A vida dos povos indígenas não pode ser o preço do desenvolvimento econômico. Entrevista especial com Joenia Wapichana

Deputada federal eleita em Roraima critica veementemente a possibilidade de mineração nos territórios indígenas

Foto: Victor Moriyama/ISA

Por: Ricardo Machado | 21 Fevereiro 2020

Joenia Wapichana transita pelos corredores do Congresso Nacional e pelas leis da Constituição Federal com a mesma naturalidade com que caminha na floresta. Primeira mulher indígena a ser eleita ao parlamento na história do Brasil, Joenia não tem meias palavras para se posicionar diante de temas urgentes como a proposta de lei enviada pelo executivo federal, que prevê a mineração em território indígena. “Eu sou radicalmente contra a mineração em terra indígena e o PL 191/2020”, destaca Joenia Wapichana em entrevista por telefone à IHU On-Line.

A crítica não se restringe à perspectiva política da deputada, que defende os povos nativos do Brasil, mas a questões técnico-jurídicas cujo conhecimento é de seu domínio. “A regulamentação [da proposta] deve ser feita por uma lei complementar, que tem um procedimento mais rígido. Além disso, mistura o que é mineração com atividades de garimpeiros, que é inconstitucional e não cabe regulamentação. Para mudar isso é preciso alterar o artigo 176 da Constituição, que todo mundo sabe que não pode ser feito por projeto de lei, mas por projeto de emenda constitucional”, explica. Ainda há outro aspecto que é alvo de críticas. “O quarto ponto foi a violação do direito de consulta prévia livre e informada, estabelecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT”, complementa.

A parlamentar desfaz o mal-entendido do senso comum de que os povos indígenas são contrários ao desenvolvimento do país, o que não é verdade. A questão em jogo é qual o “preço” desse desenvolvimento. “O preço desse desenvolvimento econômico que se está querendo colocar é a vida dos povos indígenas, então acredito que temos outras formas de avançar na economia brasileira, através de alternativas e atividades sustentáveis que não seja levar mais degradação para os mais vulneráveis do país”, ressalta.

Quanto aos ataques frontais do presidente Bolsonaro às populações indígenas, Joenia considera que esses atos são, antes de tudo, a expressão da falta de decoro de nosso chefe de Estado. “Quando ele fala que os povos indígenas devem ‘evoluir’ como seres humanos, a minha pergunta é: será que ele é um ser humano? Estamos percebendo tudo isso e não vamos ficar calados, vamos nos manifestar contra e não deixar que uma pessoa despreparada como essa, que não respeita sequer a Constituição, continue fazendo as trapalhadas que tem feito pelo mundo afora”, afirma.

Joenia Wapichana (Foto: Reprodução | Facebook)

Joenia Wapichana é deputada federal - Rede, eleita em Roraima. É a primeira mulher indígena a se tornar parlamentar em toda história do Brasil e a se formar em Direito no país, em 1997, pela Universidade Federal de Roraima - UFRR. Posteriormente, conquistou o título inédito de mestre pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. No Supremo Tribunal Federal - STF, Joenia protagonizou um marco ao ser a primeira advogada indígena da história a realizar uma sustentação oral durante o julgamento que definiu a demarcação da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Desde a Medida Provisória - MP 870 da reorganização da Administração Pública, enviada ao Congresso no começo de 2019, há claramente, por parte do executivo federal, uma tentativa de enfraquecer garantias sociais e leis de proteção às populações indígenas. Como tem sido o enfrentamento a estes ataques?

Joenia Wapichana – Em relação à MP 870, nós apresentamos oito emendas e conseguimos avançar e articular junto com a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas a reversão do posicionamento do governo sobre a Fundação Nacional do Índio - Funai. A proposta inicial era tirar a Funai do Ministério da Justiça e retirar sua competência para demarcação de terras indígenas, mas o governo federal perdeu essa proposição.

IHU On-Line - Como a questão do garimpo em terras indígenas, proposta por Bolsonaro, tem sido discutida internamente na Câmara? Rodrigo Maia informou que pediu a construção de uma comissão que analise essa matéria, mas, até agora, o que foi feito? A senhora foi convidada?

Joenia Wapichana – Essa pergunta deveria ser direcionada ao presidente da Câmara [Rodrigo Maia], pois cabe a ele responder como está a situação. Eu estou acompanhando de fora. Pelo que entendi, ele recebeu a demanda, mas o tema continua com a Mesa Diretora da casa. É preciso aguardar os próximos passos.

IHU On-Line – A senhora não foi convidada a participar da comissão?

Joenia Wapichana – Acho que ele não falou para ninguém até agora. Não houve nada de divulgação. O que posso dizer, levando em conta as informações que tenho, é que sou radicalmente contra a mineração em terra indígena e o PL 191/2020.

IHU On-Line – Quais são as principais consequências do Projeto de Lei - PL 191/2020, que prevê, entre outras coisas, a mineração em terra indígena? Por que a senhora é contra?

Joenia Wapichana – Esse projeto de lei, o PL 191, é cheio de vícios constitucionais. Trata-se antes de tudo de uma questão técnica e jurídica, pois as proposições, desde a primeira proposta, afrontam a Constituição Federal de 1988. Isso não é de agora, vale lembrar a proposta de Romero Jucá, com o Projeto de Lei 1.610/1996 , além de outros textos substitutivos.

Como primeiro ponto, confrontamos e questionamos a adequação legislativa para propor uma regulamentação à mineração, pois entendo que a regulamentação, tal como prevê a Constituição, deve ser feita por uma lei complementar, que tem um procedimento mais rígido.

Em segundo lugar, a questão não deve se misturar com a regulamentação de garimpo, porque o garimpo foi completamente excluído do texto constitucional. Então o texto do projeto de lei, da proposta de mineração do governo, vai de encontro à Constituição e faz uma mistura do que é mineração com atividades de garimpeiros, que é inconstitucional e não cabe regulamentação. Para mudar isso é preciso alterar o artigo 176 da Constituição, que todo mundo sabe que não pode ser feito por projeto de lei, mas por projeto de emenda constitucional.

Em terceiro lugar, o projeto de lei tenta restringir os usufrutos exclusivos dos indígenas, que é considerado por nossa Constituição como cláusula pétrea, ou seja, é um direito fundamental que não pode ser alterado ou negociado porque isso é um direito permanente. Além disso, o usufruto exclusivo não pode ficar à mercê de negociações nem por indenização.

O quarto ponto foi a violação do direito de consulta prévia livre e informada, estabelecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT.

IHU On-Line – Do ponto de vista da justificativa do governo federal, essas propostas visam à produção de mais riqueza e dinheiro para o país. Por que esse crescimento não interessa às populações indígenas e quais os riscos que elas implicam?

Joenia Wapichana – Não é que o dinheiro não interessa às populações indígenas. As pessoas normalmente têm um pensamento equivocado, porque os povos indígenas não são contrários ao desenvolvimento econômico. A questão é que esse crescimento não pode se dar sacrificando os povos indígenas, porque existem alternativas que o Brasil deve estudar e adotar para que não sejam violados os direitos dos povos indígenas, degradando o meio ambiente e usurpando o direito destas populações relacionado às suas terras.

Há de se convir que se alguém disser “estou querendo melhorar a situação econômica do país, aí vou lá na sua casa fazer um buraco, ameaçar sua esposa, seus filhos, levar doença e fazer o que eu bem quiser sem o consultar”, a pessoa vai gostar ou aceitar? É claro que não. Assim são os povos indígenas. O domicílio não é somente a casinha do povo indígena, mas a terra indígena, onde ele detém seus direitos, seu domicílio, mantém tranquilidade, de onde depende a existência física e cultural desses povos. O preço desse desenvolvimento econômico que se está querendo colocar é a vida dos povos indígenas, então acredito que temos outras formas de avançar na economia brasileira, através de alternativas e atividades sustentáveis que não seja levar mais degradação para os mais vulneráveis do país.

IHU On-Line – Além das razões já apresentadas, por que os povos indígenas se colocam contra o PL 191/2020?

Joenia Wapichana – A sociedade brasileira precisa entender por que os povos indígenas são contra essa proposta. Em primeiro lugar porque o texto só traz prejuízo. Em segundo lugar porque sequer se consegue resolver situações de desastre – podemos recordar, alguns anos atrás, Mariana, Brumadinho – de grandes mineradoras, as mais ricas do mundo, com fiscalização, monitoramento etc. Se nesses locais não se consegue fazer isso, imagine expandir a mineração para lugares onde as pessoas estão ainda mais fragilizadas, sem recurso para se proteger, sem acesso aos direitos fundamentais, onde o governo tem reduzido, contingenciado e, inclusive, excluído os povos indígenas como detentores de direitos.

Há questões gravíssimas no Brasil que estão sendo denunciadas, como invasões de garimpeiros nas terras indígenas Yanomami, levando contaminação através de mercúrio aos canais de água que abastecem as comunidades e a qual acaba sendo consumida. Isso é algo bem grave, porque esse povo está fadado à extinção por conta dessa contaminação.

É necessário, antes de tudo, sanar e corrigir os erros com medidas eficientes para fiscalizar as mineradoras e assim poder abrir um diálogo sobre esta questão, que é um tema bastante complexo e, como disse o presidente [da Câmara] Rodrigo Maia, bastante conflituoso. Ao nosso entender, esse tema da mineração em terras indígenas não é prioridade no Brasil. O que é prioridade é melhorar a educação, a questão da saúde, da segurança, o trabalho, essas são nossas verdadeiras prioridades, e não levar a morte e a destruição aos povos indígenas. Esse é o ponto da questão, reivindicar a melhoria da vida das pessoas e respeitar aquilo que é direito consagrado em nossa Constituição. Não estamos fazendo nada mais que pedir respeito à lei maior do país.

IHU On-Line – A senhora mantém um diálogo de denúncia junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, retratando a atual situação dos povos indígenas do Brasil, inclusive de assassinatos de lideranças indígenas?

Joenia Wapichana – Neste momento não tenho nenhuma participação em denúncias, mas se me chamarem para alguma audiência eu participo tranquilamente.

IHU On-Line – Em 2018 a senhora recebeu o prêmio Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas - ONU. O que significa para a senhora e para os povos indígenas essa honraria?

Joenia Wapichana – Isso significa o reconhecimento do trabalho e da resistência dos povos indígenas, mas também o reconhecimento de que existem violações de direitos que precisam ser divulgadas e se dar atenção. Existe também o reconhecimento dos povos indígenas como defensores dos próprios direitos e que colocam suas demandas para que outras pessoas possam conhecer. O prêmio da ONU vem, justamente, dar essa visibilidade a todo o trabalho que os povos indígenas vêm realizando, o que ocorre de forma gratuita muitas vezes, porque ao proteger as terras indígenas se está protegendo o meio ambiente e o planeta. Esse trabalho tem sido bastante ameaçado e o prêmio é um reconhecimento a esta luta.

IHU On-Line – Além de defender os interesses dos povos indígenas aos ataques realizados pelo executivo federal, o que mais está na agenda de pautas em relação aos povos nativos do Brasil?

Joenia Wapichana – Foram feitas 14 proposições, não somente para fazer resistência, mas também para propor avanços, além de resistência e manifestações às declarações que o presidente [Bolsonaro] tem pautado nas redes sociais,em que se refere aos indígenas de forma negativa. O trabalho da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas vem aumentando cada de vez mais nossa articulação com os demais parlamentares e fazendo com que a sociedade se sensibilize com as causas indígena e ambiental, duas das principais bandeiras desse mandato.

IHU On-Line – O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro afirmou, em entrevista no final de 2019, que estamos diante de mais uma tentativa de ofensiva final contra os povos indígenas. Como a senhora vê a atual situação?

Joenia Wapichana – Essa é a posição do Eduardo, assim como de outros pensadores que têm se manifestado no mesmo sentido. Acredito que o governo tem demonstrado bastante ódio e perseguição em relação aos povos indígenas por meio do retrocesso das políticas ambientais e de proteção às populações nativas. Os povos indígenas estão pensando nisso porque o governo vem encorajando as invasões às terras indígenas, uma vez que o próprio chefe do Executivo fala em “regularizar” uma ilegalidade como o garimpo, quando enfraquece os órgãos que são de fiscalização, tais como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio e a Funai. Quando ele expõe os indígenas a assassinatos, colabora para que esses crimes ocorram, mesmo que isso ocorra como atos de irresponsabilidade que têm sido cada vez mais frequentes.

O governo tem demonstrado bastante ódio e perseguição em relação aos povos indígenas por meio do retrocesso das políticas ambientais e de proteção às populações nativas – Joenia Wapichana

Há, ainda, as declarações de ódio que ele tem feito não somente contra povos indígenas, mas também como o caso recente contra a jornalista Patrícia Campos, atacando as mulheres com desrespeito, sem a mínima postura, o mínimo decoro, de um chefe de Estado. Ele menospreza os direitos humanos, os povos indígenas, o meio ambiente, a Amazônia, as mulheres, inclusive as crianças – lembram quando ele pediu para tirar a cadeirinha do banco de trás do carro? São vários sinais que estão se confirmando de que esse presidente leva o ódio.

Quando ele fala que os povos indígenas devem “evoluir” como seres humanos, a minha pergunta é: será que ele é um ser humano? Estamos percebendo tudo isso e não vamos ficar calados, vamos nos manifestar contra e não deixar que uma pessoa despreparada como essa, que não respeita sequer a Constituição, continue fazendo as trapalhadas que tem feito pelo mundo afora.

 

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