o Pe. Mancini – uma relação analítica entre essa contemplação da cruz e a glória que se faz presente como asseguração da divindade. Na verdade, é escandaloso e, no caso da solução positiva, é paradoxal que eu deva ver Deus realizado naquele corpo empalidecido e profanado como o de um malfeitor. Paulo também fala de ‘escândalo da cruz’” (p. 340).

E então? Onde encontrar o cabo de aço que liga cruz e glória para a teologia, já que não esta pode optar por uma ou por outra? A teologia cristã, se encontrar esse laço, identifica nele o seu objeto mais verdadeiro. Esse laço existe, e é o amor (ou a misericórdia) que, por isso, é o objeto global da teologia.

Perguntado se era possível pintar o Crucificado, Kierkegaard respondeu: “Não o compreendo: assim que eu quisesse começar a pintar, os pincéis cairiam da minha mão” [7]. Há somente um modo de representar o Crucificado que não seja – como dizia Kierkegaard – “sacrílego” [8]: o de não deixar que a beleza prevaleça sobre o horror e a tragicidade da cruz [9], o que é possível sob a condição de que se saiba entrever com o olhar afiado da fé a misteriosa equação luz-trevas que Deus vai compor no evento de cruz do Filho: “A beleza é o Crucificado-amor, é o todo do ágape divino que se entregou na noite daquele fragmento” [10].

Notas

1. B. Forte, I laici nella chiesa e nella società civile. Comunione, carismi, ministeri. Casale Monferrato (AL): Piemme, 2000, p. 64.
2. Ibidem, p. 65.
3. Frammento di Dio, editado por Andrea Aguti, Bréscia: Morcelliana, 2000, pp. 279-348.
4. Cf. M. Cacciari, B. Forte, Dio nei doppi pensieri. Attualità di Italo Mancini, editado por Piergiorgio Grassi, Bréscia: Morcelliana, 2017.
5. Cf. Frammento di Dio, pp. 279-302.
6. Cf. Ibidem, pp. 191-276.
7. S. Kierkegaard, Esercizio del cristianesimo, Roma, 1971, p. 312.
8. Ibidem, p. 312.
9. E. Canetti, Il frutto del fuoco. Storia di una vita (1921-1931), Milão, 1982, p. 235.
10. B. Forte, “Bellezza splendore del vero. La rivelazione della bellezza che salva”, in V.A., Cristianesimo e bellezza. Tra Oriente e Occidente, editado por Natalino Valentini, Milão: Paoline, 2002, p. 64.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Elogio (não retórico) da teologia. Artigo de Michele Giulio Masciarelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU