Incerteza, desemprego e perda de renda: a realidade das periferias brasileiras na pandemia. Entrevista especial com Cleberson da Silva Pereira

Nas periferias, “a incerteza e a perda do trabalho e, consequentemente, da renda afetaram os meios básicos de promoção da vida. Isso diante de um cenário onde o trabalho já vem sendo realizado através da informalidade”, constata o economista

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 04 Agosto 2021

 

Entre os efeitos da crise sanitária, econômica e social que o país atravessa, aumentam os relatos de famílias que passam fome, vivem em situação de insegurança alimentar e tiveram que reestruturar completamente a dieta alimentar. “No geral os brasileiros estão mudando a sua cesta de consumo dada a restrição orçamentária. Antes, tinha churrasco na laje. Agora, tem macarronada com frango, mas só no domingo, pois de segunda a sábado o ovo reina na dieta da maioria da população. As pessoas e famílias estão fragilizadas financeiramente”, descreve Cleberson da Silva Pereira, economista do Centro de Estudos Periféricos, vinculado ao Instituto das Cidades/Campus Unifesp Zona Leste, composto por moradoras e moradores de bairros periféricos que produzem conhecimento e incidem sobre a realidade onde vivem.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Pereira comenta como os moradores das periferias paulistas estão enfrentando o atual momento em que quase 15 milhões de brasileiros estão desempregados, seis milhões estão desalentados e cerca de 34 milhões estão na informalidade, e como cada geração compreende a atual conjuntura. Os mais velhos, informa, comparam a crise atual a momentos de incerteza entre as décadas de 1970 e 1980, enquanto para os mais jovens é difícil compreender o que se passa no país. “Os relatos dos mais velhos são lembranças, tal como flashbacks da década de 70 e 80. Uns relembram os movimentos contra a carestia e a criação da pastoral da pesagem. Outros contam da remarcação de preços e do ágio. Os mais novos estão com dificuldades de assimilar este momento, pois desde 1994 a estabilização da economia criou condições de consumo que estão sendo negadas agora, pois o desemprego tirou o poder de compra das famílias e o mercado financeiro cerceou o crédito. E, de certa maneira, o consumo é usado como forma de ‘terapia’, uma forma de exercer algum tipo de poder em meio à situação incerta”, relata. E acrescenta: “Acredito que só políticas de redistribuição de renda possam mudar o cenário atual”.

 

Cleberson da Silva Pereira (Foto: Arquivo pessoal)

Cleberson da Silva Pereira é graduado em Economia pela Universidade Nove de Julho, com especialização em Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular pela Universidade Federal de São Paulo - Unifesp. É economista do Centro de Estudos Periféricos - CEP.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Quais são os principais dilemas enfrentados pelos moradores das periferias, depois de um ano e meio de pandemia?

Cleberson da Silva Pereira - Percebemos que a incerteza e a perda do trabalho e, consequentemente, da renda afetaram os meios básicos de promoção da vida. Isso diante de um cenário onde o trabalho já vem sendo realizado através da informalidade. Tal realidade fragilizou ainda mais as relações de trabalho.

O aumento do custo de vida somado ao desemprego de 14 milhões de brasileiros exigiu uma resposta. Como a resposta não  veio do governo, a população, principalmente a da periferia, se organizou através da autogestão, como o caso dos prefeitos de rua em Paraisópolis e programas como o Família apoia Família, da Casa Solano Trindade, ambos na cidade de São Paulo.

 

 

No âmbito da saúde, o atendimento básico ficou prejudicado e muitos tratamentos ficaram sem continuidade. A demanda da população por serviços de saúde mental aumentou. E em relação à Covid-19, a população percebeu a desarticulação das políticas públicas e a ausência, por parte dos governantes, de tratar a pandemia de forma mais séria e objetiva, como promover e apoiar campanhas que incentivassem o uso de máscaras, o distanciamento social e a vacinação.

Uma situação horrível durante a pandemia foi a continuidade da ação dos despejos: só depois de quase um ano, o Ministério Público e o Superior Tribunal de Justiça - STJ deliberaram para que não houvesse mais despejos.

 

 

IHU - Qual tem sido o peso da inflação e do desemprego na vida dos brasileiros, especialmente dos moradores das periferias? O que eles relatam nesse sentido?

Cleberson da Silva Pereira - Os relatos dos mais velhos são lembranças, tal como flashbacks da década de 70 e 80. Uns relembram os movimentos contra a carestia e a criação da pastoral da pesagem. Outros contam da remarcação de preços e do ágio. Os mais novos estão com dificuldades de assimilar este momento, pois desde 1994 a estabilização da economia criou condições de consumo que estão sendo negadas agora, pois o desemprego tirou o poder de compra das famílias e o mercado financeiro cerceou o crédito. E, de certa maneira, o consumo é usado como forma de “terapia”, uma forma de exercer algum tipo de poder em meio à situação incerta.

No geral os brasileiros estão mudando a sua cesta de consumo dada a restrição orçamentária. Antes, tinha churrasco na laje. Agora, tem macarronada com frango, mas só no domingo, pois de segunda a sábado o ovo reina na dieta da maioria da população. As pessoas e famílias estão fragilizadas financeiramente.

 

 

IHU - Uma proposta para enfrentar as crises econômicas e sociais é a implementação de um programa de renda básica universal e incondicional, que desvincula a renda do trabalho. Como avalia essa proposta?

Cleberson da Silva Pereira - Eu vejo como muito interessante e tenho apoiado a Lei de Renda Básica de Cidadania do atual vereador de São Paulo, Eduardo Suplicy. Acredito que só políticas de redistribuição de renda possam mudar o cenário atual. E temos visto que milionários têm apoiado a ideia, pois a concentração de renda só tem aumentado e se aprofundou durante a pandemia. Mas precisa haver um Estado que queira organizar a sociedade e não faça com que o Brasil se torne um país de milicianos.

 

 

IHU - Que pontos do sistema de proteção social brasileiro precisam ser revistos em função dos efeitos da crise de Covid-19, a fim de atender os que necessitam, especialmente aqueles que vivem hoje nas periferias brasileiras?

Cleberson da Silva Pereira - Precisamos considerar que a pandemia não é algo natural; a pandemia é consequência de uma conjuntura de fatores em que a política é direcionada para a superexploração do capital. A pandemia é uma criação política.

A política brasileira tem se direcionado para o que tem sido chamado de “Nova República”, um sistema político que usa a democracia para destruir a República. Enquanto estivermos sob essa égide será difícil reverter as reformas que foram feitas visando o aprofundamento do capitalismo neoliberal no Brasil, que se aproxima do anarcocapitalismo.

 

 

Em relação à promoção do trabalho, o governo federal desarticulou a sua principal ferramenta de ação, que era o Ministério do Trabalho. Na última semana, o Ministério foi reeditado para acomodar o grupo do Centrão no governo. A Previdência Social exercia um papel de colchão de proteção social para a sociedade e foi atacada pela reforma.

 

 

O governo atual fez de tudo para colocar o Ministério da Saúde em descrédito, desorganizando o programa de imunização, além de provocar a crise do desabastecimento de oxigênio. Além desses pontos percebo a necessidade de se realizar a reforma urbana e a reforma agrária. A Constituição Federal de 1988 foi um marco para o sonho, a utopia do que seria o Brasil do futuro. Mas infelizmente não resolvemos o problema do passado e estamos rifando o futuro.

 

IHU - Quais são os principais desafios econômicos e sociais do Brasil pós-Covid?

Cleberson da Silva Pereira - Proteção e manutenção do meio ambiente, promoção da educação e da pesquisa científica, criação de um sistema do trabalho, emprego e renda que defenda direitos para todos os trabalhadores. Investimento em equipamentos de saúde, especialmente na atenção básica. Abrir um debate com a sociedade sobre a necessidade de se manter as Forças Armadas. Promover o direito à cidade.

 

 

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