Chile. A insurreição popular vem do subterrâneo e perfura a máquina violenta e neoliberal. Entrevista especial com Rodrigo Karmy Bolton

Manifestação no Chile | Foto: Mídia Ninja

Por: Patricia Fachin | Tradução e edição: Wagner Fernandes de Azevedo | 29 Outubro 2019

Uma população cansada de ser sufocada, sob as ruas da cidade que se movimenta livre e determina os rumos de suas vidas, insurgiu-se. Essa população, que se desloca por túneis, condenada a trabalhos de baixa qualidade e obrigada a depositar parte dos seus rendimentos em fundos privados para uma ilusória aposentadoria, não aceitou uma nova condenação, figurada no aumento da tarifa do metrô, para o contínuo controle dos seus corpos. O Chile, então, explodiu, e a resposta da máquina estatal foi usar da violência para domesticar os sujeitos que emergiam das sombras e se insurgiam, assim resume o filósofo político Rodrigo Karmy Bolton, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, o estopim e a resposta violenta contra a revolta chilena significam que “o poder não suportou que os estudantes secundaristas pudessem evadir, pular a catraca do metrô, porque nunca suportaram que os escravos de um sistema, aqueles que estão condenados a viver nos subterrâneos do mundo, possam sair à superfície e inquietá-los com seus rostos”.

Os protestos multitudinários iniciaram na capital chilena, Santiago, no início do mês de outubro, logo que o aumento da tarifa do metrô entrou em vigência. No entanto, desde a paralisação do metrô pelos estudantes secundaristas em 18-10, as manifestações ganharam cada vez mais corpo e tiveram seu ápice quando, ao desafiar por três dias seguidos o toque de recolher, mais de um milhão de pessoas tomaram as ruas de Santiago na sexta-feira, 25-10, no maior ato da história do país. Para Karmy, essas manifestações são fruto de uma sequência que ocorre “desde a década de 1980 contra Pinochet, durante os anos 1990, até o movimento dos pinguins em 2006, depois o movimento estudantil em 2011 e também o movimento feminista de 2018. Há todo um campo de resistência que a governamentalidade neoliberal jamais poderia controlar e que hoje explodiu sem retorno”.

A governamentalidade neoliberal, de acordo com o filósofo, foi implementada em dois momentos: “o primeiro está marcado pelo selo sangrento da ditadura; o segundo, com a peneira silenciosa, porém eficaz, da transição”. Segundo Karmy, a transição da ditadura foi dada por um único partido neoliberal instituído por Pinochet e dividido por uma coalizão de duas facções formadas pelo conservadorismo e o progressismo neoliberal. “Para mim, Bachelet é a versão ‘protestante’ do neoliberalismo e Piñera a versão ‘católica’, isto é: a primeira é progressista, amiga da diversidade e menos amiga da repressão e a segunda é mais repressiva e menos amiga da diversidade; porém, em qualquer caso, essas versões pendulares se alternaram por anos”, caracteriza.

As revoltas são respostas à insustentável grieta (brecha) criada pela herança pinochetista que ficou implantada na atual democracia chilena e regida pela Constituição de 1980. “O Estado chileno tem um excesso de capital financeiro que possibilita uma ‘estabilidade’ macroeconômica, porém tem um déficit de capital político; em outros termos, o capital financeiro não é traduzível em capital político. Por isso, Piñera só pode contestar de duas formas, que são as formas que estruturam o esqueleto da máquina estatal chilena: por um lado, com uma “agenda” militar declarando o Estado de Exceção Constitucional, por outro, com uma ‘agenda’ econômica repartindo subsídios e títulos em abundância”, argumenta Karmy.

Assim, a revolta das classes médias e populares do Chile são sinal de que a máquina governamental violenta e neoliberal começou a ser atingida e “perfurada”. Para ele, se iniciou um triunfo da mobilização popular e “sua potência pode desbaratar os dispositivos da governamentalidade neoliberal que controlavam os corpos em nível capital. Corpos e governos já não podem se encaixar, se produziu uma defasagem, se abriu um fosso que pôs a maquinaria estatal em um impasse”.

Rodrigo Karmy em palestra no IHU (Foto: João Flores da Cunha - IHU)

Rodrigo Karmy Bolton é doutor em Filosofia pela Universidade do Chile, onde leciona e é pesquisador do Centro de Estudos Árabes da Faculdade de Filosofia e Humanidades. É autor de Políticas de la interrupción. Ensayos sobre Giorgio Agamben (Santiago de Chile: Editorial Escaparate, 2011), Políticas de la excarnación. Para una genealogía teológica de la biopolítica (Buenos Aires: UNIPE: Editorial Universitaria, 2013) e Escritos bárbaros. Ensayos sobre razón imperial y mundo árabe contemporaneo (Santiago de Chile: LOM Ediciones, 2016).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor compreende as manifestações que ocorreram no Chile nesta semana contra o aumento do preço da passagem do metrô? O que elas significam e indicam sobre a situação política, econômica e social do país?

Rodrigo Karmy – Penso que essas manifestações podem ser lidas sob o registro de uma “revolta” e, de maneira mais contundente ainda, como um “momento destituinte”. Essa seria já uma tese forte, no sentido de articular um processo que “evade” – uso o termo “evasão”, que foi o lema dos estudantes secundaristas contra o aumento da passagem do metrô – ao regime de representação fundado, basicamente, em uma aliança corporativa de caráter cívico-militar, ou se preferir, econômico-política. Segundo o egiptólogo Furio Jesi, diferente de uma revolução, uma revolta se caracteriza por “suspender o tempo histórico” e trazer ao presente epifanias míticas que abraçam uma simbologia que impugna radicalmente a “falsa” simbologia capitalista. “Evade” foi justamente o lema inicial proposto pelos estudantes secundaristas que catalisou o processo pelo qual profanou inteiramente o aumento do preço do metrô.

Agora bem, por que o metrô? Seguramente haverá muito mais o que pensar sobre isso para além do que pode ser dito aqui acerca do teor dos acontecimentos. Porém, para projetar uma hipótese, me parece que no metrô se dá a tensão entre dois mundos radicalmente em guerra: por um lado, o capitalismo neoliberal no qual se desenvolve um transporte público eficaz, limpo e ordenado e, por outro, o subterrâneo, passagens que cruzam a cidade por baixo, sem visibilidade e que, como os homens presos na caverna de Platão, as classes médias e as classes populares se encontram na subsunção capilar dos corpos ao poder do capital.

Em particular, os estudantes secundaristas de classe baixa ou média baixa são aqueles que o poder impacta de maneira mais crua: o poder deve domesticar seus corpos, fazê-los entender que eles terão que viver toda sua vida em um subterrâneo, que seu mundo jamais sairá à superfície, que a luz, o poder, o capital, a cidadania, no fundo, o que a tradição de pensamento política chamou “liberdade”, é o poder dos outros, porque para eles o sistema somente oferece subsunção. A “liberdade” é um privilégio de poucos e jamais da tácita aliança entre as classes médias e classes populares que, em sua maioria, são as que usam o metrô. “Evade” se converte então no lema da resistência, da epifania da revolta: se trata de “evadir” ao poder para fazer explodir a dança dos corpos. Aqui está um dos nós da questão: o poder não suportou que os estudantes secundaristas pudessem evadir, pular a catraca do metrô, porque nunca suportaram que os escravos de um sistema, aqueles que estão condenados a viver nos subterrâneos do mundo, possam sair à superfície e inquietá-los com seus rostos. É significativa a esse respeito a expressão que usou a primeira dama, Cecília Morel, referindo-se ao fato de que o governo parecia estar sendo vítima de uma invasão alienígena. O que é mais alienígena que aqueles que vivem no reino da sombra? A guerra se desencadeia justamente neste nó, onde o metrô contrasta o melhor e o pior do sistema, o mais visível e o invisível ao mesmo tempo.

IHU On-Line – As manifestações põem em xeque a visão de estabilidade econômica e política do Chile na América Latina?

Rodrigo Karmy – Efetivamente. Porque essa “estabilidade” foi o discurso usado pela oligarquia que, em termos freudianos, terminou por matar Pinochet ao preço de reproduzi-lo em forma “democrática”. Porém aqui se torna essencial entender o seguinte: a ordem neoliberal não é somente a articulação de uma política de “ajuste estrutural” ou a convergência de diferentes coalizões em um mesmo regime de verdade, mas é também uma técnica de governo que produz efeitos capilares sobre os corpos. A “estabilidade” somente pode ser construída sobre a domesticação capilar dos corpos implementada pelo conjunto de dispositivos e técnicas de governamentalidade neoliberal desde os anos 1980 (com a ditadura) e depois na democracia. Porém, precisamente por isso, o termo “estabilidade” foi o significante pivô que impediu que a chamada “democracia” fosse realmente uma “democracia” – isto é, um regime mínimo com respeito às liberdades individuais e uma Constituição que legitima a soberania popular.

A mensagem da transição sempre foi: implementar mudanças democráticas implica inquietar os militares ou afugentar o capital, logo, é melhor não o fazer e terminar por comprar os cidadãos ao preço de confiscar qualquer tipo de soberania popular. Em outros termos, os protestos populares que lotam as ruas do Chile hoje expressam a disfunção radical entre democracia e neoliberalismo, ou seja, que uma potência igualitária não se encaixa de maneira nenhuma com o regime governamental de viés neoliberal. O “momento destituinte” que vivemos mostra exatamente isto: a “estabilidade” foi o discurso dos poderosos para depredar os corpos dos pobres e confiná-los no subterrâneo, no reino das sombras.

IHU On-Line – Quais são as razões da insatisfação popular no Chile?

Rodrigo Karmy – A pergunta fundamental é: a “insatisfação” não é um assunto de origem “econômica”, como acredita o governo e a oligarquia, mas sim um problema essencialmente político. A potência popular se rebelou politicamente, desarticulando os dispositivos neoliberais que, em outro tempo, haviam sido eficazes na permanência do controle capilar. Porém é a política que está em jogo porque a revolta popular catalisada pelos estudantes secundaristas no Metrô abriu uma válvula que impugna toda a estrutura subsidiária do Estado chileno que se cristaliza em um documento essencial que foi modificado várias vezes, porém que estabeleceu sua força com Pinochet: a Constituição de 1980. Minha tese é que o Estado de matriz subsidiária está quebrando porque carece de qualquer repertório político para fazer frente a uma revolta popular de índole política. É paradoxal: o Estado chileno tem um excesso de capital financeiro que possibilita uma “estabilidade” macroeconômica, porém tem um déficit de capital político; em outros termos, o capital financeiro não é traduzível em capital político. Por isso, Piñera só pode contestar de duas formas, que são as formas que estruturam o esqueleto da máquina estatal chilena: por um lado, com uma “agenda” militar declarando o Estado de Exceção Constitucional, por outro, com uma “agenda” econômica repartindo subsídios e títulos em abundância. Porém isso não salva a situação: o povo chileno exige uma nova ordem política e não uma “agenda social”. E não exige somente agora, mas o fez desde a década de 1980 contra Pinochet, durante os anos 1990, até o movimento dos pinguins em 2006, depois o movimento estudantil em 2011 e também o movimento feminista de 2018. Há todo um campo de resistência que a governamentalidade neoliberal jamais poderia controlar e que hoje explodiu sem retorno.

Ao ser uma exigência política, a única saída para o sistema político é uma Nova Constituição para a democracia. Porém creio que aqui atuam duas noções do que é político: uma menor e outra maior. Interessa-me mais a “menor”, que tem a ver com a dimensão afetiva na qual atua a criação de novos laços, porque somente ela se engata como suporte “societal” para qualquer perspectiva orientada em transformar o Estado. Na “maior”, o debate dos juristas atuou entre duas teses: a primeira é a de Renato Cristi e Pablo Ruiz-Tagle, segundo a qual seria imperativo investir o Congresso do poder constituinte para redigir uma nova Constituição (retomando alguns artigos da Constituição de 1925); a segunda é a de Fernando Atria, segundo a qual é a faculdade presidencial que pode chamar a conformar uma Assembleia Constituinte que funcionaria como uma instância diferente da do Congresso. O ponto, no entanto, é que qualquer que seja a via que se adote, se torna decisivo entender que o que está em jogo aqui é a imaginação democrática ou popular que irrompe sempre a contrapelo da razão neoliberal.

IHU On-Line – O senhor afirma que as manifestações que ocorreram no Chile representam “o triunfo popular”. Pode nos explicar essa ideia?

Rodrigo Karmy – Sim, são um triunfo popular passageiro, porém um triunfo inicial ao menos, no sentido de que justamente aqueles que estiveram subsumidos ao Reino das sombras adquiriram visibilidade, incrustaram seu rosto no meio da cidade até paralisá-la. Nesse sentido, e enquanto a mobilização popular continuar, seguirá sendo um “triunfo”, porque sua potência pode desbaratar os dispositivos da governamentalidade neoliberal que controlavam os corpos em nível capital. Corpos e governos já não podem se encaixar, se produziu uma defasagem, se abriu uma grieta (uma brecha, um fosso que separa duas partes) que pôs a maquinaria estatal em um impasse. Isso já é um “triunfo”, porém isso é transitório, porque a máquina estatal reage, e o fez com fúria enchendo de militares e policiais as ruas da cidade.

IHU On-Line – Como avalia a ação da polícia no Chile em geral e, em particular, durante as manifestações?

Rodrigo Karmy – A polícia no Chile não mudou nada. Faz muito tempo que requer uma reforma profunda, porque é um polícia militar que, frequentemente, é acusada de “excessos” e de violação dos Direitos Humanos. Em especial, no ano anterior na zona de Wallmapu (a Araucanía), em que, vendo em retrospectiva, o assassinato do líder comunitário mapuche Camilo Catrillanca pode ser pensado como um verdadeiro laboratório para o governo. Nesse sentido, a polícia é, sobretudo, uma agência criminal. Que além de matar, esteve envolvida em enormes casos de corrupção.

IHU On-Line – Alguns especialistas avaliam que a crise chilena é consequência das transformações feitas pelos Chicago Boys na ditadura de Pinochet e das privatizações de vários serviços públicos que iniciaram desde a década de 1990. Outros sinalizam que os governos progressistas não implementaram políticas para reverter esse quadro. Que relações estabelece entre as decisões políticas dos últimos governos do Chile e a crise atual?

Rodrigo Karmy – Diria que a crise responde a esses dois momentos, que corresponde a dois momentos de implementação da governamentalidade neoliberal: o primeiro está marcado pelo selo sangrento da ditadura; o segundo, com a peneira silenciosa, porém eficaz, da transição.

Quando falamos de “governos progressistas”, designo uma facção do único partido que se impôs desde a época de Pinochet: o partido neoliberal. As duas facções de tal partido são a do conservadorismo e a do progressismo neoliberal. Porém ambas as coalizões pertencem a um mesmo regime na verdade, fechando assim as possibilidades que haviam sido abertas por outros movimentos já na própria ditadura e que manterão esse legado durante os sinuosos caminhos da democracia. Nessa perspectiva, creio que é necessário pensar duas direções ou vetores do assunto. O primeiro vetor seria o horizontal que designa o tempo, no qual o que chamamos “democracia” não é mais que a consolidação da ordem neoliberal instaurada durante a ditadura. O segundo é o vertical e nele podemos contemplar o que chamo de “máquina guzmaniana” que vertebra o Estado do Chile: Jaime Guzmán foi o ideólogo do regime de Pinochet e quem desenhou a Constituição política vigente, assim como a combinação eficaz entre dois pivôs da matriz subsidiária do Estado chileno que se articulam entre si: o católico e o neoliberal, o soberano e o econômico, em que a Constituição de 1980 funciona como o dispositivo que tentará amarrar mais uma vez a dupla racionalidade da máquina.

A “máquina guzmaniana” – seguindo o termo de Agamben – designa, então, o dispositivo bipolar que configura o funcionamento do Estado subsidiário chileno. O levante popular ao qual estamos assistindo exibe o fosso da máquina guzmaniana, a sua impossibilidade de suturar o que tanto a ditadura como a transição puderam suturar. Nesse sentido, sustento, o Estado chileno está em quebra, pois carece de qualquer repertório político que permita sua transformação estrutural e propriamente política. Se Piñera hoje oferece uma “agenda militar e social”, é precisamente porque consome tal matriz, cuja máquina foi perfurada pelo conjunto das lutas populares desde a ditadura até a atualidade.

IHU On-Line – O governo Piñera é responsável, em alguma medida, pela crise atual?

Rodrigo Karmy – Diria que, absolutamente: ainda que a democracia (que não foi mais que uma “má infinitude”) não tenha sido mais que consumação do ordenamento implementado na ditadura, nunca os presidentes depois de Pinochet haviam invocado a figura do Estado de Exceção Constitucional, salvo na forma do Estado de Exceção por catástrofe (como ocorreu em fevereiro de 2010 devido ao terremoto). Nesse sentido, a decisão de Piñera é inédita, ainda que condicionada pela máquina guzmaniana e suas nulas possibilidades de abrir outro repertório político que não seja a repressão policial-militar ou a economia e suas políticas de focalização neoliberal. Dado que a presença militar na rua produziu mortes, torturas e desaparições (o Instituto de Direitos Humanos oficializou os dados), serão Piñera e Chadwick (ministro do Interior) os únicos responsáveis pela situação. Se quiser, eles são criminosos, sendo assim, fiéis ao legado de Pinochet (soberania) e dos Chicago Boys (economia).

No entanto, existe um ponto que não foi verdadeiramente atendido e sobre o qual deveríamos pensar, sobretudo a respeito do sucesso dos eventos que se realizarão em breve: a celebração da COP25 e da APEC (onde estará Donald Trump). Penso que os EUA, que ficaram inteiramente calados a respeito dos acontecimentos no Chile, têm desde o início assessorado ou promovido a deriva piñerista em direção ao Estado de Exceção Constitucional. Precisamente porque esta é uma decisão inédita na democracia, é um assunto que não pode passar despercebido para o Departamento de Estado norte-americano. Penso que a “limpeza” das ruas, autorizada junto aos militares por parte do governo, se manterá durante a APEC, e se não for realizada sob Estado de Exceção Constitucional, será feita assim que o terror puder ser inoculado capilarmente nos corpos.

IHU On-Line – No Brasil, alguns teóricos têm comentado as semelhanças e dessemelhanças entre as recentes manifestações no Chile e Junho de 2013 no Brasil. O senhor percebe alguma relação entre esses dois momentos? Sim, não e por quê?

Rodrigo Karmy – Penso que todas as revoltas estão conectadas. Obedecem a um tempo que governa uma oligarquia depredadora de corte planetário. Terá de pesquisá-lo, porém não me parece casual (ainda que, como ensinou Jesi, tampouco a emergência de uma revolta pode se reduzir ao “casualismo”) que quando emergiu o movimento estudantil no Chile tenha surgido a Primavera Árabe quase simultaneamente. Hoje em dia, temos um conjunto de revoltas em países árabes e, justamente, nos encontramos com essa nova revolta popular de proporções tormentosas.

Em meu próximo livro dedicado às Intifadas de 2011, chamo de “telepatia” a potência de transmissão (transmissibilidade) provida de imaginação popular que parece operar horizontal e verticalmente: horizontal na variável do tempo, porquanto conecta o passado não redimido com um presente e, verticalmente, porquanto conecta diversos protestos entre si graças à convergência de desejos comuns. É algo que estou investigando e que, me parece, teria que analisar mais além dos esquemas herdados do pensamento reacionário (Le Bon) e da psicanálise (Freud). É imprescindível, me parece, pensar como a imaginação popular não designa uma faculdade, mas sim um habitat, uma atmosfera que se abre intensamente nas diversas formas nas quais se expressa a potência popular.

Nesse sentido, as revoltas se cristalizam sempre em um lugar, porém jamais pertencem a esse lugar: são intempestivas (pois desbaratam a cartografia representacional vigente) e absolutamente cosmopolitas, porque levam consigo a marca da multiplicidade, disseminando assim o peso do identitarismo contemporâneo. Porém quando digo “cosmopolita” não me refiro nem ao cosmopolitismo estatal-nacional pensado por Kant nem ao cosmopolitismo global proposto pelo regime neoliberal, mas sim a um cosmopolitismo selvagem cujo caráter molecular provém do “reino das sombras”, daquele mundo subterrâneo que jamais entra na cartografia representacional.

Nesse sentido, as revoltas são topológicas, pois abrem um lugar sem lugar, um lugar sem espaço, uma praça abandonada, uma rua ou rodovia funcional que podem se tornar lugares repletos de imaginação. Em outros termos, o cosmopolitismo selvagem aberto por uma revolta não cabe em alguma noção identitária de nação, etnia, religião ou cultura, mas sim na intersecção ou mistura delas. Daí esta aliança factual ou tática entre classes médias e classes populares: trata-se da intersecção entre elas que atua contra a oligarquia depredadora que montou a máquina guzmaniana desde 1973 para conservar e aprofundar seus privilégios.

IHU On-Line – Depois de alguns dias de protestos e da morte de 15 pessoas, o presidente Piñera suspendeu o aumento do preço da passagem do metrô, pediu perdão aos chilenos, aumentou a pensão mínima em 20% e congelou os preços da eletricidade. Como o senhor avalia essas iniciativas e quais são seus impactos?

Rodrigo Karmy – Como apontei em uma pergunta anterior, justamente são parte da “agenda social” que, evidentemente ajuda, porém expressa a falta de repertório político do Estado chileno, pois não assume, mas, sim, esconde o caráter político do problema ou, se preferir, o caráter estrutural do problema que enfrentamos.

IHU On-Line – Em que consiste a reforma trabalhista proposta por Piñera e como ela tem repercutido entre os chilenos?

Rodrigo Karmy – Em geral, o governo de Piñera não tem nenhuma proposta trabalhista além da herdada da escola de Chicago e que visa enfraquecer os sindicatos e “flexibilizar” (palavra-chave para designar precarização e maior submissão ao “trabalho morto”) o trabalho.

IHU On-Line – Qual é a situação dos aposentados no Chile? Qual é a renda média das aposentadorias no país?

Rodrigo Karmy – Nos últimos anos, os debates foram abertos. Isso implica começar a questionar o sistema em que vivemos. Entre eles, foi aberto o debate sobre pensões que, no Chile, são dominadas por uma Agência de Fundos de Pensões - AFPs de capital privado, inaugurada no início dos anos 80 por iniciativa de José Piñera (irmão mais velho do atual presidente), que era então ministro de Pinochet. Mas as AFPs têm um problema estrutural: quando levantadas sob a lógica da capitalização individual, as pensões estão simplesmente muito abaixo do que foi prometido à população no momento em que o sistema foi privatizado. Tudo isso traz um aspecto fundamental: é que as AFPs não são instituições orientadas a oferecer aposentadorias aos chilenos, mas se constituem como dispositivos financeiros que, ao impor uma “economia forçada” aos trabalhadores (ou seja, nenhum trabalhador pode se impor contra essas instituições, pois elas são privadas, mas são obrigatórias por lei), enriquecem os empresários em enormes quantidades de milhões de dólares.

IHU On-Line – Algumas notícias informam que o índice de endividamento das famílias chilenas é elevado. Pode nos falar sobre essa situação? O endividamento das famílias é preocupante?

Rodrigo Karmy – Walter Benjamin dizia que o capitalismo funciona como religião. Porém, diferente das religiões clássicas que possibilitavam a “redenção” do capitalismo, seria uma religião da culpa (em alemão o termo “schuld” significa tanto culpa quanto dívida). No Chile, a razão neoliberal vem de uma religião da culpa, precisamente por esse nível de endividamento da população. Nesse sentido, as diferentes formas de protesto social exigem, sobretudo, o fim da culpa, a aposta pela redenção, que é precisamente o que a razão neoliberal chilena não pode dar.

IHU On-Line – A desigualdade é um fenômeno que também faz parte da realidade chilena? Como o senhor compreende esse fenômeno no seu país?

Rodrigo Karmy – A desigualdade é um termo demasiadamente neutro para significar a depredação oligárquica dos corpos. Desde Pinochet a dita oligarquia renovou sua maquinaria de poder (passou de constituir a uma direita conservadora e nacionalista a uma direita neoliberal) e catalisou múltiplas formas de enriquecimento que passaram pela privatização das empresas públicas (isto é, o roubo à mão armada das empresas estatais aos cofres privados, como a água ou a luz) e a consolidação de um Estado autoritário. Sem Pinochet não há neoliberalismo, porém, ao mesmo tempo, sem neoliberalismo não teria existido Pinochet, no sentido que, como diria Carl Schmitt, sua ditadura não teve um caráter “curatorial”, mas sim estritamente “soberano”, pois instaurou uma nova ordem jurídica que se expressou na Constituição de 1980 e que possibilitou aceitar o que chamamos de “máquina guzmaniana”.

IHU On-Line – Como o Estado de bem-estar social tem sido discutido entre os chilenos e nos últimos governos?

Rodrigo Karmy – Penso que em alguns setores se discutiu, porém, a partir das duas grandes coalizões políticas somente houve rearticulação dos dispositivos neoliberais. É importante essa distinção: as duas grandes coalizões políticas pertencem, no fundo, a um só partido político que é o neoliberal; seja a facção conservadora ou progressista. Porém ambos levam consigo um consenso único: que é preciso articular uma democracia cupular (como foi durante a longa transição) e promover políticas de focalização neoliberais e não universais. Põe-se o exemplo de Michelle Bachelet e sua política de “gratuidade”. Nos meios de comunicação internacional, “gratuidade” ressoou como uma política universal, porém, a rigor, não foi mais que a expansão de uma política de focalização que segue dirigida a um determinado quintil da população e não a sua totalidade.

Para mim, Bachelet é a versão “protestante” do neoliberalismo e Piñera a versão “católica”, isto é: a primeira é progressista, amiga da diversidade e menos amiga da repressão e a segunda é mais repressiva e menos amiga da diversidade; porém, em qualquer caso, essas versões pendulares se alternaram por anos. A insurreição popular atual mostrou que tais versões são somente “aspirinas” para uma transformação estrutural e abertamente política que nenhuma das duas facções do partido neoliberal realizou, nem vai realizar.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Rodrigo Karmy – Espero que o povo brasileiro possa resistir à instalação das políticas neoliberais lideradas por Guedes, sob o governo de Bolsonaro.

 

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