“Pão para hoje e fome para amanhã”. As consequências da crise da esquerda na América Latina. Entrevista especial com Raúl Zibechi

Protestos na Bolívia | Foto: Agencia Boliviana de Información

Por: Patricia Fachin | Tradução: Cepat | 21 Novembro 2019

Os protestos que ocorrem em vários países da América Latina, apesar das suas especificidades, têm em comum Estados que apostam no extrativismo, que “está provocando um duplo efeito de destruição do vínculo social e de crise da governabilidade”, diz Raúl Zibechi à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o jornalista e pensador-ativista uruguaio, dedicado ao trabalho com movimentos sociais na América Latina, analisa a crise boliviana e explica as razões que deram início às ondas de revolta no país e levaram à renúncia do ex-presidente Evo Morales.

O melhor desfecho para crise, assegura, “seria uma negociação que permita a realização de eleições limpas, sem violência, nem ameaças, sem militarização, sem exclusões. Mas o clima hoje é de extrema polarização e tanto a extrema direita como o masismo parecem cômodos com ele”. A guerra, reitera, “é a pior opção” e para que ela não aconteça, pontua, “o MAS deve aceitar que, após quase 14 anos no governo, podem existir outros candidatos ou, melhor, a alternância no governo”.

Na avaliação de Zibechi, a atual conjuntura boliviana e a crise na América Latina indicam uma “questão central”: a crise teórica da esquerda. “A crise teórica da esquerda mundial é tremenda, muito profunda e se limita a repetir esquemas caducos em vez de analisar as novas realidades, como demandava Chico de Oliveira em textos como ‘Hegemonia às avessas’. Esse tipo de pensamento audaz se ofuscou mesmo antes da queda do socialismo real”. Em seu lugar, menciona, “ampliou-se um pensamento pragmático, de voo rasante, que se limita a justificar o que os caudilhos fazem, que não são mais líderes porque não dialogam, ao contrário, interpretam (a seu favor) o que acreditam que os povos querem ou pensam”. Nesse contexto, crítica, os governos progressistas “limitam-se a defender as políticas sociais que são, como dizem os espanhóis, pão para hoje e fome para amanhã”.

Raúl Zibechi (Foto: Susana Rocca | IHU)

Raúl Zibechi é jornalista e atualmente escreve para o jornal mexicano La Jornada. Foi editor do semanário Brecha e ganhou o Prêmio de Jornalismo José Martí por sua análise do movimento social argentino que levou à insurreição de dezembro de 2001. Foi membro da Frente Revolucionária Student - FER, grupo de estudantes ligados ao Movimento de Libertação Nacional - Tupamaros. Entre suas publicações mais recentes, estão Latiendo Resistencia. Mundos Nuevos y Guerras de Despojo (Oaxaca: El Rebozo, 2015), Descolonizar el pensamiento crítico y las prácticas emancipatorias (Quimantú, 2014 y Desdeabajo, 2015) e Preservar y compartir. Bienes comunes y movimientos sociales (Buenos Aires: Mardulce, 2013).

A tradução da entrevista, concedida em espanhol, é do Cepat.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em alguns países da América Latina, observa-se uma série de protestos por conta do aumento da passagem do metrô, do preço da gasolina, da privatização dos serviços de saúde e educação, por causa da corrupção envolvendo os governantes. O que essas ondas de revolta significam e revelam sobre a atuação do Estado nesses países? Todos os países enfrentam a crise da governabilidade ou há especificidades em cada um?

Raúl Zibechi - Há coisas comuns e há especificidades. Acredito que o comum é o extrativismo, que está provocando um duplo efeito de destruição do vínculo social e de crise da governabilidade.

O extrativismo faz parte do modelo neoliberal, de acumulação por desapropriação ou roubo, que se baseia em despejar populações para reconfigurar territórios na medida do capital, convertendo os bens comuns em commodities. Extensas monoculturas, grandes obras de infraestrutura como Belo Monte, mineração a céu aberto e especulação imobiliária urbana são seus principais aspectos.

Se a nível produtivo isso implica a desindustrialização e a reprimarização das economias, em nível social desemboca em metade da população (mais ou menos, conforme os países) com relações trabalhistas precárias e salários muito baixos, como também provoca a necessidade de políticas sociais permanentes para resolver as questões que o mercado não quer. Uma parte da sociedade é mantida em situação de extrema precariedade e nas cidades é expulsa para as periferias mais distantes, o que rompe suas redes de sobrevivência.

Parece-me dramático que o progressismo defenda que existam 50 milhões de brasileiros recebendo Bolsa Família, porque é uma vergonha e demonstra as consequências fatais do extrativismo. O mesmo acontece com as políticas habitacionais, que condenam a população a viver muito longe das cidades.

No plano cultural, o consumismo é a contraface da economia extrativa. Gera despolitização e desorganização sociais e amplia uma cultura e modos de vida afins ao narcotráfico e formas de violência que impactam muito negativamente nas mulheres e nos jovens pobres.

As sociedades extrativas, conceito que define melhor a realidade que falar de extrativismo, só podem ser compreendidas em sua totalidade se as comparamos com as sociedades da indústria ou do trabalho, integradoras, modeladas em torno do trabalho e da poupança. Esse tipo de sociedade é o que está explodindo nesses meses.

IHU On-Line - O senhor já afirmou que a atual crise da Bolívia teve início com “o sistemático ataque do governo de Evo Morales e Álvaro García Linera aos movimentos populares que os levaram ao Palácio Quemado”. Pode recapitular como e por que o próprio governo de Evo Morales gerou a atual crise?

Raúl Zibechi - Após a marcha em defesa do TIPNIS, em 2011, o governo produz um ataque a várias organizações indígenas, a CIDOB e o CONAMAQ, intervindo nos assuntos internos, provocando a queda de dirigentes e promovendo em seu lugar dirigentes afins ao Movimento ao Socialismo - MAS. Essa interferência é grave e teve como consequência um progressivo distanciamento do campo popular organizado do governo de Evo Morales.

Depois, em fevereiro de 2016, convoca um referendo para que lhe autorizem um quarto mandato. O resultado é negativo para Evo, no entanto, não leva isso em conta, muda a composição do organismo eleitoral para avançar com o seu projeto de reeleição. Na homenagem a Xavier Albó (1), este pediu a Morales que aceitasse a derrota no referendo e que nomeasse o chanceler David Choquehuanca como candidato, já que poderia retornar depois que este finalizasse seu hipotético mandato. A resposta foi afastar seu chanceler do cargo, já que o enxergaram como um “perigoso” competidor, embora sempre tenha sido fiel ao governo do MAS.

Finalmente, a recente fraude eleitoral, com uma forma de atuar muito semelhante a outras que conhecemos. A contagem é interrompida e ao se retomar, 24 horas depois, os números são outros.

Por último, Morales e García renunciam por vontade própria, colocando em marcha um plano de desestabilização para retornar como pacificadores. No dia em que Evo renuncia, não houve golpe, embora, sim, tenha ocorrido três dias depois, na quarta-feira 13, quando se nomeia uma nova presidente, sem permitir a entrada dos parlamentares do MAS, ou seja, sem quórum parlamentar.

Minha posição é que se trata de um golpe em coautoria. Na sequência, vem a brutal repressão do governo de direita e racista, mas também as ações paramilitares de pequenos grupos ligados ao MAS.

IHU On-Line - Que desfecho vislumbra para a crise boliviana? O senhor tem dito em seus artigos que os bolivianos não devem entrar no “jogo da guerra” que esquerda e direita querem impor. Que alternativa vislumbra para a Bolívia neste contexto?

Raúl Zibechi - O melhor seria uma negociação que permita a realização de eleições limpas, sem violência, nem ameaças, sem militarização, sem exclusões. Mas o clima hoje é de extrema polarização e tanto a extrema direita como o masismo parecem cômodos com ele.

A guerra é a pior opção. Para que isso não aconteça, o MAS deve aceitar que, após quase 14 anos no governo, podem existir outros candidatos ou, melhor, a alternância no governo. O MAS tem um alto grau de inserção na sociedade, por menor que seja a votação, ultrapassa os 30% do eleitorado. A direita tem uma porcentagem semelhante ou maior. O problema é a enorme desconfiança instalada entre ambos. Aqueles que desconfiam de Evo têm uma história de 14 anos que os abona. Mas, os que desconfiam da direita racista têm 500 anos que os justificam. Neste panorama, a solução ideal não é a mais simples e, acredito, também não é a mais provável.

IHU On-Line – Que forças políticas emergem com o fim do governo Morales?

Raúl Zibechi - Emergiu a direita patriarcal e racista que governou a Bolívia desde a instalação da República. Essa direita é constituída pelas elites de Santa Cruz dedicadas ao comércio de soja e carne, mas também pela classe média de todo o país, incluindo do Altiplano. Não esqueçamos que El Alto é governado por uma mulher aimará da direita, porque o MAS conta com um grande desprestígio em seu principal reduto urbano. E esse desprestígio provocou rejeições e mobilizações que foram confiscadas pela direita, com um discurso e uma prática de caráter fascista.

Para se ter uma ideia: a Praça de Armas, praça central de Santa Cruz, até alguns anos atrás era um espaço em que os índios, as mulheres de pollera e os homens de poncho não podiam entrar. Muitos espaços dessas elites são proibidos para pessoas de pele escura, em uma amostra muito grosseira de racismo.

Contudo, também é preciso dizer que o governo Evo firmou uma aliança muito sólida com as elites de Santa Cruz, após derrotá-las em sua tentativa secessionista, em 2008. Concedeu-lhes decretos que permitiram a queima da Chiquitania, a Amazônia boliviana, para ampliar a fronteira agrícola. É preciso dizer que pela porcentagem de sua floresta, na Bolívia, a floresta ardeu mais que no Brasil, algo que a esquerda não deseja integrar em suas análises.

IHU On-Line - Apesar de alguns movimentos sociais não terem apoiado o governo Evo Morales e, inclusive, terem pedido a sua renúncia, parte da esquerda latino-americana – em especial governantes e ex-governantes progressistas da América Latina - afirma que Evo sofreu um golpe. Como o senhor analisa esses discursos e o que vislumbra para a esquerda política no continente? Diria que a classe política está deslocada da realidade social do povo boliviano?

Raúl Zibechi - A esquerda realmente existente precisa de caudilhos e referências desse tipo, como foram Fidel, Sandino, Martí e em outros países Mao e Lenin. Não consegue compreender que o caudilhismo faz parte de uma cultura patriarcal, de modo que com a mão esquerda se declara feminista e com a outra reproduz a cultura patriarcal caudilhista.

Mas, a questão central é outra. A crise teórica da esquerda mundial é tremenda, muito profunda e se limita a repetir esquemas caducos em vez de analisar as novas realidades, como demandava Chico de Oliveira em textos como ‘Hegemonia às avessas’. Esse tipo de pensamento audaz se ofuscou mesmo antes da queda do socialismo real.

Em seu lugar, ampliou-se um pensamento pragmático, de voo rasante, que se limita a justificar o que os caudilhos fazem, que não são mais líderes porque não dialogam, ao contrário, interpretam (a seu favor) o que acreditam que os povos querem ou pensam. Em consonância com esse pensamento brando, em vez de promover reformas estruturais (agrária, urbana etc.), limitam-se a defender as políticas sociais que são, como dizem os espanhóis, pão para hoje e fome para amanhã.

Converso frequentemente com “grandes” intelectuais da região. Na semana em que elegeram Bolsonaro, estive no Rio de Janeiro em um encontro. Um intelectual desse tipo, disse em público que esteve em Ipanema e que viu isso e aquilo. Eu durmo na Maré, na favela Timbau, na casa de amigos, e o que vemos, claro, é completamente contrário ao que pode ser visto em Ipanema (é uma escolha política, é claro). Quero dizer que hoje os intelectuais de esquerda ganham muito dinheiro, possuem aposentadorias de cinco dígitos e isso marca sua classe e cultura política.

IHU On-Line - Como compreender, de um lado, a nova Constituição boliviana, que reconhece os direitos dos povos tradicionais e, de outro, os conflitos do governo por conta do Território Indígena e do Parque Nacional Isiboro-Sécure - TIPNIS?

Raúl Zibechi - Porque o progressismo e o conservadorismo são duas maneiras de gerenciar o extrativismo/neoliberalismo. Observe que, agora, na campanha eleitoral no Uruguai, não entra em debate o complexo soja/glifosato, o florestamento e o modelo urbano. Disso não se fala. Isso é terrível, porque são as chaves para entender o que acontece conosco como sociedades.

A contradição que você aponta entre a Constituição boliviana, ou a equatoriana, e a realidade do extrativismo é essa. O problema é que, para sair do modelo, não digo já do capitalismo, é preciso lutar contra o 1%, contra os sojeiros e os mineiros, que trazem muito dinheiro para o Estado, mas que provocam um desastre social.

O governo de Evo, assim como outros, aprofundou o extrativismo e, portanto, o capitalismo, mas com um discurso socialista. Criticar essa contradição implica ser atacado como radical ou sonhador, ou de estar fazendo o jogo da direita. Quando os governos de esquerda se limitam a administrar o que existe, em vez de criar o novo, que são os poderes de baixo, estão cavando sua própria sepultura porque desorganizam suas bases sociais, confundem e, em ocasiões como o TIPNIS, enfrentam as mesmas.

IHU On-Line – O senhor tem destacado o papel das mulheres e das feministas no enfrentamento das crises na América Latina. Como elas têm contribuído neste momento?

Raúl Zibechi – O papel que as feministas e as mulheres antipatriarcais estão desempenhando no Equador, Bolívia e Chile é notável. Na Bolívia, tiveram a coragem de dizer que a questão não é entre Evo e Camacho, finalmente dois machos com lógicas binárias, mas evitar a guerra e a violência, abrir espaços para o diálogo entre os/as de baixo. É a primeira vez, em minha memória, que as mulheres irrompem em um momento de crise e tensão máximas com propostas próprias, sem estar atrás de nenhum dos lados, como era o caso até agora. Isso vai mudar radicalmente a política. Como disse Arita Segato, “a política está nas nossas mãos”. Reivindica uma política na chave feminina, sem caudilhos nem caciques.

IHU On-Line - Alguns especialistas têm afirmado que a elaboração de novas constituições em países como Equador, Bolívia e Venezuela, embora contenham múltiplos direitos, não proporcionaram uma mudança das estruturas do Estado. Concorda com essa visão? O que dificultou as mudanças na estrutura do Estado nesses países?

Raúl Zibechi - O nosso Estado é uma herança colonial que não pode ser mudada, porque o seu tecido é formado pelo racismo, colonialismo e patriarcado/machismo. Imagine que eu diga a você: “vamos despatriarcalizar o patriarcado”. As feministas riem de nós com toda a razão. Estruturas ou complexos políticos/sociais desse tipo devem ser desarmados, desarticulados, não admitem mudanças graduais dentro dessas estruturas.

Conforme dizia [Frantz] Fanon, o colonialismo não é algo externo a nós, ele nos configura, molda nossas relações, assim como o patriarcado. Isso não muda com cotas raciais ou de gênero, ainda que as cotas possam ajudar em outro sentido, de autonomia e empoderamento dos e das oprimidas, o que é muito importante.

Não se combate o machismo e o racismo com leis, mas com o poder de negros e mulheres, e esse poder é temível para as elites, mas também para os partidos e governos de esquerda.

IHU On-Line - No Chile, discute-se a possibilidade de uma nova constituinte. O que a nova constituinte precisaria considerar para não cometer os mesmos erros das constituições do Equador, Bolívia e Venezuela?

Raúl Zibechi - A constituinte é um longo processo no qual classes e setores populares se organizam para debater e tomar decisões. O papel chamado Constituição é o menos importante ou, ao menos, tem uma importância posterior e de subordinação ao processo popular. O historiador chileno Gabriel Salazar disse que ter direitos e não ter poder não serve para nada.

Então, trata-se de organização popular, de poder popular, como os conselhos, agora, no Chile. O processo constituinte pode e deve ser um processo de multiplicação de conselhos territoriais e setoriais coordenados. Essa é a chave e é o que não aconteceu no Equador, nem na Bolívia.

IHU On-Line - Como avalia a vitória de Alberto Fernández na última eleição presidencial da Argentina e o retorno da ex-presidente Cristina Kirchner ao governo do país?

Raúl Zibechi - A derrota de Macri é positiva, porque era um projeto antipopular, elitista, repressivo e capitalista ao extremo. Por outro lado, o que vem a seguir não é o kirchnerismo, mas uma versão mais centrista, mais suave, com muita presença peronista. Acredito que, nos próximos anos, a governabilidade na Argentina será muito difícil, porque por cima está o macrismo que obteve incríveis 40%, e por baixo os movimentos que não irão se desmobilizar. Em suma, mais conflitos. A chave é se os setores populares aceitarão o que o novo governo dirá ou se acontecerão protestos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Raúl Zibechi - Acredito que o fundamental é estar organizados. Dizem-me, no Brasil, que Bolsonaro é uma catástrofe. Não, Bolsonaro é um tipo medíocre e seu governo é um desastre. A catástrofe é não estarmos organizados, porque não podemos enfrentar nada, em nenhum campo, sob qualquer governo.

Nota do IHU:

1.- Xavier Albó, padre jesuíta, antropólogo, esteve na Unisinos, convidado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, onde proferiu a conferência "O grande desafio dos indígenas nos países andinos: seus direitos sobre os recursos naturais". A íntegra da conferência pode ser lida em Cadernos IHU ideias, no. 235. A edição em pdf pode ser acessada aqui.

Também podem ser lidas as seguintes entrevistas de Xavier Albó publicadas aqui no IHU:

 

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